“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Concubinato e Matrimônio na Colônia

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Casamento de negros escravos em uma casa rica, pintura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). 

1. Sequiosos de prazer sexual, os colonos da América portuguesa resistiram ao casamento desde o século XVI. Além de preferirem amasiar-se, segundo a historiografia tradicional, a maioria da população tinha dificuldades em atender às exigências burocráticas e financeiras do matrimônio eclesiástico, além de enfrentar a instabilidade social e a mobilidade espacial. No caso dos escravos, havia ainda a tradicional oposição dos senhores ao seu matrimônio.    

2. O casamento era relativamente escasso. A união oficial praticamente se restringiu à elite branca ligada à terra, ao comércio ou aos cargos públicos, sendo, portanto, uma opção das "classes dominantes", motivado por interesses patrimoniais ou de status, restando o concubinato como alternativa sexual e conjugal para os demais estratos da colônia.   

3. Na perspectiva eclesiástica, o concubinato aludia a uma relação intermediária entre a simples fornicação e o adultério. Ele era antes definido pela durabilidade e publicidade do que pela coabitação. Enquanto, na Europa, o concubinato tenha entrado em franco declínio desde o século XVII, na colônia ele cresceu desde o século XVI.   

4. O mundo dos concubinatários, vemo-lo na correspondência jesuítica do século XVI, entre os amores de índias e colonos, que tanto inquietaram os jesuítas; vemo-lo, um pouco, entre os personagens da primeria visitação inquisitorial ao Nordeste; e, ainda, nos tratados morais dos séculos XVII e XVIII. Mas era sobretudo na documentação das visitas diocesanas que o concubinato aparece de maneira mais completa.    

5. Casar-se com índias a quem viam como "solteiras", prostitutas ou amásias, eis uma ideia jamais cogitada pela maioria dos portugueses chegados ao Brasil no século XVI. Às mancebas índias dos primeiros lusitanos somar-se-iam as negras, mulatas, mamelucas e mesmo as brancas pobres nos séculos XVII e XVIII. Muitos solteiros viviam amancebados anos a fio, preferindo a morte à vergonha de esposar mulheres infamadas pelo sangue, pela cor ou pela condição social.   

6. Apesar disso, muitos amancebamentos eram autênticas paixões e casos de amor entre senhores e escravas, como no lendário romance entre o contratador João Fernandes e a escrava Xica da Silva, no distrito Diamantino do século XVIII. Nesse mesmo século, na Bahia, um rico proprietário de escravos amava tanto a sua escrava-concubina que chegou a conceder-lhe em testamento a liberdade, a propriedade da casa e três escravos, "com a condição de que ela permanecesse solteira".       

7. A tendência geral era, porém, a de confundir exploração social e sexual, unindo-se os senhores, casados ou solteiros, às negras e mulatas da casa-grande ou da senzala, a despeito do tour de force jesuítico inspirado pelo Concílio de Trento. Assim como o papa Alexandre VI tolerou a criada-concubina que fosse indispensável ao serviço do seu amo, também as Constituições de 1707 curvaram-se aos hábitos coloniais, reconhecendo tacitamente o direito dos senhores de se amancebarem com suas escravas.     

8. Prostituição de escravas à parte (às vezes com o objetivo de que elas engravidassem), o concubinato de brancos com negras ou mulatas era sobretudo uma faceta da exploração escravista, extensiva à própria miséria. Senhores, mercadores e burocratas não só abusavam sexualmente das cativas, como de mulheres pobres ou desamparadas, lhes serviam de amantes. Até mesmo autoridades, juízes e governadores foram pródigos em conceder favores ou dinheiro a mulheres humildes, "tirando-as da miséria", protegendo-as da Justiça, convidando-as para saraus e comédias palacianas em troca de prazeres sexuais.  

9. Aqueles que ousassem casar com mulheres de cor ou cristãs-novas ficavam impedidos de concorrer aos quadros burocráticos da monarquia; ingressar nas Ordens Militares de Cristo, Aviz e Santiago; integrar o clero; obter vereanças nas câmaras municipais; associar-se a certas irmandades, misericórdias, instituições de caridade e outras - além de igualmente bloquearem toda a sua descendência. Assim, foram raros os casamentos mistos no Brasil colonial.  

10. Entre os escravos de origem africana, o reduzido número de casamentos decorria, antes de tudo, das imposições do tráfico, cujo objetivo era abastecer de braços fortes a lavoura tropical e as minas, e por isso mesmo composto majoritariamente de homens. Impossibilitados de se casar por falta de mulheres em igual condição social, os escravos ainda o seriam pela má vontade dos senhores. Até os franciscanos, em 1745, proibiram matrimônios que envolvessem escravos dos conventos. Assim, o concubinato nas senzalas era tolerado e incentivado pelos senhores.  

11. Segundo Antonil, os próprios senhores amiúde promoviam os amancebamentos e determinavam os parceiros, formando e desfazendo uniões a seu bel-prazer, conforme as suas próprias conveniências. Mesmo entre os escravos legalmente casados, costumavam interferir e separar casais por meio da venda ou qualquer expediente. As relações amorosas entre os escravos, portanto, foram provavelmente as mais difíceis de firmar, as mais precárias e vulneráveis de quantas houve na colônia.  

12. No século XVIII, a Coroa portuguesa empenhou-se em aumentar o número de matrimônios e combater os concubinatos no Brasil - temerosa do crescimento dos mestiços e das "desordens" que se lhes atribuía -, chegou mesmo a afirmar que a Igreja agia em sentido contrário, dificultando o casamento com a imposição de taxas onerosas, só acessíveis à elite colonial. 

13. Processos inquisitoriais contra bígamos indicam que, para se casarem na metrópole ou na colônia, numa segunda ou terceira vez, muitos homens e mulheres mudavam de nome, apregoavam-se solteiros, forjavam testemunhas de seu estado, e logo corria o processo. Assim, casar-se no Brasil parecia ser muito fácil, exceto no caso de haver notório impedimento canônico apurado nos pregões. Pouco sabemos sobre o eventual pagamento de taxas matrimoniais, mas quanto ao processo burocrático em si, bastava ao contraente proclamar-se solteiro e apresentar indivíduos que confirmassem seu nome e sua versão, e logo corriam os pregões e celebrava-se o matrimônio.    

14. Para Ronaldo Vainfas, os segmentos pobres deixavam de se casar no Brasil não pela impossibilidade de superar os obstáculos financeiros e burocráticos exigidos pelo matrimônio oficial, nem muito menos por terem escolhido qualquer forma de união oposta ao sacramento católico. Amancebavam-se por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria, num mundo instável e precário. Forros, brancos pobres, mestiços, pardos, gente que vivia à cata de alguma oportunidade que lhes amenizasse a miséria, por que haveriam de se casar? 

15. A promiscuidade em que viviam os pobres não raro os levava a concubinatos incestuosos, a relações sexuais e amorosas entre irmãos, ou entre tio e sobrinha. Entre os miseráveis, como nas relações entre senhores e escravas, vários concubinatos, e até casamentos, mal se distinguiam da prostituição e da alcovitagem, solução que muitos encontravam para atenuar a pobreza ou escapar da indigência.   

Bibliografia consultada: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 77-95.

A Explicação Histórica

domingo, 30 de dezembro de 2018


Segunda Parte - Compreensão 
Cap. VII Compreender a intriga 

A história não se contentaria em ser meramente uma narrativa; ela deve explicar. Esse é o reconhecimento de que ela não explica sempre, e que pode não explicar sem deixar de ser história. "A História não ultrapassa nunca este nível de explicação muito simples; ela permanece fundamentalmente uma narrativa e o que chamamos explicação não é mais do que o modo que a narração tem de se organizar numa intriga compreensível" (p. 115). Ora, falar de explicação é dizer muito ou bem pouco. 

"Explicar" tem dois sentidos. A explicação história, em seu primeiro sentido, é "uma difícil conquista científica, concretizada neste momento sobre somente alguns pontos do campo acontecimental (...)" (p. 116). No sentido científico, não existe explicação histórica. Explicar, num segundo sentido, da parte de um historiador, significa "mostrar o desenvolvimento da intriga, fazer compreendê-la". "O historiador interessa-se pelos acontecimentos pela única razão de que eles tiveram lugar e não são para ele uma ocasião de descobrir leis (...)" (p. 116). 

O historiador refaz nas fontes a aprendizagem de um diplomata ou de um militar, por exemplo; utiliza, igualmente, algumas verdades científicas "mas utiliza sobretudo verdades que fazem de tal modo parte do nosso saber cotidiano que quase não é necessário mencioná-las (...)" (p. 117). 

No mundo sublunar da história coexistem liberdade, acaso, causa e fins. Isso está em oposição ao mundo da ciência, que só conhece leis. Na quintessência da explicação histórica, apenas "a clareza que emana duma narrativa suficientemente documentada (...)." Para ser verdadeiro historiador, basta ser homem. "A história não explica, no sentido em que ela não pode deduzir e prever (...)" (p. 118). Por exemplo, quando pedimos que nos expliquem a Revolução Francesa, queremos uma análise dos antecedentes que a desencadeou - "a explicação não é outra coisa senão a narrativa desses antecedentes (...)". As causas, na verdade, são os diversos episódios da intriga. "É um preconceito acreditar que a história é uma coisa à parte e que o historiador se entrega a misteriosas operações que conduziriam à explicação histórica" (p. 119). 

A palavra "causa" é muito mais utilizada nos livros sobre a história do que nos livros de história. Para Seignobos, é impossível determinar as causas principais - "todas seriam causas de parte inteira". Isso é uma dupla ficção. O historiador desenvolve "uma narrativa cujos episódios se sucedem e na qual os atores e fatores estimulam os seus atos." Ninguém será menos historiador se não desvendar um "culpado" caso os documentos sejam insuficientes (p. 120). O historiador não-acontecimental sabe que a história é feita de "coisas que poderiam ser outras", e em história, explicar é explicitar (p. 121). 

"É vão opor uma história narrativa a uma outra que teria a ambição de ser explicativa; explicar mais é contar melhor, e de qualquer modo não se pode contar sem explicar (...)." Nesse sentido, Veyne deixa claro que a história é narração, somente. (p. 122) A metáfora dos ritmos temporais múltiplos é justificada pela desigual resistência à mudança dos diferentes pólos de ação. (p. 123)  

A pluralidade dos tempos históricos: A) os inovadores de uma época são mais raros que os imitadores; B) o historiador não deve limitar-se "ao que os documentos dizem preto no branco (...)". Todo fato é, simultaneamente, causador e causado. (p. 124) 

Um mínimo fato histórico comporta: 1º) o acaso; 2º) causas materiais e 3º) a liberdade (causas finais). A insistência no acaso é típico de concepções clássicas da história; a insistência sobre a causa final é própria de uma concepção idealista da história; finalmente, a insistência sobre a causa material é próprio da concepção marxista da história. O conflito dessas concepções já foi resolvido há uns dois milênios. (p. 125). 

Por muito longe que penetre a explicação histórica, ela não encontrará nunca o limite. Longe de ser uma construção escalonada (há aqui uma crítica ao esquematismo marxista), a história "é um monólito no qual a distinção das causas, dos fins e dos acasos é uma abstração." Os historiadores sempre terão explicações incompletas, visto que não podem "ser uma regressão ao indeterminado." Aonde quer que queiram ir, sempre pararão sobre um destes três aspectos de qualquer ação humana (p. 126). A seguir, Veyne discorre sobre as causas materiais (o marxismo) (p. 127-128).

Causas finais: mentalidade e tradição
Quanto às causas finais, se as tomarmos por uma ultima ratio, a explicação reveste-se das figuras míticas da mentalidade e da tradição. (p. 128) Neste contexto, "a última palavra da explicação histórica seria então de procurar na existência de 'micro-climas' mentais (...)" (p. 129).

Acaso e causas profundas
Causa profunda: difícil de se perceber, resume numa palavra toda a intriga. (p. 130)
Causas superficiais: as mais eficazes, "aquelas em que é maior a desproporção entre seu efeito e os seus custos (...)" (p. 131). "A distinção entre ocasiões e causas profundas baseia-se na ideia de intervenção" (p. 132). As causas profundas decidem do que acontece, se acontece. As causas superficiais, por sua vez, decidem se acontece, ou não.

A história não tem linhas gerais. O acaso histórico deve ser encarado diferentemente do caso de um acontecimento isolado, do caso da história vista globalmente. (p. 133). A história não tem profundezas e tampouco é racionalizável. "As linhas gerais da história não são didáticas (...)". É preconceito pensar que a história de cada época tem os seus "problemas" e se explica por meio deles (p. 134).

A história não tem método (seu método é inato); implica uma questão de entendimento e só apresenta dificuldade de pormenor. Assim como a realidade que está à nossa volta, o passado possui três espécies de causas: natureza das coisas, liberdade humana e acaso. (p. 135)

"Na reconstrução da verdade, o historiador submete-se às mesmas normas que os sábios; nas suas inferências, na procura das causas, ele obedece às mesmas leis gerais do pensamento que um físico ou um detetive." (p. 136)

A explicação histórica não pode apelar para nenhuma estrutura permanente. Encontramos na história uma forma de explicação que nós de certa forma já sabíamos (e é por isso que a história é familiar). A historiografia nunca teve um Galileu ou um Lavoisier. O seu método não fez qualquer progresso desde Heródoto ou Tucídides. O que progrediu foi a crítica histórica e, sobretudo, a tópica histórica. (p. 137).

A metodologia histórica não tem um conteúdo determinado. Os historiadores, e sobretudo os maiores, não têm ideias. Historiadores ocupam-se de epigrafia ou de registros paroquiais mas preocupam-se bastante menos de terem uma concepção geral da história e do social. 

Fichamento: VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução de António José da Silva Moreira. Lisboa: 70, 1971, p. 115-147.

Base Nacional Comum Curricular

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

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Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) no dia 4 de dezembro de 2018. Leia a reportagem sobre o assunto no G1.

«Escavando a Verdade»

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Baixe essa obra gratuitamente aqui.

Tempos atrás eu tive o prazer de ler esse livro, o qual sempre recomendo aos alunos, especialmente aos que cursam o primeiro ano do Ensino Médio. Um dos arqueólogos mais renomados dos meios acadêmico e cristão do Brasil na atualidade, o Dr. Rodrigo P. Silva mostra como os vestígios materiais do Oriente Médio ajudam a elucidar a história bíblica. 

O equilíbrio adequado entre o rigor científico e a emoção das descobertas, que o autor narra em detalhes porque ele mesmo participa do trabalho de campo, faz desse livro uma leitura tão agradável quanto informativa. 

Ainda não obtive o PDF desse livro para compartilhá-lo aqui, mas tenho alguns exemplares impressos para serem vendidos a alunos dos nonos anos e Ensino Médio. No site da editora ele é oferecido a R$ 28,50 (veja aqui), mas eu estou a vendê-lo por apenas R$ 15. Interessados podem fazer a reserva encaminhando um e-mail com o nome completo para <rleiteixeira@gmail.com>. Essa oferta dura até acabar o meu estoque, e restam-me apenas alguns exemplares.   

Heródoto (c. 484 - c. 424 a.C.)

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Busto de Heródoto, cópia romana do séc. II. Estoa de Átalo, Atenas.

Embora seja creditada a Heródoto a primeira narrativa histórica, ele foi acusado de falsificação deliberada, inconsistência, equívocos sobre fatos e julgamentos, credulidade indevida e fácil aceitação de fontes de informações não confiáveis. Só há pouco os estudiosos começaram a avaliar totalmente a extraordinária combinação de cronologia, etnologia, geografia e poesia em uma obra bastante agradável e uma importante fonte de informações sobre o Mundo Antigo. 

Heródoto nasceu provavelmente por volta de 484 a.C. em Halicarnasso, hoje Bodrun, no litoral egeu da Turquia. Sua única obra, Histórias, sugere que ele viajou muito - dentre suas visitas incluem-se Egito, Cirene, Babilônia, Itália, Ucrânia, Mar Negro e costa norte do Egeu. Sua obra deve ter sido publicada entre 430 e 424 a.C., durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.). A data de sua morte é incerta. 

Histórias é dividida em duas partes. A segunda descreve os conflitos entre os persas e os gregos, da revolta jônica de 449 a.C. à derrota da invasão de Xerxes em 479 a.C. A isso precede um relato sobre esses conflitos e o crescimento do Império Persa e dos estados gregos de Atenas e Esparta. 

No prefácio das Histórias, Heródoto inicia a "demonstração de sua investigação" a fim de preservar os fatos e as causas essenciais dos eventos recentes, uma demonstração sem paralelos no Mundo Antigo. Ninguém antes dele, como Dionísio de Halicarnasso evidenciou, reuniu tantos eventos variados da Ásia e da Europa, acompanhados da descrição de seus povos e países, numa só obra. 

A história, propõe Heródoto, mostra padrões de desenvolvimento e declínio. As fases de desenvolvimento e declínio, na visão do historiador, podem ser explicadas de duas maneiras. Primeira, a felicidade contínua gera arrogância. Pessoas arrogantes, diz ele, são propensas a ignorar conselhos. Uma vez que elas ultrapassam seus limites mortais, uma punição lhes inflige na forma de Justiça (Díke) ou Castigo (Nemesis). A segunda, a ascensão e a queda dos estados podem ser explicadas em termos de culturas "inflexíveis" e "flexíveis". As culturas "inflexíveis" são subdesenvolvidas, não têm governo central e são impetuosamente independentes. As culturas flexíveis são opulentas, na maioria das vezes governadas por monarquias absolutas e são suscetíveis à conquista por estranhos. As culturas inflexíveis, propõe Heródoto, tendem a conquistar as culturas flexíveis. Quando o fazem, propendem a tornar-se flexíveis e, portanto, a ser invadidas. A Pérsia revela esse ciclo. 

Embora Heródoto não tenha mencionado nenhum escritor em prosa, exceto Hecateo de Mileto, frequentemente cita poetas como Homero e Hesíodo. Apesar de ele censurar os poetas por preferirem a conveniência à precisão, é possível perceber a influência da poesia tanto na estrutura da obra quanto na escolha de determinadas frases. Grande parte de Histórias é construída com base em testemunhos verbais que Heródoto reuniu em suas viagens. Quando ele cita grupos étnicos como fonte, subentende-se que ele está informando sobre suas tradições oficiais. 

Quando se examina os relatos de Heródoto sobre formigas gigantes, por exemplo, não é difícil perceber por que tantas pessoas consideram-no um escritor crédulo com queda para o fanático (3.102-113). Em inúmeros lugares, entretanto, Heródoto nos revela que não reconhecia tudo o que lhe era dito, e chega mesmo a repudiar francamente alguns relatos (por exemplo, 2.123; 4.195.2; 6.105.3; 7.37.3; 152.3). Além disso, ele oferece visões alternativas em mais de 125 ocasiões. Pesquisas arqueológicas e históricas subsequentes demonstraram que ele é razoavelmente preciso. 

Além disso, Heródoto refere-se a 24 inscrições, metade das quais são gregas. Algumas ele copiou, mas pelo menos uma, extraída da Grande Pirâmide de Gizé, ele parafraseou de memória (2.156.6). O uso desses tipos de prova por parte de Heródoto, paralelamente a uma grande quantidade de provas materiais (como a descrição de prédios, pontes, esculturas), tornou sua obra uma fonte inestimável de informações sobre o Mundo Antigo.         

Adaptado de HUGHES-WARRINGTON, Marnie. 50 Grandes Pensadores da História. Tradução de Beth Honorato. São Paulo: Contexto, 2002, p. 183-191.

As Origens da Guerra do Peloponeso

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

Num mundo de cidades gregas muitas vezes rivais, a guerra era uma atividade não apenas corriqueira, como essencial. Com suas particularidades e rivalidades, as póleis (as cidades-estado gregas) foram galvanizadas, no início do século V a.C., em sua luta contra os persas. Foi assim que surgiu a Liga Helênica (481 a.C.), da qual participavam todas as principais póleis gregas. Outra aliança militar era a Liga do Peloponeso, restrita a Esparta e a outras cidades do interior. 

Em 478 a.C., o espartano Pausânias liderou uma expedição conjunta para tomar Bizâncio de uma guarnição persa. Posteriormente, Pausânias foi acusado pelos atenienses de ter libertado os altos dignitários persas e mesmo de ter trocado cartas com o rei persa Xerxes. Ainda que sem confirmação, o episódio foi revelador de uma diferença de estratégia entre Esparta, propensa a acordo com os orientais, e Atenas, defensora dos interesses das cidades gregas da Jônia recém-liberadas do jugo persa. Nesse mesmo ano de 478 a.C., surgiu a Liga de Delos, formada por diversas cidades que deviam fornecer belonaves e fundos a serem administrados por tesoureiros atenienses. Além das ilhas do Egeu, foram adicionadas as Ilhas Cícladas, Lesbos, Quíos, Samos, Rodes, cidades da Trácia e da Calcídica, e a maioria das cidades gregas a oeste e ao sul da Ásia Menor. 

A Guerra do Peloponeso foi a primeira grande guerra narrada por uma testemunha ocular, Tucídides (464-401 a.C.). As cidades da Liga Beócia, lideradas por Tebas, eram os aliados continentais de Esparta, desde o início, com o apoio posterior de Siracusa e outras cidades da Sicília. Os persas, com o desenrolar da guerra, apoiaram financeira e logisticamente a Esparta, cidade que também contava com a simpatia das oligarquias de muitas outras cidades. 

Atenas dispunha do apoio de outras tantas cidades que se opunham aos persas e que prosperavam com o comércio - a leste na Jônia e nas ilhas do mar Egeu, assim como ao norte na Trácia e às bordas do mar Negro - , além de contar com o apoio dos democratas em outras cidades. No Peloponeso, contou com a neutralidade e, depois, com o apoio de Argos, rival de Esparta.    

Entre 460 e 455 a.C. foi travada a Primeira Guerra do Peloponeso, o que já enunciou os caminhos da disputa que duraria até o final do século V a.C., assim como as escolhas estratégicas das partes. Atenas estabeleceu alianças com Argos e Mégara, reunindo assim dois grandes aliados para contrapor-se a Esparta. Ao se aliarem, finalmente, a Naupacto, os atenienses passaram a circundar Esparta e Corinto. A batalha decisiva se deu em Tânagra, que terminou com pesadas perdas para ambos os lados e com a vitória dos peloponésios. Os atenienses concluíram a partir daí que a estratégia defensiva seria decisiva. 

O tratado de paz foi firmado em 451 a.C., e nos anos seguintes a Liga de Delos foi gradualmente transformada em um domínio de Atenas sobre as outras cidades. Apesar de exercer um poder discricionário, Atenas possuía uma fragilíssima estrutura administrativa imperial. Esparta e outras cidades aliadas, por sua vez, voltavam-se para o fortalecimento das suas milícias e para um futuro enfrentamento com a potência marítima e comercial emergente ateniense.

A Guerra do Peloponeso foi inovadora: nela os atenienses estrearam a estratégia defensiva de abandono de campo, refúgio da população na cidade e a adoção de um sistema imperial de sustentação do esforço de guerra, o que seria adotado posteriormente pelos exércitos macedônios e romanos. 

O conflito contou também com uma ampla área de operações. Seus limites foram a Sicília, a ocidente; a Ásia Menor, a oriente; o Helesponto e a Trácia, a norte, e Rodes, ao sul. A tentativa tebana de atacar Plateia, aliada de Atenas, a 4 de abril de 431 a.C., assinalou o início do conflito, que só terminou a 25 de abril de 404 a.C., com a capitulação de Atenas. 

Bibliografia consultada: FUNARI, Pedro Paulo. Guerra do Peloponeso. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19-29.

«O Cálculo Econômico Sob o Socialismo»

domingo, 23 de dezembro de 2018

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A Disputa de Marburgo

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

O Castelo de Marburgo.

Para reforçar a causa protestante e ultrapassar as divisões internas que andavam a estorvar o seu progresso, Filipe I de Hesse (1504-1567) promoveu uma conferência entre Lutero e Zuínglio no seu castelo de Marburgo entre 30 de outubro e 5 de novembro de 1529. 

O ponto crítico dizia respeito ao relacionamento do corpo de Cristo com os elementos Pão e Vinho na Ceia do Senhor. Lutero, caracteristicamente, escreveu a giz no tampo da mesa "Hoc est Corpus Meum", dizendo "Eu tomo estas palavras à letra; se alguém o não faz, eu não discuto, mas contradigo." Zuínglio negava a Presença Real, sustentando que a Ceia (a Missa) não é uma repetição do Sacrifício da Cruz, mas uma comemoração dele; os elementos são meramente os sinais, Sigma, disso. No entanto, alguma coisa se conseguiu. Lutero e Zuínglio concordaram em catorze dos quinze Artigos de Marburgo.     

Adaptado de GREEN, V. H. H. Renascimento e Reforma - a Europa entre 1450 e 1660. Tradução de Cardigos dos Reis. Lisboa: Dom Quixote, 1991, p. 161.

O Deus do Novo Testamento

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Expulsando os cambistas, óleo sobre tela de Carl Bloch (1834-1890).

"Em vez de examinar livros e quadros sobre o Novo Testamento, examinei o próprio Novo Testamento. Ali descobri um relato que absolutamente não mostrava uma pessoa de cabeleira partida ao meio ou de mãos entrelaçadas num gesto de súplica, mas mostrava um ser extraordinário com lábios de trovão e atos terrivelmente decididos, que derrubava mesas, expulsava demônios, passava com o bravio sigilo do vento do isolamento da montanha para uma espécie de medonha demagogia; um ser que muitas vezes agia como um deus irado - e sempre como um deus."  

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 189.

«A Extraordinária História da China»

domingo, 16 de dezembro de 2018

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Festa de Pentecostes

sábado, 15 de dezembro de 2018

Judeus colhem espigas de trigo para a festa de Shavuôt (Semanas).

A festa da colheita do trigo, chamada de Festa das Semanas (Êx 34:22), das primícias (Êx 34:22; Nm 28:26), da Colheita (Êx 23:16) e, no Novo Testamento, de Pentecostes (At 2:1). Era uma das três festas nas quais todos os homens hebreus tinham a obrigação de comparecer "diante do Senhor Deus" (Êx 23:17), isto é, deveriam se deslocar até o santuário. Era uma festa que durava um dia, um dos sábados cerimoniais do ano (Lv 23:21). Nela, dois pães de farinha fina, assados com fermento, assim como os sacrifícios animais específicos, eram oferecidos ao Senhor (v. 17-20). 

Os termos "Pentecostes" (de uma palavra grega que significa "quinquagésimo") e "Festa das Semanas" se referem à data dessa festa no quinquagésimo dia, em contagem inclusiva, ou sete semanas após a cerimônia do molho da oferta movida, que ocorria no segundo dia da Festa dos Pães Asmos, "desde o dia imediato ao sábado" (Lv 23:15, 16). Nos dias de Cristo, havia uma disputa entre alguns fariseus e saduceus. Dentre os últimos, alguns argumentavam que o Pentecostes sempre deveria acontecer após um sábado semanal, pois insistiam que o molho da oferta movida, a partir do qual eram contadas sete semanas, tinha de ser apresentado no dia depois do sábado semanal que caía durante a Festa dos Pães Asmos (Talmude Menahoth 65a). No entanto, o outro ponto de vista prevaleceu, de que "o dia imediato ao sábado" significava 16 de nisã, o dia após o sábado cerimonial que dava início à Festa dos Pães Asmos, depois da oferta do cordeiro pascoal no dia 14 de nisã.           

Adaptado de Dicionário Bíblico Adventista do Sétimo Dia. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016, p. 1057-1058.

Paganismo X Cristianismo

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um fio de ouro (1885), óleo sobre tela de John Melhuish Strudwick (1849-1937). Trata-se de uma alegoria das moiras (ou parcas) com o fio da vida. 

"Dizem que o paganismo é uma religião de alegria e o cristianismo é de tristeza. Seria igualmente fácil provar que o paganismo é pura tristeza e o cristianismo pura alegria. Esses conflitos nada significam e não levam a lugar algum. Tudo o que é humano deve conter em si alegria e tristeza; a única questão que interessa é como os dois ingredientes são equilibrados e divididos. E a coisa realmente interessante é a seguinte, que o pagão sentia-se em geral cada vez mais feliz à medida que se aproximava da terra, mas cada vez mais triste à medida que se aproximava dos céus. 

A alegria do melhor paganismo, como na jocosidade de Catulo ou Teócrito, é, de fato, uma alegria eterna que nunca deve ser esquecida por uma humanidade grata. Mas é uma alegria totalmente voltada para os fatos da vida, não envolvendo a origem dela. Para o pagão, as menores coisas são doces como os menores riachos que irrompem da montanha; mas as coisas maiores são amargas como o mar. Quando o pagão olha para o verdadeiro âmago do cosmos, ele de súbito se sente gelado. Por trás dos deuses, que são meramente despóticos, sentam-se as parcas, que são mortais. Melhor dizendo, as parcas são piores que mortais; elas estão mortas."  

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 204-205. 

Crenças X Instituições

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

"Deixe que as crenças desapareçam com rapidez e frequência, se você quer que as instituições permaneçam as mesmas. Quanto mais perturbada for a vida da mente, tanto mais o mecanismo da matéria poderá agir por conta própria. O resultado líquido de todas as nossas sugestões políticas, o coletivismo, o tolstoianismo, o neofeudalismo, o comunismo, a anarquia, a burocracia científica - o fruto evidente de todas elas é que a monarquia e a Casa de Londres permanecerão."  

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 139. 

Natureza: Mãe ou Irmã?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Flutuação no Passeio Barra do Sucuri, Bonito, Mato Grosso do Sul. 

"A essência de todo panteísmo, evolucionismo e religião cósmica moderna está realmente nesta proposição: que a natureza é a nossa mãe. Infelizmente, se você considerar a natureza como mãe, vai descobrir que ela é madrasta. O ponto principal do cristianismo era este: que a natureza não é a nossa mãe: a natureza é nossa irmã. Podemos sentir orgulho de sua beleza, uma vez que temos o mesmo pai; mas ela não tem autoridade sobre nós; temos de admirá-la, não de imitá-la."  

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 146.

O Poder dos Limpadores de Traseiro

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Sir William Compton (1482-1528), o primeiro "garçom de fezes" do rei Henrique VIII. Ele ocupou essa função entre 1509 e 1526. 

Qualquer um que tivesse ambições políticas na Inglaterra do século XVI, período em que Henrique VIII foi um dos reis do país, deveria aspirar a uma das mais preciosas - e degradantes - posições na corte do monarca: limpador do traseiro da majestade. 

Saiba mais: BBC Brasil

O Brasil na Primeira Guerra Mundial

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Notícia do torpedeamento do cargueiro brasileiro Lapa por um submarino alemão, no dia 26 de maio de 1917. Amplie a imagem com um clique. 

Em 1914, os Estados Unidos já eram a maior potência econômica mundial e maior parceiro comercial do Brasil. Apesar disso, os britânicos permaneciam como os grandes investidores em ferrovias, usinas elétricas e indústria manufatureira. O bloqueio britânico redundou na perda da Alemanha como parceiro comercial, e a campanha submarina alemã tornou perigosas as águas da Europa, onde aconteceram quase todos os torpedeamentos de navios brasileiros. Ainda mais a construção de estradas de ferro foi interrompida e a taxa cambial caiu. Como contrapartida, a substituição de importações deu lugar ao nascimento de uma indústria de manufaturados. 

As elites brasileiras, como as de toda a América do Sul, buscavam na França a literatura e a formação artística. O café respondia por mais de 60% das exportações brasileiras, e a opinião pública recebeu bem a neutralidade proclamada pelo governo nos primeiros anos da guerra. 

Em 3 de abril de 1917, um navio mercante americano foi torpedeado e os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com a Alemanha. Nesse mesmo dia, um navio mercante brasileiro foi torpedeado no Canal da Mancha. Uma semana depois, o presidente Wenceslau Braz rompeu relações com a Alemanha, em solidariedade aos Estados Unidos e com fundamento na Doutrina Monroe. Mais navios brasileiros foram torpedeados e a indignação dos jornais e da opinião pública cresceu. A 26 de outubro de 1917, o Congresso brasileiro decretou e o presidente sancionou a resolução proclamando a existência de um estado de guerra entre o Brasil e o Império Alemão. Santos Dumont, um dos pais da Aviação, foi ao Palácio do Catete, então sede do governo federal, oferecer seus conhecimentos profissionais e serviços. Em 1918, mais dois navios brasileiros foram torpedeados nas costas da Europa. 

A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial foi modesta, mas estendeu-se além da facilitação do uso de nossos portos por embarcações aliadas e a cessão à França de 30 navios alemães apreendidos. A 7 de maio de 1918, zarpou para Gibraltar, onde se reuniu à esquadra britânica, para participar da guerra anti-submarina, a Divisão Naval de Operações de Guerra. A frota era composta por dois cruzadores e cinco contratorpedeiros, um navio auxiliar e um rebocador. Comandada pelo contra-almirante Pedro Max Fernando de Frontin, a Divisão ficou retida na costa africana pela terrível pandemia da gripe espanhola, e só chegou a Gibraltar em novembro de 1918. 

Aviadores brasileiros combateram ao lado dos pilotos britânicos e franceses. Oficiais do Exército serviram na Frente Ocidental, em unidades do Exército Francês. Oitenta e seis médicos, incluindo dezessete professores de Medicina, quase todos civis, comissionados oficiais, integraram a Missão Médica que particiu do Brasil a 18 de agosto de 1918. 

Com o fim do conflito, o Brasil participou da Conferência de Paz, foi signatário do Tratado de Versalhes, membro da Liga das Nações e aspirou (sem sucesso) a uma vaga em seu Conselho de Segurança. A Grande Guerra influenciou o Brasil no campo militar. O poeta Olavo Bilac despertou o sentimento cívico, liderando a campanha que resultou na instituição do serviço militar obrigatório.   
Bibliografia consultada: ARARIPE, Luiz de Alencar. Primeira Guerra Mundial. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 341-343.

O Governo-Geral do Brasil Colônia

domingo, 9 de dezembro de 2018

O administrador colonial Tomé de Souza e um índio, provavelmente em São Salvador. Artista desconhecido, séc. XVIII. 

Pouco tempo se passou que as capitanias hereditárias foram estabelecidas na América Portuguesa, e sinais de profunda crise já eram notados. Excetuando-se a Nova Lusitânia e São Vicente, as demais capitanias tendiam mais a despovoar-se do que a povoar-se. Ao mesmo tempo, as incursões francesas aumentavam em número e ousadia. Com apoio do poderoso almirante de Coligny e da burguesia portuária da Bretanha, seus navios visitavam regularmente a Guanabara e o Cabo Frio, no litoral do Rio de Janeiro, com o risco de rachar ao meio o Brasil colônia. 

No sul, em São Vicente, a sensação de abandono era grande, com os colonos deixados à sua própria sorte. Em 1548, o donatário da Bahia, com seus colonos, foi morto por um levante de índios tupinambás. 

Nesse mesmo ano, o rei português resolveu, então, intervir com a nomeação de um governador-geral, Tomé de Souza. Encarregado de centralizar muitos dos poderes dispersos pelos donatários, Tomé era um fidalgo e rico aventureiro da carreira das Índias. A Coroa comprou a capitania da Bahia, abandonada após o levante dos tupinambás, tornando-a real e sede do governo-geral do Brasil, com o objetivo de "dar favor e ajuda" aos esforços colonizadores dos donatários. 

Conforme o Regimento de Tomé de Souza, os principais problemas a serem enfrentados eram a pirataria, sobretudo francesa, e aos ataques indígenas. Porém, não menos desestabilizadores eram os conflitos entre colonos: disputas entre comerciantes e lavradores, entre as autoridades prepotentes e colonos, e entre colonos, por questões, no mais das vezes, insignificantes. 

Com o governo-geral, foi também instituído também a figura de ouvidor-geral, como instância de apelação da justiça local e, em alguns casos, como primeira instância, limitando os poderes de alta e baixa justiça dados anteriormente aos donatários; surgiram também o provedor-mor, responsável pelos impostos e taxas correspondentes as direitos da Coroa e o capitão-mor da costa, responsável pela defesa. 

Tomé de Souza chegou ao Brasil em 1549, e ergueu uma vila, com foros de cidade, a primeira do Brasil, São Salvador. A seguir, iniciou sua ação punitiva contra os tupinambás, seguindo as ordens do rei. 

A obra colonizadora do governador-geral visava, acima de tudo, a assentar os colonos, transformá-los em "moradores". Para isso, incentivava a implantação de engenhos, o aldeamento dos índios "mansos" junto aos povoados e vilas dos brancos, o estabelecimento de feiras semanais, com a presença do gentio. Simultaneamente, os interesses reais eram obedecidos: combater o comércio ilegal do pau-brasil e defender as matas. 

Tomé de Souza fez trazer gado bovino de Cabo Verde, distribuído aos colonos sob a forma de pagamento de soldos, o que incentivava enormemente a distribuição de terras, sob a forma de sesmarias, para a formação de pastos. A colonização também foi incentivada, com a intensificação do tráfico negreiro e com os apelos para a vinda de colonos açorianos para a Bahia. 

Com Tomé de Souza vieram também os jesuítas, responsáveis pela catequese dos índios e pela implantação das primeiras instituições de ensino no Brasil. Eles foram os principais responsáveis pela superação do tupi como língua geral da colônia. 

A fundação da Cidade de Salvador foi seguida pela criação dos órgãos locais de administração - as câmaras. Compostas por até seis membros, chamados de oficiais da câmara, tinham funcionários à sua disposição (escrivães, almotacés, o alcaide, o juiz de órfãos, etc.). Esses indivíduos, chamados de oficiais da câmara, eram escolhidos por uma lista composta por seis homens escolhidos por uma assembleia de proprietários, os homens bons.      

Bibliografia consultada: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa - o Brasil Colônia - 1500/1750. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 59-61.

O Período Pré-Colonial Brasileiro

sábado, 8 de dezembro de 2018

A derrubada do pau-brasil (1515). Ilustração de André Thevet (1502-1590).

Entre a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500, e a expedição de Martim Afonso de Souza, em 1530, não houve ocupação efetiva do nosso território. Assim, a historiografia tradicional denominou esse período como "pré-colonial" ou de colonização de feitorias. 

O desinteresse da Coroa portuguesa pelas terras brasílicas relacionava-se aos enormes lucros decorrentes da carreira das Índias e da exploração do litoral africano. Assim, nem a administração portuguesa e nem a burguesia metropolitana se dispunham a transferir recursos, homens e navios para a ocupação da Nova Terra. Nos trinta primeiros anos de nossa história após a chegada dos portugueses, o governo português se limitou a enviar expedições exploratórias e de reconhecimento ao litoral do Brasil, que buscavam também madeira tintorial, papagaios e pimenta.   

Bibliografia consultada: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa - o Brasil Colônia - 1500/1750. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 54.

Os Homens e os Tempos

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

#15Fatos O Marginal Medieval

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Russell Crowe como protagonista do filme Robin Hood, de 2010. Herói no imaginário popular, Robin Hood teria sido um fora-da-lei e, portanto, marginal. Ele teria vivido na Inglaterra do rei Ricardo Coração de Leão (séc. XII).

1. Durante o milênio medieval, as estruturas de organização social, os modelos administrativos e as formas de governo amadureceram. Para além disso, o ritmo dessas transformações dependia das zonas de evolução do continente europeu e, a par delas, o fenômeno da marginalização assumiu novas formas. A condição natural do homem era viver no território de origem, vivendo numa comunidade de vizinhos e perto dos túmulos dos pais. No entanto, as sociedades medievais estavam longe da estabilidade espacial e, nesse contexto, surgiu a figura do exilado (também um alvo da exclusão do direito à paz e privação dos direitos naturais do homem). 

2. Embora o viajante pareça concretizar plenamente o ideal do cristão enquanto «viator» na vida terrena, no próprio conceito de viagem está inserido um fator de marginalização ou, pelo menos, o risco de marginalização. O homem que abandona o seu ambiente natural expõe-se aos perigos do caminho, estabelecerá relações com desconhecidos e irá ao encontro das armadilhas da natureza. Por isso, quando se organizava uma viagem, tentava-se garantir a continuidade dos laços sociais e, por isso, partia-se em companhia de parentes, amigos ou servos, procurava-se a companhia de grupos, que viajavam juntos ou organizavam-se caravanas de mercadores.
  
3. Ao longo da Idade Média, a Igreja procurou dar aos peregrinos estruturas organizativas destinadas a garantir a «stabilitas in peregrinatione», ou seja, a fazer das peregrinações um elemento da ordem estável. No extremo oposto, a expulsão da comunidade dos fiéis, a proibição de participar nos sacramentos e a exclusão não só do espaço sagrado da igreja e dos locais de culto, mas também de qualquer rito (foi Gregório IX, no século XIII, quem formalizou a distinção entre «excomunatio minor» e «excomunatio maior», sendo esta o único caso que implicava a exclusão total da comunidade cristã), eram, porém, o início de uma marginalização total. 

4. O édito de Hilperico (574), definia os malfeitores como pessoas más, que vagueiam pelos bosques, responsáveis por más ações, sem residência fixa e sem nada que possa ser confiscado em consequência dos seus delitos. Sob este ponto de vista, a inexistência de bens, que deve ser entendida de uma fornia mais dilatada, como ausência de determinadas fontes de rendimento (e é precisamente nisso que se centra a atenção das leis na baixa Idade Média), tem uma certa importância. Todavia, os outros dois fatores referem-se à falta de estabilidade. Nos capitulares de Carlos Magno, revela-se, muitas vezes, desconfiança e hostilidade em relação aos vagabundos e aos viajantes.

5. Na Idade Média, o conceito de marginalização proveniente de metáforas espaciais está relacionado diretamente com o conceito de espaço, interpretado dicotomicamente como «dentro» e «fora», centro e periferia, e contendo um juízo de valor, já que ao primeiro termo dessa dicotomia se atribui um carácter positivo. Esta imagem de diferenciação social sobrepôs-se à organização social, afastando do «centro», ou seja, da sociedade organizada em comunidades familiares ou de grupo, os marginalizados de todos os gêneros: banidos, malfeitores, contestatários, hereges, dissidentes.  

6. Na documentação histórica, os marginalizados deixam poucos vestígios: não estabelecem relações, não herdam nem são heróis de grandes feitos que possam passar à história. Estão presentes, sobretudo, nos arquivos da repressão e, por isso, a imagem que deles temos é uma imagem reflexa que nos dá só a justiça da sociedade organizada, mas também o seu terror e o seu ódio. Assim, as informações referem-se acima de tudo à própria sociedade e aqueles que são objeto de repressão aparecem em segundo plano. Além disso» referem-se mais às normas jurídicas do que às pessoas. Quando os processos judiciais já se encontravam bastante difundidos e se começava a usar os registos judiciários, muitas das controvérsias eram resolvidas por via extrajudicial, sem a redação de qualquer ata. A partir do século XII, surgem na Europa medieval os arquivos da repressão, que se tornam um elemento universal na Idade Média tardia. Esses arquivos fornecem um quadro geral da delinquência medieval e constituem retratos da vida das pessoas marginalizadas.  

7.  Um registo judiciário do Bedfordshire relata uma rixa sangrenta que teve lugar no dia 28 de Abril de 1272, em Dunton. Tratava-se de uns vagabundos — dois homens e duas mulheres — que tinham aparecido naquela região e que tinham tentado, primeiro, vender a pele de um animal e, depois, obter hospitalidade, mas sem o conseguirem. Entre os dois vagabundos estala um conflito e um deles é morto à facada. Uma das mulheres refugia-se então na igreja, utilizando o direito de asilo e, posteriormente, confessará ao coroner que cometeu muitos furtos e que os seus companheiros também são ladrões. O assassino — que foi condenado à forca— é definido como «vagabundo e pessoa não pertencente a nenhuma decúria (tithing)». Do passado desse grupo não se sabe mais nada. Pode apenas acrescentar-se que provinham de várias zonas da Inglaterra, o que reforça a opinião de que se tratava mesmo de vagabundos. Deslocando-se de uma região para outra, viviam do roubo, pediam esmola, caçavam e trabalhavam ocasionalmente. Os grupos formam-se após um encontro no caminho, depois de uma refeição numa estalagem ou, por vezes, na organização de um roubo. Na maior parte dos casos, o delinquente opera sozinho, mas às vezes há grupos de casais. 

8. As pessoas que figuram nos arquivos criminais são, essencialmente, pessoas vulgares, inseridas no mundo do trabalho organizado, em contextos familiares e de boa vizinhança, mas que a um dado momento, e inesperadamente ou gradualmente, romperam com essas estruturas. Para esses, na maior parte dos casos, a marginalização parece ter, porém, um caráter instável, acidental e muito próximo da normalidade. Num dado momento, e inesperadamente ou gradualmente, romperam com essas estruturas. Em 1416, em Paris, foi processado um clérigo, acusado de roubo e homicídio. Tratava-se de um filho bastardo, que desde muito novo gostava dos jogos de azar e que se tinha alistado num destacamento militar. Trabalhara como criado na corte de uma dama. Por conseguinte, era um clérigo, um soldado, um vagabundo e um ator. De tempos a tempos, praticava um roubo e já tinha estado na cadeia pelo menos quatro vezes. É lícito supor que esse «homem de muitos ofícios» tivesse tido longos períodos de vida regrada, pelo menos no sentido em que ganhava para viver e ter uma situação. Assim sendo, os períodos em que violava a lei eram apenas situações acidentais que, em geral, não definiam um estilo de vida? O que é certo é que a sociedade organizada, que ele exprimia e cujo aparelho jurídico-policial protegia, tratava-o como um vagabundo, um indivíduo não estabilizado, um marginal.  

9. Na Idade Média existe também uma categoria de pessoas que poderiam ser definidas como «delinquentes de profissão», isto é, pessoas cuja vida se baseia no crime e que não exercem qualquer outro tipo de atividade. No entanto, é difícil isolá-las de uma forma precisa. A determinados níveis, desaparecem as fronteiras entre delinquência e trabalho. Trata-se, no entanto, de um trabalho de baixo nível, que não corresponde aos critérios da especialização artesanal e que não está organizado corporativamente. Além disso, embora o fato de se fazer parte de um bando de criminosos possa ser considerado um atestado de delinquência profissional, esse tipo de vida pode manter-se apenas durante um certo tempo.    

10. Na Baixa Idade Média, a guerra deu ensejo a processos de marginalização de grande vulto, pelas possibilidades que fornecia de se viver um tipo de vida diferente do tipo de vida dos camponeses e dos artesãos, primeiro em destacamentos militares e, depois, autonomamente. Entre o serviço militar normal e o banditismo, entre uma companhia do exército e um bando de salteadores, as diferenças não eram grandes. Verifica-se um processo de desclassificação: artesãos e comerciantes, filhos de nobres e assalariados rurais, vagabundos e clérigos encontravam na guerra o gosto pela vida fácil e libertavam-se, provisoriamente, da ação das normas sociais e da divisão provocada pelas funções que desempenhavam na sociedade. Mesmo quando há possibilidade de se reassumir um tipo de vida estável, as experiências anteriores e os laços que se criaram levam, inevitavelmente, a um tipo de vida marginal.     

11. Certas profissões que fugiam ao esquema tripartite dos que "oravam", os que "lutavam" e os que "trabalhavam" (trabalho no campo) poderiam ser marginalizadas. Já no direito romano e no direito consuetudinário germânico se consideravam indignos todos os que subiam ao palco para ganhar dinheiro. Nos estatutos dos artesãos das cidades alemãs, está amplamente presente o conceito de profissão indigna que pesa sobre os descendentes. As «boas origens» exigidas pelos estatutos como uma das condições para se obter os direitos corporativos, implicavam a exclusão não só dos filhos ilegítimos ou de pais escravos, mas também dos descendentes de quem pertencia a determinadas categorias profissionais. A longa lista abrange, antes do mais, as profissões de carrasco, carcereiro, ajudante de carrasco, certos funcionários da polícia urbana, coveiro, magarefe, guarda dos banhos públicos, barbeiro, prostituta, chulo, músico, acrobata, bobo, tecelão de tela, pisoeiro e pastor.

12. Quando se fala de condenação, infâmia e marginalização, não se pode prescindir das questões referentes ao corpo, que determinam os efeitos marginalizantes da doença e a condição social dos doentes. A enfermidade tinha um efeito socialmente degradante, pelo menos na medida em que provocava uma identificação da doença com a miséria. A caridade para com os doentes andava a par com o medo do contágio e a aversão e o desprezo para com os aleijados. Os leprosos fornecem-nos um exemplo clássico desse medo do contágio. Saiba mais sobre a marginalização dos leprosos aqui.  

13. Se o processo de marginalização for entendido como fundamentado na exclusão dos laços sociais ou na sua ruptura espontânea, na perda de lugar no mundo do trabalho ou na distribuição de funções sociais, torna-se difícil considerar os mendigos como marginalizados. Os mendigos eram necessários, na medida em que davam a possibilidade de se dar provas de caridade, estavam organizados e viviam de uma maneira estável, respeitando as normas da convivência social. As violentas crises sociais que provocavam um depauperamento periódico ou estável, produziam também alterações na relação com os mendigos; a modificação da doutrina acerca da pobreza, que se verifica no século XIII, traduz precisamente essa situação que leva à propagação de atitudes repressivas e marginalizantes para com os mendigos.  

14. Certas categorias se distinguiam nitidamente: a diferença de cor ou de língua distinguiam as minorias étnicas e um determinado tipo de atividade podia equivaler aos sintomas externos de uma doença ou de uma deficiência. O vestuário era fator de «distinção» mais frequente. No geral, os vagabundos e os malfeitores não se distinguiam, quanto ao vestuário, de todos os que pertencem às classes sociais mais baixas. Apesar disso, pressupunha-se que as vestes esfarrapadas e o bastão — imagens clássicas das gravuras dos séculos posteriores — definiam a pessoa. A orelha cortada permitia reconhecer um ladrão. No caso dos mendigos, os farrapos e o corpo seminu — meios eficazes para se receber esmola — eram sinais evidentes. Os judeus reconheciam-se pelo vestuário: nas regiões alemãs, o barrete pontiagudo era característico, mas o IV Concílio de Latrão, em 1215, introduziu um outro distintivo que, tendo-se espalhado pelos países cristãos, constituía uma marca de infâmia. As prostitutas, em muitos países, precisavam obedecer rigorosamente às normas referentes à maneira de vestir, mas também era obrigatório usarem marcas de identificação. Quanto aos heréticos, o seu sinal de penitência podia ser uma cruz na frente e nas costas do vestuário e a sentença que os condenava previa, entre outras coisas, que estivessem expostos ao público ostentando as marcas da infâmia como, por exemplo, uma mitra na cabeça, a letra «H», etc.  
  
15. É certo que, entre as várias categorias que compunham o mundo da marginalização na Idade Média, existiam diferenças essenciais e, por vezes, capitais. Verifica-se uma certa gradação na exclusão e na segregação; a decadência não era a mesma coisa para o cavaleiro e para o camponês e a marginalização social nem sempre equivalia a exclusão e segregação. As barreiras raramente eram tão rígidas como no caso dos leprosos. No entanto, todas essas categorias de pessoas se caracterizavam pela sua diferente maneira de viver, por não se sujeitarem a normas e modelos de vida estabelecidos e por se recusarem a trabalhar ou a desempenhar uma função social. Os marginalizados encontravam-se juntos também na aversão, na estranheza, no medo e, por vezes, no ódio que a sociedade lhes demonstrava.   
  
Bibliografia consultada: GEREMEK, Bronislaw. In: O Marginal. LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 233-248.