“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Um Projeto de Sociedade

domingo, 30 de janeiro de 2022

 

Entardecer: uma cena na Westminster Union (workhouse), 1878, óleo sobre tela de Sir Hubert von Herkomer (1849-1914).

Foi quando a Reforma Protestante e a Contrarreforma se estabilizaram que a "polícia cristã" se tornou mais "pesada" na Europa. Em primeiro lugar, consideremos a luta contra as festas "pagãs". Elas constituíram outro grande capítulo da ação tenaz e multiforme para cristianizar a vida cotidiana por via autoritária e operar de maneira radical a necessária separação - necessária aos olhos da elite no poder - entre o sagrado e o profano. Essa ação, assim como a ação contra a blasfêmia, foi inseparável do combate conduzido ao mesmo tempo contra a feitiçaria e todos os inimigos declarados o encobertos do nome cristão. Satã introduzira-se nos divertimentos, pervertera-os, paganizara-os, servindo-se deles além disso para confundir as hierarquias e perturbar a ordem social.

Compreende-se melhor, a partir daí, que as fogueiras de são João tenham sido objeto da hostilidade ou, ao menos, da suspeita comum das autoridades católicas e protestantes. Calvino as eliminou de Genebra. Em país católico, os bispos que não ousaram proibir as fogueiras de são João esforçaram-se em fazê-las estreitamente controladas pelos eclesiásticos do lugar, pois assim seriam despaganizadas.

As suspeitas das igrejas se voltaram igualmente para as algazarras. Nas segundas núpcias, por exemplo, deveriam se eliminar o "alarido", o "tumulto" e "ruídos escandalosos". "Insolências", "indecências", desordens festivas tornaram-se como tais repreensíveis aos olhos das autoridades religiosas, católicas ou protestantes. Desde então, esse enquadramento da festa valeu tanto para o primeiro casamento como para os demais.

Embora, em vários países, a legislação civil tenha continuado a tolerar as fogueiras de são João e o carnaval (ao qual a Igreja tridentina tentou opor as "Quarenta Horas"), no entanto, a partir do século XVI, o poder eclesiástico e o poder civil apoiaram-se mutuamente para melhor vigiar a conduta religiosa e moral das populações.

A loucura se tornou, senão para Erasmo, ao menos para muitos espíritos cultivados de seu tempo, uma verdadeira obsessão. Ligada à tentação, ao pecado, aos pesadelos e à morte, ela então tomou uma forma de perigo público. Assim, convinha dominá-la, colocando-a fora do circuito, atrás das altas muralhas de estabelecimentos correcionais. No século XVII, em Paris ou em Bicêtre, os loucos serão colocados entre os "bons pobres" ou entre os "maus pobres". Afirmando-se como necessidade de ordem, a modernidade europeia dessacralizou a loucura. Na Idade Média, o louco e o pobre eram como peregrinos de Deus. Durante o período seguinte, apareceram como seres decaídos, suspeitos e inquietantes, que perturbavam a paz pública.

Outrora imagem de Cristo, a partir do século XIV o pobre se torna um ser que provoca medo. Os crescimentos demográficos, a alta dos preços, a pauperização salarial, o desemprego crescente, a monopolização das terras, a passagem dos homens de guerra acumulam nas cidades ou lançam nas estradas contingentes continuamente mais densos de "vagabundos agressivos, desprovidos de terra e de salário", em desocupação sazonal ou permanente. Eles são, desde então, acusados de todos os pecados capitais. Considerados ociosos, ei-los acusados de transportar a peste e a heresia.

Em primeiro lugar, tentou-se em numerosas cidades do Ocidente, no século XVI, recensear e registrar os mendigos. Esse preliminar permitiria em seguida, graças a uma taxa urbana e à ação de "agências de pobres" e de "esmolas gerais", alimentar os inválidos, dar trabalho aos saudáveis, colocar as crianças em aprendizagem, expulsar os "malandros" e proibir a mendicância. Esse primeiro tipo de organização administrativa da caridade encontra sua expressão mais acabada numa lei inglesa de 1598, que permaneceu em vigor até 1834. Uma taxa estabelecida no nível paroquial devia fornecer os fundos de ajuda aos pobres. Os pobres idosos ou inválidos eram socorridos, os filhos dos ex-mendigos eram colocados como aprendizes.

Um aperfeiçoamento desse sistema consistiu em separar os mendigos do resto da sociedade, confinando-os. Tal solução foi descoberta simultaneamente no final do século XVI pelos papas da Reforma Católica e pelos magistrados das Províncias Unidas protestantes. Em Amsterdã, nessa época, surgiu uma Spinhuis ("casa onde se fia"), que alberga mendigos, prostitutas e esposas que os maridos internam por má conduta. Por outro lado, um Rasphuis impõe a seus pensionistas raspar pau-brasil: daí seu nome. Nessa instituição, o pobre que se recusasse a trabalhar era encerrado em um porão que se enchia lentamente de água. Ele só escapava do afogamento bombeando sem descanso. Esperava-se assim dar-lhe o gosto pelo trabalho.

A fórmula faz escola. Em 1614, em Lyon, na França, surgiu o primeiro asilo geral destinado ao encerramento dos pobres. Em 1621, Bruxelas é dotada de um Tuchthuys no qual os pobres fabricavam tecidos. Na Inglaterra, casas de correção, municipais ou de condado existiam desde o final do século XVI. Mas, um século depois, surgiram as workhouses, casas de trabalho municipais que têm sua instituição generalizada por um Act de Jorge I em 1722. Do mesmo modo, "casas de correção" para os "sem trabalho" foram abertas em Hamburgo (1620), em Basileia (1667), em Breslau (1668), em Frankfurt e em Spandau (1684), em Königsberg (1691). Ao longo do século XVIII, elas se multiplicaram no norte da Europa.

Os aspectos higiênicos, políticos e econômicos dessa luta contra a vagabundagem são evidentes: trata-se de sanear as cidades nelas diminuindo os vetores de contágio, de reduzir o bando dos amotinadores potenciais, de remediar o desemprego, de utilizar na produção e nas "obras públicas uma mão de obra disponível. Porém, mais ainda, trata-se de uma obra de alcance moral e religioso. A ociosidade dos preguiçosos e os pecados que se seguem chamam a cólera de Deus: ele arrisca-se a punir os Estados que os toleram. Para os ociosos voluntários a casa de detenção constitui, portanto, um justo e necessário "castigo"; e para todos os mendigos que ali estão reclusos ela é um meio de redenção. 

Adaptado de DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente 1300-1800. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 607-621.

A Arte de Fazer Amigos

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Julian F. Detmer (1865-1958)

Certa manhã, um cliente insatisfeito entrou no escritório de Julian F. Detmer, fundador da Detmer Woolen Company. Esta tornou-se, mais tarde, a maior distribuidora de lãs, no comércio de alfaiatarias.

Este homem devia à empresa uma pequena importância, mas ele negava. Como o departamento de crédito tinha certeza de que ele havia se enganado, insistiu na cobrança. Após receber várias cartas, viajou a Chicago e apressou-se em bater à porta do escritório do sr. Detmer. Indignado, o cliente fez questão de lhe dizer que não pagaria a conta. E não parou por aí: garantiu que nunca mais compraria mercadorias na Detmer Woolen Company. O relato que se segue é do próprio empresário, Julian F. Detmer:

"Ouvi pacientemente tudo quanto tinha a dizer. Estive tentado a interrompê-lo, mas compreendi que seria má política. Assim, deixei que falasse tudo. Quando finalmente começou a esfriar e se tornou receptivo, eu disse calmamente: 'Quero agradecer-lhe por ter vindo a Chicago falar-nos sobre isso. Fez-me um grande favor, pois se o nosso departamento de crédito o aborreceu pode também aborrecer outros bons clientes, e isso será muito ruim. Acredite-me, estou muito mais desejoso de ouvir isso do que o senhor de dizê-lo a mim.'

"Era essa a última coisa no mundo que ele esperava ouvir de mim. Penso que ficou desapontado pela asneira de ter vindo a Chicago para dizer-me uma ou duas coisas, e aqui, em vez de atracar-me com ele, estava agradecendo-lhe. Assegurei-lhe que nós riscaríamos o débito dos livros e pedi que se esquecesse disso, pois ele era um homem muito cuidadoso, com uma única conta a olhar, enquanto nossos empregados tinham que olhar milhares de contas. Por essa razão, havia menos possibilidade de ele estar errado do que nós.

"Disse-lhe que compreendia perfeitamente como se sentiu e que, se eu estivesse no seu lugar, teria certamente sentido o mesmo. Desde que se decidira a não comprar mais de nós, recomendei-lhe outras casas de lãs.

"Antes, quando ele vinha a Chicago, costumávamos almoçar juntos. Por isso, convidei-o para almoçar comigo, naquele mesmo dia. Aceitou com certa relutância, mas, quando voltamos ao escritório, nos fez um pedido de mercadorias como nunca fizera até então. Voltou para sua casa com disposições brandas e, querendo ser tão justo conosco como acabávamos de ser com ele, foi examinar suas contas e, encontrando uma que não havia sido paga, enviou-nos um cheque com as suas desculpas.

"Mais tarde, quando a esposa o presenteou com um filho, ele deu-lhe o nome de Detmer e continuou cliente e amigo da nossa empresa até a sua morte, 22 anos depois." 

Adaptado de CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas. Tradução de Fernando Tude de Souza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2016, p. 147-148.