“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Fome no Pós-Guerra

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Mapa da fome, ao final da Primeira Guerra Mundial. Em 1945, várias dessas regiões voltariam a ser assoladas pela escassez de alimentos.

Milhões tinham morrido de fome em certas regiões da União Soviética. Mas havia algo de particular no caso da desnutrição na Holanda: foi o único país da Europa Ocidental submetido à fome como forma deliberada de castigo coletivo. Os eslavos haviam sido submetidos a esse tratamento, mas não europeus ocidentais. 

Fazendo sua parte para ajudar Montgomery em seus desastrosos esforços para construir uma ponte sobre o Reno em Arnhem, em setembro de 1944, trabalhadores ferroviários holandeses entraram em greve. Em retaliação, os alemães cortaram o fornecimento de comida na parte ocidental do país, ainda sob ocupação. Também desligaram a eletricidade, inundaram terras férteis e proibiram cidadãos holandeses de utilizar trens. Para completar, o "inverno de fome" de 1944-45 foi de um frio fora do comum. Dezoito mil pessoas morreram de fome ou foram vítimas de doenças causadas por desnutrição. Os sobreviventes queimavam sua mobília para se aquecer e sobreviviam comendo animais de estimação, se ainda conseguissem encontrá-los, ou cavalos mortos, retalhados assim que desabavam nas ruas, ou sopas feitas de urtigas espinhentas e bulbos de tulipa fritos.

O problema da inanição é que comida demais, ou o tipo errado de alimento, também pode matar uma pessoa. Mesmo os biscoitos distribuídos pelas amistosas tropas canadenses podiam ser catastróficos. Provocavam sede intensa, aliviada com goles de água gelada, o que fazia com que a massa ainda não digerida inchasse, resultando em estômagos perfurados e morte rápida.

Havia fome em quase todas as partes do mundo, nos países libertados e nos derrotados também, onde todos os serviços tinham entrado em colapso, e os dispositivos econômicos normais tinham parado de funcionar. Houve outros lugares, além da Holanda, nos quais a comida teve de ser lançada dos céus. O adolescente no livro de Akiyuki Nosaka Amerika Hijiki vê um bombardeiro americano lançar de paraquedas um tambor de aço. Primeiro os japoneses do vilarejo pensam que poderia ser mais uma bomba devastadora. Eles tinham ouvido falar de Hiroshima. Diziam que lá também a bomba estava presa a um paraquedas. No entanto, quando o recipiente não explodiu, a fome e a curiosidade venceram o medo. Os aldeões o abriram e encontraram pacotes de comida, que presumiram ser destinados aos presos de guerra que estavam em um campo de prisioneiros próximo. Mas esperar caridade de estranhos é pedir demais em áreas de desespero. Os pacotes contêm pão, chocolate e goma de mascar, que as crianças mastigam durante dias, passando os pedaços endurecidos e já sem gosto de boca em boca. Há também um pacote cheio de uma coisa amarronzada, que os aldeões supõem ser alga marinha, ou hijiki, uma iguaria muito apreciada no Japão. Tem um gosto tão ruim, mesmo depois de cozida, e é de tão difícil digestão, que eles se admiram de que os americanos possam tolerá-la. Ainda na suposição de que as folhas escuras de chá fossem "algas americanas", eles acabam por devorar o suprimento inteiro.     

BURUMA, Ian. Ano Zero - Uma História de 1945. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, Cap. 2.

Três Religiões Estatais (séc. XVI)

domingo, 28 de abril de 2024

                  Europa, c. 1560. Clique no mapa.

Em meados do século XVI, portanto, havia três variedades de religião estatal no Ocidente: o catolicismo papal, o cristianismo estatal (luteranismo) e a teocracia calvinista. As três, ao menos em teoria, eram universalistas em seus objetivos: anteviam um futuro e até certo ponto trabalhavam por ele, em que suas doutrinas e instituições seriam impostas a toda a cristandade. Cada qual apresentava um vínculo orgânico com o Estado em que existia. Todas eram religiões compulsórias, reivindicando o monopólio do ministério cristão onde quer que tivessem poder. Lutero, como heresiarca, havia começado pedindo tolerância, insistindo na (esta era uma nova expressão) "liberdade de consciência". Não queria "triunfar pelo fogo, mas pelos escritos". Entre suas proposições condenadas por Roma, figurava: "queimar hereges é contrário à vontade do espírito". O poder secular deveria "ocupar-se de seus próprios negócios, deixando que cada qual acredite no que puder e optar, não se valendo de qualquer força com ninguém a esse respeito". Chegou mesmo, a princípio, a instar que os príncipes fossem tolerantes com os milenaristas, anabatistas e outros do tipo de Munster, "por ser necessário que haja seitas e a palavra de Deus seja alistada e se engaje nas batalhas". Essa moderação inicial não sobreviveu à crescente dependência de Lutero em relação aos príncipes. Com sua doutrina estabelecida como religião estatal, todas as demais formas de cristianismo tiveram de ser eliminadas, ao menos em sua expressão aberta.     

JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Tradução de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 347.

A Visão do Intelectual Ungido

sexta-feira, 26 de abril de 2024

A visão do intelectual ungido não é somente uma visão de sociedade, mas também se comporta como uma visão autoelogiosa dos próprios intelectuais e uma mentalidade de que eles não estão dispostos a abrir mão. Um "respeito decente pelas opiniões da humanidade" - a frase usada na Declaração de Independência dos EUA - não tem hoje mais lugar num mundo pautado pela visão do intelectual ungido. Pelo contrário, pois desafiar o "clamor público" tornou-se um distintivo de honra e a certificação de ser um membro dos intelectuais ungidos. Os protestos das massas não são tratados como avisos importantes, mas como evidências redobradas da superioridade do insight do sujeito, que é compartilhado por outros "bem pensantes". Essa é uma das muitas maneiras pela qual a visão é blindada, afastando-a dos desafios que vêm das experiências mundanas de milhões de pessoas. Além disso, as impetuosas suposições e aspirações do intelectual ungido são amplamente consideradas, por eles e por outros, como o mais nobre idealismo, em vez de egocêntricas indulgências.

Que o mundo seja obrigado a apresentar um cenário que se encaixe em suas preconcepções - caso contrário existe algo de errado com o mundo - não constitui apenas um adorno da intelligentsia, mas se apresenta como base para o estabelecimento de cotas em corporações e em universidades, as quais procuram criar tais cenários, assim como interferir na condução das leis em casos em que se usa a muleta da discriminação sempre que a realidade não se encaixa com o cenário idealizado.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 456.

Cacoetes dos Intelectuais

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Leandro Karnal, "intelectual público" famoso por comentar sobre tudo e rotular aqueles dos quais discorda.

Certamente que muitos intelectuais públicos, ao comentarem sobre questões e eventos que estão fora do escopo de suas respectivas especialidades, nem sempre alcançam a acuidade exigida pelos padrões intelectuais, e isso nos melhores dos casos. No entanto, as muitas violações desses padrões pelos próprios intelectuais têm demonstrado repetidamente a distinção que buscam embaralhar entre o substantivo e o adjetivo. Isso inclui exemplos gritantes de irracionalismo e de "tendências" baseadas em observações distorcidas, como, por exemplo, que o capitalismo tornou os trabalhadores mais pobres, como se eles tivessem sido mais prósperos antes. Tais elucubrações estão carregadas de comparações desprovidas de critério intelectual, como aquela que o professor Lester Thurow pronunciou ao dizer que os Estados Unidos apresentavam o "pior" desempenho, entre as nações industrializadas, quando se tratava de desemprego, citando problemas de desemprego somente nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que ignorava completamente o problema crônico de desemprego muito pior que sofre a Europa ocidental, para não falar de outras regiões. Uma das violações mais comuns dos padrões intelectuais pelos próprios intelectuais é atribuir uma emoção (racismo, machismo, homofobia, xenofobia, etc.) àqueles que detêm pontos de vista diferentes, em vez de responder a seus argumentos.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 442.

Doutrinação durante a Guerra Fria

quarta-feira, 24 de abril de 2024

"As faculdades devem contratar professores vermelhos?" Capa da revista American Legion, 1951. A partir da Guerra Fria, a educação tornou-se um dos espaços privilegiados da guerra cultural promovida pelo marxismo cultural.

A noção de "corrida armamentista", como caracterização negativa no uso da dissuasão militar, foi apenas uma dentre muitas ideias das décadas de 1920 e de 1930 que foram ressuscitadas durante o período da Guerra Fria. Da mesma forma que os sindicatos dos professores franceses tornaram as escolas francesas centros de doutrinação para promoção das agendas pacifistas durante as décadas de 1920 e de 1930, enfatizando os horrores da guerra, também nos Estados Unidos, durante o período da Guerra Fria, as salas de aula norte-americanas se tornaram lugares para doutrinação sobre os horrores da guerra. Dramatizações dos bombardeios nucleares às cidades japonesas foram, por exemplo, encenadas:

Expostas aos detalhes mais medonhos, essas crianças, em geral de classe média alta, eram obrigadas a observar mulheres e crianças japonesas sendo incineradas pela tempestade de fogo acionada pelo bombardeio atômico. Os jovens colavam na cadeira. Soluços podiam ser ouvidos. O ânimo geral provocado na classe pode ser resumido e bem expresso por uma jovem emotiva que perguntou: "Por que nós fizemos isso?". A professora respondeu dizendo: "Fizemos uma vez, podemos fazer novamente. Se essas armas de destruição serão ou não usadas, depende de vocês." E assim se iniciava uma unidade de estudo sobre as armas nucleares.

Levar as crianças às lágrimas nas salas de aula, como parte do processo de doutrinação, já havia feito parte também do modus operandi na França entre as duas Guerras Mundiais:

Por exemplo, numa escola para rapazes em Amiens, os professores perguntavam aos meninos cujos pais haviam sido mortos em combate para que falassem sobre o assunto para a classe. "Mais do que uma lágrima era derramada", relatou o diretor. De forma parecida, uma professora de outra escola primária em Amiens notou que em sua escola uma aluna, em cada seis, perdera o pai entre 1914 e 1918: "A lembrança dos mortos era encenada com a mais comovente reverência", a professora relatou, "e tanto professoras quanto alunas eram unidas pela emoção criada". Outra professora, agora de uma escola para garotas em Pont de Metz, relatou o silêncio solene que, gerado durante a lembrança dos mortos, "era quebrado com os soluços de muitas crianças cujos pais morreram na guerra.

É importante observar que nesse caso, assim como em outros contextos, o erro fatal dos professores esteve em conduzir situações que estavam além de sua competência, uma vez que os professores não têm nenhuma qualificação profissional que os habilite compreender os perigos de manipular as emoções das crianças, nem quaisquer qualificações especiais para compreender as complicações políticas no âmbito internacional, ou quais fatores aumentam e quais diminuem a probabilidade das guerras, muito menos que fatores tendem a levar ao colapso e à derrota, como aconteceu com a França em 1940.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 411-412.

Intelectuais vs "Corrida Armamentista"

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Protesto de alemães ocidentais contra a corrida nuclear, durante a Guerra Fria.

A futilidade de uma "corrida armamentista" foi mais uma característica marcante da década de 1930 que voltou a vigorar na década de 1960, mesmo que um desarmamento unilateral - tanto moral quanto militar - , adotado pelas nações democráticas após o término da Primeira Guerra Mundial, tenha tornado muito favorável, para os poderes do Eixo, a perspectiva de vitória em outra guerra, o que desembocou na Segunda Guerra Mundial. A noção de que uma "corrida armamentista" fomentaria a guerra, que fora o tom dominante entre os intelectuais durante o período entre-guerras, o qual acabou influenciando a condução política, principalmente na figura de Neville Chamberlain, foi restaurada a partir da segunda metade do século XX. Seja qual for a plausibilidade dessa noção, o que parece crucial é que poucos intelectuais sentiram qualquer necessidade de ir além da mera plausibilidade em busca de evidências concretas, a fim de aferir suas suposições, colocando-as sob o crivo da verificação empírica, mas, em vez disso, trataram a questão como um axioma inquestionável.

Assim que a Segunda Guerra Mundial demonstrara, de forma trágica, os perigos das insuficientes políticas de desarmamento e de rearmamento, a ideia sobre a alegada futilidade da corrida armamentista foi descartada. Porém, quando o presidente John F. Kennedy invocou essa lição da Segunda Guerra Mundial ao dizer em seu discurso de posse em 1961 que "não ousaremos tentá-los mostrando fraqueza", apesar de sua juventude ele falava em consonância como uma geração que estava passando, defendendo ideias que seriam, em breve, substituídas por ideias opostas, adotadas ironicamente anos mais tarde por seu irmão mais jovem no Senado dos Estados Unidos. A ideia de força militar como fundação para a paz, a partir do poder dissuasivo para conter potenciais inimigos, caiu em desuso rapidamente a partir da década de 1960, ao menos entre os intelectuais. Em vez disso, durante os longos anos de Guerra Fria entre a União Soviética e os Estados Unidos, acordos para limitação de arsenais foram defendidos por muitos, senão pela maioria, da intelligentsia ocidental.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 399-400.

O "Desarmamento Moral" da França

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Livro didático francês de 1948: instrumento de "desarmamento moral".

Um papel central na disseminação do movimento pacifista na França foi desempenhado pelas escolas ou, mais especificamente, pelos sindicatos de professores franceses, que na década de 1920 deram início a uma série de campanhas organizadas que se opunham aos livros escolares do pós-guerra que retratassem favoravelmente os soldados franceses, os quais haviam defendido seu país contra os invasores alemães durante a Primeira Guerra Mundial. Tais textos foram cunhados de "belicosos", uma tática verba ainda comum entre os integrantes da visão do intelectual ungido, tratando as visões divergentes como se fosse meras emoções, como se nesse caso apenas o estado mental de beligerância explicasse a resistência aos invasores ou se associasse àqueles que arriscaram a vida para defender a nação. O líder do sindicato dos professores, o Syndicat National des Instituteurs (SN), lançou uma campanha contra esses livros escolares de "inspiração belicosa", os quais foram caracterizados como "um perigo para a implantação da paz". Já que era dito que o nacionalismo era uma das causas da guerra, o internacionalismo ou a "imparcialidade" entre as nações foi considerado uma característica necessária a ser adotada nos livros escolares.

Isso não era tido como contrário ao espírito patriótico, mas no mínimo acabou esvaziando o senso de dever perante os que tinham morrido para proteger a nação, com sua obrigação implícita sobre as gerações seguintes para que fizessem o mesmo se e quando isso tornasse novamente necessário.

Os líderes com inclinação para reescrever os livros escolares de história chamaram seu objetivo de "desarmamento moral", o que abriria o caminho para o desarmamento militar, o qual muitos consideravam outro ponto central para a conquista da paz. As listas dos livros censurados nas escolas foram organizados por Georges Lapierre, um dos líderes do SN. Por volta de 1929 ele se gabava de ter removido todos os livros "belicosos", os quais a campanha encabeçada pelo SN tinha retirado das escolas. Esses livros haviam sido reescritos ou substituídos. Diante da ameaça de perder uma boa parte do mercado editorial escolar, os editores franceses submeteram-se às exigências dos sindicatos, determinando que os livros sobre a Primeira Guerra Mundial deveriam ser revisados a fim de refletir a "imparcialidade" entre as nações e promover o pacifismo.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 344-345.

EUA, Guerra e Intervencionismo

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Durante o período relativamente breve do envolvimento militar norte-americano na Primeira Guerra Mundial - um pouco mais de um ano e meio -, um pacote singularmente expressivo de regulamentações federais sobre a condução da vida interna dos Estados Unidos entrou em vigência, confirmando a visão intelectual dos progressistas que viam a guerra como uma oportunidade valiosa para substituição dos processos tradicionais de tomada de decisões, baseados em mecanismos socioeconômicos individuais para a implantação de formas coletivistas de controle e de doutrinação. Assembleias, comissões e comitês foram rapidamente criados e colocados sob a direção do Conselho da Indústria de Guerra, o qual passou a governar boa parte da economia, estabelecendo racionamentos e fixando preços. Enquanto isso, o Comitê de Informação Pública, descrito de forma correta como o "primeiro ministério moderno de propaganda do Ocidente", era criado e administrado pelo progressista George Creel, que tomou como missão tornar a opinião pública uma única e compacta "massa quente" de apoio aos esforços de guerra em nome de "100% de americanismo", rotulando todo aquele que "se recusasse a apoiar o presidente durante essa crise" como "pior que um traidor".     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 332.

A Falácia do Separatismo

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Europa, 1921. Destaque para os novos países (cor amarela).

A ideia de fazer com que cada "povo" tenha sua própria terra ignora tanto a história quanto a demografia, para não falar de economia e segurança militar. As localizações dos povos e das fronteiras nacionais já haviam mudado repetida e drasticamente por toda a história. Boa parte dos territórios no mundo, assim como a maior parte dos territórios desmembrados impérios Habsburgo e Otomano, pertenceram a diferentes soberanias, em diferentes períodos da história. Nesses impérios, o número de cidades com múltiplos nomes provindos de línguas distintas deveria ter funcionado como indicação clara sobre a realidade histórica, assim como as mesquitas convertidas em igrejas convertidas em mesquitas.

A ideia de resgatar minorias oprimidas ignorava o prospecto - até se tornar realidade - de que as minorias oprimidas, ao se tornarem grupo governante de suas próprias nações, iniciariam imediatamente o processo de opressão de outras minorias agora sob seu controle. A solução encontrada por Wilson e aplaudida pelos outros intelectuais se fazia tão ilusória quanto perigosa. Estados pequenos e vulneráveis criados a partir do desmembramento do Império Habsburgo foram posteriormente arrebanhados, um por um, por Hitler durante a década de 1930; uma operação que teria sido muito mais difícil e temerosa caso ele tivesse que enfrentar um Império Habsburgo unido. O dano causado estendeu-se para além dos pequenos estados, pois mesmo um estado maior como a França ficou muito mais vulnerável depois que Hitler tomou controle dos recursos militares e materiais da Tchecoslováquia e da Áustria. Hoje em dia, a Otan é, de fato, uma tentativa de proteger Estados individualmente vulneráveis, agora que os impérios dos quais alguns deles faziam parte foram dissolvidos.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 329-330.

As "Causas Sociais" da Criminalidade

terça-feira, 16 de abril de 2024

A teoria sobre as "causas sociais" da criminalidade tem se mostrado igualmente imune às evidências em ambos os lados do Atlântico. Tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra os índices de criminalidade subiam vertiginosamente bem na mesma época em que as supostas "causas sociais do crime" - pobreza e falta de oportunidades - estavam diminuindo aos olhos de todos. A fim de ridicularizar por completo a teoria das "causas sociais", os distúrbios nos guetos, que varreram muitas cidades nos Estados Unidos na década de 1960, foram muito menos comuns nas cidades dos estados do Sul, onde a discriminação racial ainda era visível. Além disso, o distúrbio mais letal daquela época ocorreu em Detroit, onde o índice de pobreza da população negra estava 50% abaixo da média nacional, ao mesmo tempo que essa cidade apresentava o mais alto índice de conquista de casa própria entre a população negra, considerando todas as cidades dos Estados Unidos, além de o índice de desemprego estar, na época, em Detroit, em apenas 3,4%, um número menor do que o índice nacional de desemprego da população branca do período.

Os distúrbios urbanos fizeram-se mais frequentes durante a administração do presidente Lyndon Johnson, quando foram marcados pela promulgação marcante de uma legislação de direitos civis e uma expansão maciça de programas sociais chamados "guerra contra a pobreza". Por outro lado, tais distúrbios praticamente desapareceram durante os oitos anos de administração Reagan, um período de esvaziamento dos programas sociais.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 303.

Juiz, Intelectual Ungido da Atualidade

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Cafeteria da Constituição Americana: "Mais e mais pessoas estão interessadas em apenas um ou dois itens." A cultura de seletividade em relação àquilo que seria ou não importante na constituição embala o ativismo judicial.

Embora existam muitas controvérsias de natureza judicial sobre questões particulares, a controvérsia mais fundamental a rondar esse campo é a que versa sobre quem deve controlar as leis e quem deve alterá-las. Os intelectuais norte-americanos favorecem, desde pelo menos a metade do século XX e de forma esmagadora, a expansão do papel do juízes, que, segundo eles, devem ultrapassar o âmbito de aplicar as leis criadas por terceiros, refazendo-as para que "estejam apropriadas com os novos tempos", o que vale dizer subordinando a justiça aos interesses da visão predominante da época em questão, a visão do intelectual ungido.

Sempre que a Constituição dos Estados Unidos se apresenta como barreira para o pleno exercício da função expandida dos juízes eles são exortados a "interpretar" a Constituição, entendida como mero conjunto de valores a ser aplicado da forma que os juízes julgarem mais conveniente, atualizando-a sempre que acharem necessário. Nesse caso, a Constituição não é vista como um conjunto de instruções específicas a ser seguido, e é exatamente isso o que significa "ativismo judicial", embora a manipulação retórica tenha conseguido confundir esse sentido com outros.

***

O verdadeiro problema do ativismo judicial é sobre a questão que envolve a fundamentação das decisões dos juízes. Pergunta-se, então, se essas decisões se sustentam em leis criadas por outros, incluindo as assembleias constituintes, ou se, ao contrário, são os próprios juízes que embasam suas decisões em suas concepções sobre "as necessidades da época" e de "justiça social" ou em outras considerações que estão além do que está escrito na lei ou nos precedentes legais.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 260 e p. 265.

Os Intelectuais e o Ativismo Judicial

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Por vezes, a "dificuldade" em se mudar as leis e especialmente a dificuldade em se criar emendas constitucionais é invocada como razão para justificar por que os juízes devem se tornar os agentes que aceleram as mudanças. Por exemplo, Herbert Croly, o editor-chefe da revista New Republic, disse, em seu clássico da era progressista, The Promise of American Life, o seguinte: "No final, todo governo popular deveria, depois de uma deliberação necessariamente estudada, consolidar o poder para ser capaz de tomar qualquer ação necessária, sempre que o bem-estar público está em jogo, segundo a maioria da população". Ele completou: "Isso não é possível com um governo subordinado ao controle da Constituição Federal". Ele deplorava o que chamava de "a imutabilidade da Constituição". Muitos outros, depois dele, avançaram na tese sobre a dificuldade de se criar emendas constitucionais. Mas dificuldade não é algo que seja determinado pela frequência. Se as pessoas não querem uma coisa em particular, mesmo que a intelligentsia a considere desejável ou até imperativa, isso não é uma dificuldade. Isso é democracia.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 250.

Os Intelectuais e a Justiça

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Durante a segunda metade do século XX, a visão sobre a justiça como algo a ser deliberadamente moldado segundo o espírito dos tempos, da forma como é interpretado pelas elites intelectuais, tornou-se muito comum entre juízes e nas principais escolas de direito. O professor Ronald Dworkin, da Universidade de Oxford, condensou essa abordagem quando descartou a evolução sistêmica do direito como uma "crença tola" baseada no "caótico e no desordenado andamento da história". Ao fazer isso, o professor iguala processos sistêmicos ao caos, da mesma forma que fazem aqueles que promovem o estabelecimento de um planejamento econômico centralizado, em vez de confiarem nas interações sistêmicas dos mercados. Em ambos os casos, a preferência é pela imposição da visão da elite, passando por cima, se necessário, das visões que abarcam e integram o conjunto da sociedade, mas como o professor Dworkin também disse, "uma sociedade mais igual é uma sociedade melhor, mesmo quando seus cidadãos preferem a desigualdade".     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 250.

Entrevista: Jacques Barzun

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Há exatos 22 anos, a revista Veja, em sua edição 1746, publicava uma entrevista inesquecível. Em quatro páginas, que disponibilizo aqui, o historiador franco-americano Jacques Barzun Martin (1907-2012) nos brinda com sua erudição, contundência e coragem para enfrentar o politicamente correto. Tive a oportunidade de ler a entrevista quando cursava o 1º ano do Ensino Médio e, depois, na graduação, pude ler Da Alvorada à Decadência. A propósito, essa tem sido uma obra que amo tanto que, mais tarde, comprei a edição portuguesa (Gradiva, 2003), superior em todos os aspectos à edição publicada pela editora Campus.   

Google Maps das Eleições 2022

terça-feira, 9 de abril de 2024

 

As polêmicas atuais entre o bilionário Elon Musk e o ministro do STF, Alexandre de Moraes, reacenderam as discussões sobre o último processo eleitoral brasileiro. Assim, sugiro uma ferramenta criada à época para indicar todas as seções eleitorais onde o candidato à presidência Jair Bolsonaro não teria recebido um voto sequer. Lembrando que os dados são auditados diretamente no site do TSE. Acesse:

Google Maps das Eleições Presidenciais

A Hipocrisia dos Intelectuais

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Notícia de 1/4/2024: barbárie ignorada pela intelligentsia ocidental. 

As dimensões morais também podem exercer uma grande atração sobre a intelligentsia. Oportunidades para se fazer moralmente superior diante dos outros, por vezes incluindo toda a sociedade, são ferozmente cobiçadas, seja na oposição às formas mais duras de punição criminal, seja denunciando a destruição de Hiroshima e Nagasaki ou na insistência em se adotar as determinações da Convenção de Genebra aos terroristas capturados, os quais nem aceitam os termos da convenção nem são por ela referidos. Padrões morais duplos, denunciando os Estados Unidos por ações que são quase por completo ignoradas quando cometidas da mesma maneira ou de forma pior por outros países, são defendidos sob a alegação de que deveríamos ter padrões morais superiores. Dentro dessa lógica, um comentário acidental pode vir a ser tomado como "racista" e provocar mais indignação na mídia dos Estados Unidos do que a decapitação de pessoas inocentes perpetrada por terroristas, os quais divulgam as imagens para públicos sedentos no Oriente Médio.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 236.

Intelectuais a serviço da manipulação

terça-feira, 2 de abril de 2024

Embora J. A. Schumpeter tenha dito que "a primeira coisa que um homem fará por seus ideais é mentir", também disse que uma área científica só se configura como tal com a constituição de "regras de procedimento" as quais podem "eliminar erros ideologicamente condicionados" em uma análise qualquer. Tais regras de procedimento são o reconhecimento implícito da falibilidade de que se impõe sobre nossa objetividade e nossa imparcialidade.

Um cientista que manipulasse os fatos a fim de favorecer uma teoria de sua preferência sobre o câncer seria considerado uma aberração e ficaria completamente desacreditado, assim como um engenheiro que fizesse o mesmo ao construir uma ponte. Este poderia ser até processado por negligência criminosa caso a ponte viesse a desabar, matando pessoas. Contudo, aqueles intelectuais cujo trabalho é tido como "engenharia social" não precisam enfrentar essas responsabilidades, mas, pelo contrário, a maioria dos casos está isenta de quaisquer responsabilidades, mesmo quando a manipulação dos fatos desemboca em verdadeiros desastres sociais.

O fato de tantos intelectuais fazerem uso do discurso sobre uma inalcançável objetividade e imparcialidade pessoal como motivo para justificar a manipulação fraudulenta que fazem dos fatos, tornando seus argumentos plausíveis, mostra, uma vez mais, o quanto a capacidade intelectual deles está a serviço da manipulação retórica e o quanto lhes falta de sabedoria. Em última instância, a questão não é sobre ser ou não "justo", contemplando "ambos os lados", mas o que é muito mais importante é ser honesto com o leitor, o qual, afinal de contas, não pagou para aprender sobre o psiquismo ou a ideologia do escritor, mas para adquirir algum conhecimento real sobre o mundo. Como Jean-François Revel coloca: "Eu não gastei sessenta centavos para ser informado sobre as vibrações emanadas pela alma desse correspondente espanhol."

Aqueles intelectuais que resolvem manipular os fatos, favorecendo os interesses de sua visão pessoal, negam aos outros o direito que têm de acessar o mundo tal como se apresenta e assim prejudicam que outros tirem suas próprias conclusões. Ter ou expressar uma opinião é algo que difere completamente da prática de bloqueio sistemático da informação, a qual impede que terceiros possam formar suas próprias opiniões.     

SOWELL, Thomas. Os Intelectuais e a Sociedade. Tradução de Maurício G. Righi. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 228-229.