“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

«Racismos»: Introdução

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

1. Francisco Bethencourt rompe com o consenso de que a teoria de raças antecedeu o racismo, contesta o atual revisionismo acadêmico, que remonta a invenção do racismo à Antiguidade Clássica; e rejeita a ideia do racismo como fenômeno inato partilhado por toda a humanidade. Determinadas configurações de racismo só podem ser explicadas com a pesquisa de conjunturas históricas. O racismo é relacional e sofre alterações com o tempo, não podendo ser compreendido na sua totalidade através do estudo segmentado de breves períodos temporais, de regiões específicas ou de vítimas recorrentes (judeus ou negros, por exemplo).

2. O conceito de racismo - preconceito em relação às ascendência étnica combinado com ação discriminatória - serve de base para essa abordagem de "longa duração". A pesquisa se concentra no mundo ocidental, desde as Cruzadas até o século XX. Não se defende que a realidade do racismo seja exclusiva dessa zona do globo; a Europa limita-se a fornecer um cenário relativamente consistente, que será comparado com outras partes do mundo. A pesquisa de Bethencourt baseia-se na hipótese de que, ao longo da história, o racismo na forma de preconceito étnico associado a ações discriminatórias foi motivado por projetos políticos.

3. QUESTIONAMENTOS. Uma mesma pessoa pode ser considerada negra nos Estados Unidos, de cor no Caribe e branca no Brasil. Como isso é possível? Parece óbvio que as classificações raciais têm um poder imenso de escalonar os grupos sociais, bem como de impor limitações e oportunidades às populações dos países envolvidos. Os principais estudos sobre o racismo (de Pierre van den Berghe, Carl Degler e George M. Frederickson) identificam percepções raciais comuns e divergentes nos Estados Unidos e no Brasil - no primeiro caso, uma gota de sangue africano define um indivíduo como negro; entre os brasileiros, contudo, o status de classe média embraquece a tez humana. 

4. Para Bethencourt, no entanto, tanto os antecedentes históricos como as formas de classificação em constante mudança careciam de uma explicação mais atenta. Chama a atenção, na atualidade, que a Frana tenha abolido a classificação racial, vista como reforço dos preconceitos racistas, ao passo que nos Estados Unidos a classificação racial faz parte de todos os inquéritos burocráticos, em especial no caso de quem busca entrar no país. Ao mesmo tempo, os afro-americanos apropriaram-se do termo "raça" como expressão de identidade coletiva e como ferramenta política. 

5. O questionamento que inspirou a obra Racismos se baseava apenas na cor da pele; não eram incluídos, por exemplo, os nativos americanos. Onde e como se inventou o conceito de pele-vermelha? Como é possível manter o contraste entre pele negra e branca, considerando a imensidão de gradações, tanto na África como na Europa? As classificações raciais, formuladas na Europa e nos Estados Unidos (séculos XVIII e XIX) com objetivos científicos, ambicionavam incluir todos os povos do mundo numa disposição relacional sistêmica e hierárquica. Isso ultrapassava muito a simples variação do tom da pele.

6. Assim, surgiram outros questionamentos: como se produziam os sistemas de classificação racial? Como esses sistemas variavam no tempo e no espaço? Até que ponto moldaram as ações humanas? Como foram as classificações raciais influenciadas pelos conflitos e pelos interesses sociais? Como as hierarquias raciais refletiram os preconceitos e estimularam a ação discriminatória? 

7. Os judeus, por exemplo, raras vezes foram definidos pela cor da pele, e nem foram incluídos nas muitas teorias de raças desenvolvidas nos séculos XVIII e XIX. Contudo, eles foram o principal alvo de extermínio racial na Alemanha nazista. Foi por isso que Bethencourt decidiu estudar o racismo como prática de discriminação e de segregação - seu escopo extrapola os limites da história intelectual. As práticas, os estereótipos e as ideias classificatórias precisam ser compreendidos como aspectos interligados. Há que se afastar de uma perspectivas de racismo linear e cumulativo.

8. INTERPRETAÇÕES. O preconceito em relação à ascendência étnica combinado com a ação discriminatória sempre existiu em diversos períodos da história. Ele apenas recebeu um impacto crítico da estrutura científica veiculada pela teoria de raças. Os conceitos de sangue e de ascendência já desempenhavam um papel central nas formas medievais de identificação coletiva, ao passo que o moderno antagonismo étnico e racial foi, em grande medida, inspirado nos conflitos religiosos tradicionais.

9. A visão da história do racismo numa estrutura compartimentada foi questionada por Frederickson. Esse autor distingue o racismo informal, praticado pelos grupos sociais na vida cotidiana, do racismo institucional, patrocinado pelo Estado e assumindo a forma de política oficial (como no Sul dos Estados Unidos, na Alemanha e na África do Sul). O racismo institucionalizado foi destruído entre 1945 e 1994, mas o racismo informal persiste. Ainda segundo esse autor, a religião foi fundamental para a criação dos preconceitos medievais e do início da era moderna, além das ações discriminatórias. Por outro lado, a ideia de uma hierarquia natural de raças, legitimada pela ciência, influenciou as modernas ações políticas.

10. As manifestações modernas de racismo, em especial contra armênios e judeus, mostram que a separação entre hierarquias religiosas e naturais é muito menos clara do que se costuma afirmar. O racismo é relacional, colocando grupos específicos em hierarquias contextualizadas de acordo com objetivos concretos. Há que se considerar ainda o impacto do nacionalismo, um fenômeno crucial entre as décadas de 1840 e de 1940, algo que cada vez mais leva a trocas produtivas entre os historiadores do racismo e do nacionalismo. A fusão entre nacionalismo e racismo marcou o Império Russo, com progroms regulares e deportações em massa de populações étnico-religiosas durante os séculos XIX e XX; o Império Otomano, com políticas que excluíam minorias; e a Alemanha nazista, um caso extremo.

11. A abordagem imanente, que encara o racismo como parte integrante da condição humana, deve ser rejeitada por não se basear em dados científicos ou históricos. A interpretação marxista - uma atualização inteligente da noção aristotélica de escravidão natural - padece pelo seu âmbito limitado e pelo seu reduzido poder explicativo. Está exclusivamente associada às relações econômicas, e não fornece uma explicação em nível global. As abordagens políticas e sociais sugerem melhores modelos interpretativos. Os preconceitos quanto à ascendência étnica combinados com ações discriminatórias são associados a projetos políticos, mesmo que nem sempre sejam integrados e institucionalizados pelo Estado.

12. Os termos "racista" e "racismo" foram criados recentemente, em finais do século XIX e início do XX, para designar aqueles que promoviam a teoria racial combinada com a hierarquia de raças. Nas décadas de 1920 e de 1930, esses termos assumiram o sentido de hostilidade contra grupos raciais. Mais tarde, nos anos 1930 e 1950, foram cunhados, respectivamente, os antônimos "antirracista" e "antirracismo". Surgiram para manifestar o protesto político contra os preconceitos, a discriminação e a segregação raciais. A queda do Terceiro Reich, ao final da Segunda Guerra Mundial, expôs como os preconceitos raciais haviam sido transformados em ações políticas de extermínio numa escala sem precedentes. Isso favoreceu o antirracismo, que é agora a norma.

13. SEMÂNTICA. "Racismo" adquiriu de imediato um conteúdo específico, mas o significado do termo "raça" é extremamente instável. A palavra começou a ser usada na Idade Média, como sinônimo de casta, aplicada à cultura de plantas e à criação de animais. No fim do Medievo, significava linhagem nobre na Itália e na França. Durante a longa contenda ibérica entre cristãos e muçulmanos, seguida da expansão ultramarina, o termo "raça" adquiriu um sentido étnico - direcionado inicialmente aos descendentes de judeus e de muçulmanos, e depois estendido aos africanos e aos ameríndios. No século XVIII, o termo "raça" era usado na Europa para referir o sexo feminino e, de um modo geral, para indicar variedades de seres humanos. A partir de fins do século XIX, o triunfo do nacionalismo no Ocidente levou o termo "raça" a se equiparar à nação.

14. Atualmente, os cientistas contestam a base biológica da raça, pois a variação genética dentro das "raças" consideradas nos parâmetros tradicionais é maior do que entre raças distintas. Assim, "etnia" passou a ser usado de preferência por antropólogos, historiadores e outros pesquisadores. Faz-se necessário reavaliar o conceito de identidade como percepção relacional de pertencimento que afeta indivíduos, grupos e comunidades ao longo do tempo bem como nos diversos locais, num processo sistemático de construção e reconstrução. O racismo certamente exerceu um papel de destaque entre os grupos-alvo, originando relações complexas de identidades resistentes.

15. ABRANGÊNCIA. A expansão ultramarina europeia levou a uma nova geografia, a uma nova cartografia e a uma nova percepção dos povos de todo o mundo - tudo isso avaliado segundo os parâmetros e as necessidades europeias. A parte I do livro abrange o contexto histórico mais vasto da Antiguidade Clássica, das invasões bárbaras e da expansão muçulmana. A parte II analisa a visão europeia dos povos e da humanidade no início da Era Moderna. A parte III discute as sociedades coloniais desde o século XVI até o XIX. A parte IV analisa as teorias das raças, além do seu impacto nas sociedades e nas políticas dos séculos XVIII e XIX. A parte V trata do desenvolvimento das políticas raciais em países específicos (Império Otomano, Alemanha nazista, União Soviética, etc.) a partir de finais do século XIX.  

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 21-34.

Um "Selvagem" nas Cortes Europeias

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Arrigo peloso, Pietro matto, Amon nano, 1598-9, óleo sobre tela de Agostino Carracci, 97 X 130 cm. Nápoles, Museo di Capodimonte, n. inv. Q369.

Desde os tempos gregos e romanos, o continente africano foi identificado como a fronteira entre as sociedades policiadas e as bárbaras, exposto a ermos e a regiões inóspitas. As condições supostamente extremas de clima e de solo sustentavam a ideia europeia de monstros e selvagens usada para refletir sobre as fronteiras entre a cultura e a natureza, o humano e o animal, as sociedades controladas e a selvageria. O caso de um suposto "homem selvagem" também surge na sociedade cortesã europeia do século XVI.

Trata-se de um guanche, um nativo das ilhas Canárias, certamente não negro, mas ainda assim ligado à África segundo a percepção europeia. Pedro Gonzalez, nascido por volta de 1537 em Tenerife, nas ilhas Canárias, afirmava ser de ascendência principesca. Sofria de um distúrbio genético particular, hypertrichosis universalis congenita, que o destacou ao longo de toda a vida: tinha pelos que lhe cresciam por todo o rosto, orelhas, costas, peito, braços, mãos, dedos, coxas e pernas. Só a palma das mãos, a planta dos pés e os lábios não eram cobertos de pelos. A aparência de Gonzalez correspondia à imagem mítica do homem selvagem (homo silvestris ou silvaticus, a origem etimológica de selvagem) criada na Antiguidade Clássica para servir de apoio à reflexão sobre a diferença entre cultura e natureza, seres humanos que viviam em comunidade e humanos que viviam nas regiões selvagens. A imagem do selvagem nu, de corpo coberto de pelos compridos, o espírito entregue aos instintos e sentimentos mais básicos, uma figura próxima do estereótipo medieval do gigante, fora renovada no século XV, por coincidência, quando da conquista das ilhas Canárias. A recuperação do tema foi claramente expressa pelas enormes esculturas colocadas na entrada da faculdade de San Gregorio, em Valladolid.

A aparência de Gonzalez suscitou uma enorme curiosidade na corte real francesa, quando ele foi oferecido a Henrique II, com dez anos de idade. "Pierre sauvage", como era conhecido à época, foi educado. Aprendeu latim e saiu-se tão bem que alcançou uma boa posição na corte como escanção (perito em vinho). Após a morte infeliz de Henrique II, Gonzalez provavelmente passou para a casa de Catarina de Médici. Por volta de 1573, casou-se com uma francesa, Catarina, com quem teve cinco filhos (os quais, talvez com a exceção do último, herdaram o seu problema genético).

Em 1589, com a morte de Catarina de Médici, Gonzalez seguiu para Parma, onde Alexandre Farnese passou a ser o seu novo patrono. Gonzalez foi registrado como "Don Pietro Gonzales Selvaggio" na corte de Parma. Isso significa que o título aristocrático espanhol "don" ficaria associado à vida de Gonzalez junto com a palavra "selvagem". Em 1592, nasceu o seu sexto filho (também ele peludo). Mais uma vez, Gonzalez foi exibido como caso curioso e valioso, resgatado de uma condição quase animalesca.

A família Gonzalez tornou-se uma das mais representadas na Europa de finais do século XVI. No entanto, o extraordinário quadro de Agostino Carracci, executado em 1598-9 e intitulado Arrigo peloso, Pietro matto, Amon nano (Henrique peludo, Pedro louco, Amon anão) no inventário de 1644 explicava a função do "selvagem" peludo na corte: Arrigo era representado com um tamarco (um sobretudo de pele de cabra usado nas ilhas Canárias), junto com um anão, um bobo, dois macacos, dois cães e um papagaio. Resumidamente, surgia ao lado de seres humanos identificados (e troçados) pelas suas "deformidades" físicas e mentais - todos usados como acessórios de luxo na corte e exibidos como fenômenos bizarros do mundo natural.  

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 136-139.

«Racismos, das Cruzadas ao Século XX»

domingo, 29 de dezembro de 2019

Baixe essa obra gratuitamente aqui.

"Africanização": São Maurício e outros

sábado, 28 de dezembro de 2019

Estátua de são Maurício, catedral de Magdeburgo, Alemanha, séc. XIII.

As ideias ecumênicas tiveram uma influência significativa na Europa Ocidental, espalhando-se juntamente com a difusão dos ritos e dos símbolos do Império Bizantino e sendo absorvidas em diferentes graus pelas cortes reais e pelo Sacro Império Romano. Os projetos imperiais na Sicília realçavam diferentes tipos humanos, incluindo os africanos negros, como símbolos de reivindicações universais, criando o cenário para a imagética política posta em circulação pelo imperador Frederico II. Entretanto, a imagem da rainha de Sabá, representada como símbolo da nobreza que desejava converter-se ao cristianismo, começou a escurecer, acabando por se tornar negra. A placa de esmalte de Nicolau de Verdun, Salomão e a rainha de Sabá, no Capítulo de Klosterneuburg (1181), é um dos primeiros exemplos, mas a extraordinária ilustração no manuscrito iluminado por Conrado Kyeser antes de 1405, no qual se mostra uma rainha negra com cabelo louro, suscita a questão do contraste simbólico de cores. No longo prazo sobressai a ambiguidade visual, já que a negra sensual e tentadora está justaposta ao que antes fora um símbolo de virtude religiosa. 

Também no século XIII, os três reis magos começaram a ser associados às três partes do mundo, embora os seus nomes, que não foram registrados nos evangelhos, viessem a ser permutáveis, bem como as supostas regiões de origem: Melchior, que oferecia ouro, seria representado por um idoso europeu de barba branca comprida; Gaspar, que levava incenso, era representado como um asiático jovem de túnica e, mais tarde, de turbante; e Baltazar, com a sua mirra, era representado com pele trigueira, tornando-se negro no século XIII. A pintura em Würzburg, na capela de Santa Maria (1514), é um dos melhores exemplos dessa tradição, bem representada pelo retábulo de Polling (1444).

A "africanização" de um dos três reis magos acompanhou a "africanização" de são Maurício, um mártir da Legião de Tebas que foi condenado à morte no Império Romano entre 386 e 392 por se recusar a renegar o cristianismo. Logo o santo passou a ser objeto de um culto que justificou a fundação da abadia de Agaune (1515). O cavaleiro-santo tornou-se extremamente importante durante a instabilidade militar da Idade Média como alternativa ao são Jorge "inglês" ou ao são Tiago "hispânico": o seu nome foi atribuído a 62 comunas no território da atual França, tornando-se indissociável do exército franco. Otto I da Saxônia escolheu-o como santo padroeiro do Sacro Império Romano (a Federação Suíça escolheu-o para a mesma função); a expansão oriental alemã contra os eslavos e os húngaros foi realizada sob o seu patrocínio.

Originalmente um santo branco, Maurício só começou a se tornar negro no século XIII (ver acima, sua estátua na catedral de Magdeburgo). Ele foi representado como negro sobretudo na Alemanha e na Europa Central e Setentrional. Na França, em Flandres e na Itália (onde, ao norte, foi criada uma ordem militar em seu nome), Maurício permaneceu branco. O apoio do imperador foi fundamental para a aquisição e a oferta das relíquias do santo aos principais centros do seu culto. Muitas pinturas, esculturas, textos iluminados e, mais tarde, gravuras do santo foram encomendadas pelas elites imperial, religiosa e locais. 

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 74-75.

Como o Totalitarismo Destruiu o Estado

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Talvez o desenvolvimento mais importante da política moderna tenha sido a emergência de sistemas políticos com um vício oposto ao criticado por Hegel: o vício de não dissolver o Estado na sociedade civil, mas de absorver a sociedade civil no Estado. Esse vício foi exibido pelos jacobinos, que efetivamente proscreveram todas as associações que eles não controlavam, e foi a política consciente dos comunistas na União Soviética e seu império. Todas as instituições autônomas (as "corporações" de Hegel) - que são o âmago da sociedade civil - foram subvertidas, e nenhuma associação era permitida, a menos que estivesse sob o controle do Partido, que também controlava o Estado. A história do totalitarismo confirma as duas principais concepções da filosofia política de Hegel: a teoria de que Estado e sociedade civil só podem florescer quando não são confundidos e a teoria de que o Estado, em sua forma concreta, possui a identidade e a autoridade de uma pessoa jurídica. Precisamente ao usar o Estado para suprimir todas as corporações e associações autônomas, os totalitaristas colocaram uma máquina impessoal e irresponsável no lugar do governo responsável. Ao destruir a liberdade dos cidadãos, incluindo a liberdade de associação, também destruíram a personalidade do Estado, que se tornou uma espécie de máscara usada pelo conspiratório Partido. 

SCRUTON, Roger. Conservadorismo - um convite à grande tradição. Tradução de Alessandra Borruquer. Rio de Janeiro: Record, 2019, p. 55.

#HJ21 O Grão-Rabino e o Bispo

domingo, 22 de dezembro de 2019

Foto meramente ilustrativa.

Sucedeu outrora que o grão-rabino de Varsóvia, convidado para um banquete oficial, se encontrasse à mesa, ao lado do bispo da cidade. Este, contando divertir-se à custa do velho judeu, incitava-o a servir-se dos hors d' oeuvre, que consistiam principalmente em presunto com temperos fortes.

- Muito obrigado, reverendo - replicou o rabi. - Não sabe que esse prato é proibido pela minha religião?

- Deveras? - disse o bispo. -  Que religião extravagante! Este presunto é uma delícia.

Findo o banquete, o rabi despediu-se cortesmente do vizinho e acrescentou:

- Queira Vossa Reverendíssima apresentar os meus respeitos à sua esposa.

- À minha esposa? - exclamou o bispo horrorizado. - Não sabe que a minha religião proíbe o casamento aos sacerdotes?

- Deveras? - murmurou o rabi. - Que religião extravagante! Uma esposa é uma delícia! 

FINZI, Patricia et al. (edição, seleção e textos). Do Éden ao divã - Humor Judaico. São Paulo: Shalom, 1990, p. 59.

O Ressurgimento da Eugenia

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

A logomarca do programa da eugenia. Saiba aqui como o movimento para criar seres humanos "melhores" nos Estados Unidos influenciou Hilter.

A questão do aborto seletivo (para obter o filho homem) que atormenta a China e a Índia, criou grandes perplexidades entre as feministas, reforçando a dúvida sobre uma palavra de ordem que até há pouco parecia intocável, e que ainda o é para os organismos internacionais: a liberdade de escolha das mulheres.

Partir, por exemplo, da convicção de que as mulheres são sempre capazes de escolher "justa" e responsavelmente aparece como um wishful thinking (pensamento ilusório) mais que como uma realidade. Na prática, as mulheres ficam sozinhas, com sua tremenda carga de responsabilidade, frente ao desejo individual, às pressões culturais, à exigência do mercado e às opções oferecidas pela ciência médica. Além disso, as tecnologias reprodutivas se encaminham cada vez mais para a seleção das características genéticas, voltando a trazer o velho fantasma da eugenia. A mesma pré-seleção do sexo é uma forma fraca de eugenia, o mesmo que, no caso da procriação assistida, tende a sê-lo o diagnóstico de pré-implantação.

Assim, aumenta o temor de que, sobretudo nos países em desenvolvimento, o controle do crescimento da população se transforme no controle da "qualidade da população". O fantasma da eugenia, que parecia definitivamente, volta dissimuladamente pelo progressivo deslocamento das fronteiras biomédicas e pela afirmação da "livre escolha". Se no Ocidente a eugenia se disfarça de opção individual feminina, nos países pobres os perigos da manipulação sobre o corpo individual e social, da parte dos governos e dos poderes fortes, são enormes, sobretudo pela fragilidade ou ausência da opinião pública e de um sistema político democrático que funcione como contrapeso.     

Adaptado de ROCCELLA, Eugenia; SCARAFFIA, LucettaContra o Cristianismo: a ONU e a União Européia como nova ideologia. Tradução de Rudy Albino de Assunção. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014, p. 160-161.

A ONU contra a Liberdade Religiosa

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

A Igreja do Pastor Atuante - A Igreja Secular:
Engajamento político e social
Atividades culturais
Sem religião 

O princípio da liberdade religiosa - originalmente definido como o direito a mudar de religião, em referência à opção religiosa como livre opção pessoal - foi fortemente limitado. Esta atitude cerceadora tornou-se uma constante da política religiosa da ONU, como se pode deduzir do comentário do artigo 18 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP, vigente desde 1976). Em tal artigo, os especialistas distinguiram a liberdade de pensamento, de consciência e de religião, e a liberdade de manifestar a própria religião ou convicção. Por outro lado, o pacto não especifica em parte alguma a necessidade de separar o Estado das instituições religiosas, não se opondo assim à tradição islâmica.

Estas regras tendem a confundir proselitismo e incitação à discriminação e à violência. Parecem resultar de uma aliança entre os países islâmicos, contrários a conceder a liberdade religiosa em seus territórios, e os países laicos (como a França), que são contrários a toda forma de "missão" religiosa em seu interior.

As religiões são colocadas todas no mesmo plano. Muitas vezes, nos documentos oficiais, é reforçado que quem considera verdadeira a própria religião em detrimento das outras é culpável de fanatismo, ainda que sua atitude não contemple o recurso à discriminação e à violência. Nesse sentido, as religiões mais penalizadas são aquelas que se destacam por seu intenso fervor missionário, tais como as testemunhas de Jeová, os mórmons e os adventistas do sétimo dia, por exemplo.

É importante destacar que a Igreja Católica atual, principalmente sob a liderança do papa Francisco, tem relacionado cada vez mais o proselitismo ao fanatismo. Assim, no dia 13 de outubro de 2016, o sumo pontífice declarou a cerca de mil luteranos em visita ao Vaticano que as tentativas de proselitismo seriam "o maior veneno contra o caminho ecumênico". Tal posição foi reiterada dias depois, em seu discurso do dia 10 de novembro de 2016, Aos participantes na Plenária do Pontifício Conselho para Promoção da Unidade dos Cristãos (disponível aqui, ver o último parágrafo).

A atitude de tolerância para com a religião somente com a condição de que todas as religiões sejam consideradas do mesmo modo, tornou a ONU predisposta para com todas as organizações inter-religiosas, inclusive para aquelas que não agem somente a favor do diálogo, mas que se propõem substituir as religiões tradicionais por uma religião única, mundial, que compreenda todas. É a concretização do projeto da "Igreja Secular", conforme retratada no cartum do topo deste post.     

Bibliografia consultada: ROCCELLA, Eugenia; SCARAFFIA, LucettaContra o Cristianismo: a ONU e a União Européia como nova ideologia. Tradução de Rudy Albino de Assunção. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014, p. 59-60.

A Santa Sé e a ONU

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O papa Francisco discursa na abertura da Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, na sede das Nações Unidas. Nova York, EUA, 25 de setembro de 2015.

A Santa Sé - através do Estado da Cidade do Vaticano - sempre ocupou uma cadeira na ONU como observador permanente de um Estado não membro (NMSPO). Essa designação - NMSPO - chama a atenção, uma vez que não existe uma norma que regule tal qualificação. Não ser membro é uma opção da Santa Sé, que preza por manter a própria neutralidade nos problemas políticos específicos. Apesar disso, o Vaticano incorporou muitas das mais importantes convenções internacionais, é membro de muitas entidades intergovernamentais da ONU, e participa ativamente como observador em numerosas agências especializadas (FAO, OIT, UNESCO, etc.) e nas organizações intergovernamentais continentais (OEA e União Europeia, por exemplo).

Nestes contextos, a Santa Sé discute ativamente os projetos que considera negativos para a humanidade, começando pelos relativos a um controle maciço dos nascimentos (mediante a legalização do aborto) e a definição de gênero em substituição à tradicional polaridade sexual. Tal postura, como se sabe, tem suscitado a ira de indivíduos e organizações progressistas, muitos dos quais exercem a sua pressão sobre a ONU para que o status da Santa Sé seja, de algum modo, rebaixado. 

Não tem funcionado. Por ocasião dos quarenta anos da presença da Santa Sé  na ONU (11 de julho de 2004), os 191 países membros adotaram, unanimemente, uma resolução que reconheceu à Santa Sé o direito a uma participação mais ativa nos trabalhos da Assembleia. Assim, a Santa Sé obteve o reforço de seu próprio status na ONU.

Desde a visita de Paulo VI à ONU, em 1965, a Igreja Católica assumiu uma posição favorável à Declaração de 1948. Além disso, manifestou muitas vezes a intenção de garantir um apoio forte e mediar proposições na Organização. Em 2004, João Paulo II foi mais além. No centro de sua mensagem para a Jornada Mundial da Paz, o pontífice lançou o desafio para uma nova ordem internacional, articulada pela ONU. Eis a sua mensagem: 

"É necessário que a Organização das Nações Unidas se eleve cada vez mais do estado frio de instituição de tipo administrativo ao de centro moral, onde todas as nações do mundo se sintam como em casa própria, desenvolvendo a consciência comum de serem, por assim dizer, uma família de nações." Um Compromisso Sempre Atual: Educar para a Paz

Recentemente, embora o prestígio do papado seja grande - impulsionado em grande medida pelo carisma do papa Francisco - permanecem tensões entre a visão católica relativa à vida e à reprodução humana, bem como o conceito de liberdade religiosa, e a posição mais "progressista" adotada pela Organização. Sobre tais pontos de tensão têm se concentrado, nos últimos anos, o compromisso da ONU, com todo o peso ideológico de uma verdadeira e própria "religião dos direitos humanos".     

Bibliografia consultada: ROCCELLA, Eugenia; SCARAFFIA, LucettaContra o Cristianismo: a ONU e a União Européia como nova ideologia. Tradução de Rudy Albino de Assunção. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014, p. 54-58.

#HJ20 Ouvintes de Piadas

domingo, 15 de dezembro de 2019

O humor também tem seu lugar no indefinido espaço que separa o "povo eleito" dos "outros". É aí que surge a figura do gói objeto de temor, de inveja, de admiração. Uma tensão que se resolve em numerosas historietas.

O melhor ouvinte para uma piada, dizem os judeus, é um aristocrata russo, porque ri três vezes: quando ouve o gracejo, quando este lhe é explicado e quando finalmente, ele o entende.

O oficial russo já não é tão bom ouvinte, ri apenas duas vezes: quando ouve a pilhéria e quando ela lhe é explicada. Nunca chega a entendê-la.

O camponês russo é ainda pior: só ri ao ouvir a anedota. Não tem tempo para esperar a explicação; e ainda que o tivesse, não entenderia.

Mas o pior ouvinte é qualquer judeu, pois este não ri nem uma vez. Mas se começa a contar a história ele interrompe:

- Ora! Essa eu já sei desde que nasci!  

FINZI, Patricia et al. (edição, seleção e textos). Do Éden ao divã - Humor Judaico. São Paulo: Shalom, 1990, p. 58.

O Estilo de Jesus

sábado, 14 de dezembro de 2019

Cristo pregando, c. 1652, gravura de Rembrandt (1606-1669). 

Orador excepcional, que possui um conhecimento impecável dos meandros do coração humano, Jesus fascina as multidões. Sabe adaptar seus propósitos a seu auditório. Em Jerusalém, diante das pessoas do Templo, dos escribas e dos doutores da Lei, ele maneja de maneira espantosa as referências à Bíblia hebraica. A seu auditório rural da Galileia, reserva uma linguagem metafórica, plena de sabor semítico, que busca seus exemplos em cenas da vida cotidiana.

Podemos creditar a Jesus um grande senso de observação. Ele evoca as semeaduras, as colheiras, as vindimas, os ramos de videira que é preciso enxertar nas cepas, o pastor que vigia suas preciosas ovelhas ou parte à procura daquela que se perdeu, as relações do pai com seus filhos, do senhor com seus servidores, do anfitrião com seus convidados. Ele conhece os reflexos meteorológicos dos seus interlocutores: "Chegada a tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu está avermelhado; e, pela manhã: Hoje haverá tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio." Ele sabe que ninguém cose remendo de pano novo em uma roupa velha; porque o remendo novo repuxa a roupa velha e o rasgo fica ainda maior. Ele não ignora que uma árvore boa pode dar bons frutos, mas que uma má escolhida produz sempre frutos detestáveis. Nada lhe escapa das pessoas com as quais se relaciona. Ele denuncia o intendente desonesto ou o rico insensato, evoca até os ladrões que saqueiam as casas depois de ter previamente amarrado o proprietário vigoroso. É sensível à beleza, à poesia da natureza, obra do Criador, admira os pássaros, os corvos que não semeiam nem segam, mas que Deus alimenta. E as flores, como esquecê-las? "Considerai como crescem os lírios do campo", diz ele a seus discípulos, "eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles."

PETITFILS, Jean-Christian. Jesus - a Biografia. Tradução de Lea P. Zylberlicht e Gian Bruno Grosso. São Paulo: Benvirá, 2015, p. 111-112. 

A Mensagem Central de John T. Gatto

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

John Taylor Gatto (1935-2018), "professor do ano" da cidade de Nova York em 1989, 1990 e 1991, e de todo o estado de Nova York em 1991.

(...) Minha mensagem central era (e ainda é) que a escolarização institucional imposta é absolutamente irreformável porque ela já é um sucesso absoluto! Ela faz, brilhantemente, exatamente aquilo que foi projetada para fazer, ou seja, ser o componente "educacional" de uma economia de produção em massa centralizada, gerida a partir de alguns poucos centros de comando. Esse tipo de economia tem necessidades urgentes: para funcionar, necessita de um tipo específico de "recurso humano", particularmente um que seja condicionado a definir-se pela aquisição de objetos, por possuir "coisas", pela avaliação de tudo através da perspectiva de conforto, segurança física e status.

As escolas são um excelente mecanismo para condicionar as gerações mais jovens a aceitar o controle total, para impor à maioria de nós uma espécie de infantilidade perpétua, em defesa dos interesses do gerenciamento científico. Para que haja um controle eficiente, deve haver pessoas incompletas para serem controladas, porque pessoas completas, ou aqueles que aspiram à completude, rejeitam uma tutela estendida. É impossível crescer sob um controle total, quer seja um controle total de qualidade ou qualquer outro tipo. No entanto, para sobreviver, as economias de produção em massa centralizadas não podem exigir nada menos do que isso.

GATTO, John Taylor. Emburrecimento programado - o currículo oculto da escolarização obrigatória. Tradução de Leonardo Araujo. Campinas, SP: Kírion, 2019, p. 126-127.

A Verdadeira Reforma da Escolarização

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O que mais é necessário em um sistema escolar reestruturado? A escola precisa parar de ser um parasita na comunidade trabalhadora. No histórico de todas as transações humanas, somente este nosso país distorcido armazenou todas as crianças em um estoque sem lhes pedir nenhuma contribuição para o bem comum. Creio que durante um período devemos estipular o serviço comunitário como parte obrigatória da escolarização. Além de ensinar a agir sem interesse próprio, essa é a maneira mais rápida de dar às crianças uma responsabilidade real na vida convencional.

Durante cinco anos eu conduzi um programa de guerrilha na escola, em que eu fazia com que toda criança, rica ou pobre, inteligente ou lenta, tivesse de fazer 320 horas de árduo serviço comunitário todo ano. Dezenas dessas crianças me procuraram, anos depois, já adultas, e me disseram que a experiência de ajudar outra pessoa havia mudado suas vidas, lhes ensinado a enxergar de novas maneiras, a repensar seus objetivos e valores. Isso aconteceu quando tinham treze anos, no meu programa "laboratório escolar", e só foi possível porque o rico distrito escolar para qual eu trabalhava estava um caos. Quando retomou a "estabilidade", o laboratório fechou. Com um grupo bastante mesclado de crianças, o programa era bem-sucedido demais, e barato demais, para que permitissem que continuasse.

Estudo independente, serviço comunitário, aventuras e experiências, grandes doses de privacidade e tempo a sós, milhares de experiências de aprendizagem prática com outras pessoas em seus ofícios - durante um único dia ou períodos maiores. Todas essas são maneiras poderosas, baratas e eficazes de se começar uma verdadeira reforma da escolarização. Mas nenhuma reforma de larga escala jamais será capaz de reparar o dano causado às nossas crianças e à nossa sociedade até que modifiquemos a ideia de "escola" e nela incluamos a família como a principal força motriz da educação.

GATTO, John Taylor. Emburrecimento programado - o currículo oculto da escolarização obrigatória. Tradução de Leonardo Araujo. Campinas, SP: Kírion, 2019, p. 66-67.

#HJ19 O Rabi de Chelem

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A cidadezinha de Chelem tornou-se lendária pela estupidez dos seus moradores; estes deram assunto para um ciclo de anedotas que hoje se intitularia: Histórias de imbecis.

O que é mais importante no caráter de um juiz? Todos concordam em que a imparcialidade é essencial. A imparcialidade do rabi de Chelem granjeara fama num circuito de milhas.

Um dia, dois litigiantes o procuraram para resolver uma contenda. O rabi escutou longa e pacientemente o queixoso e depois disse-lhe:

- Tens razão.

Ouviu em seguida o réu e declarou-lhe igualmente:

- Tens razão.

Os litigiantes retiraram-se muito satisfeitos; mas a esposa do rabi, presente ao fato, estava intrigada. Podia uma pobre mulher entender de assuntos legais?

- Como é possível - objetou ela - que ambos tenham razão?

O rabi ponderou demoradamente, voltou-se para a mulher e replicou:

- Queres que te diga? Você também tem razão.  

FINZI, Patricia et al. (edição, seleção e textos). Do Éden ao divã - Humor Judaico. São Paulo: Shalom, 1990, p. 52-53.

Oito Patologias das Crianças Atuais

domingo, 8 de dezembro de 2019

Vou lhes contar quais são os efeitos em nossas crianças quando tiramos todo o seu tempo e as forçamos a usá-lo com abstrações. Qualquer reforma que não ataque estas patologias específicas não será nada além de fachada. 

1. As crianças para quem leciono são indiferentes ao mundo adulto. Ninguém quer que as crianças cresçam nos dias de hoje, muito menos as próprias crianças - e como culpá-las? Isso contraria a experiência de milhares de anos.

2. As crianças para quem leciono não têm quase nenhuma curiosidade, e o pouco que têm é passageiro. Não conseguem se concentrar por muito tempo, mesmo nas coisas que escolhem fazer.

3. Além disso, elas têm uma noção precária do futuro, de como o amanhã é inextricavelmente ligado ao hoje. Elas vivem em um constante presente: o exato momento em que estão é o limite de suas consciências.

4. Essas crianças são também a-históricas: não têm nenhuma compreensão de como o passado determina seu próprio presente, limita suas escolhas e molda seus valores e suas vidas.

5. As crianças para quem leciono são cruéis umas com as outras, não têm compaixão pela desgraça, riem da fraqueza, desprezam as pessoas cuja necessidade de ajuda é muito aparente.

6. As crianças para quem leciono se sentem desconfortáveis com a intimidade ou a sinceridade. Não são capazes de lidar com a intimidade genuína porque, desde que nasceram, mantêm o hábito de preservar um eu interior dentro de uma personalidade exterior forjada com fragmentos de comportamentos copiados da televisão ou adquiridos para manipular professores. Por não serem quem demonstram ser, o disfarce se dissipa diante da intimidade, portanto, relacionamentos íntimos devem ser evitados.

7. As crianças para quem leciono são materialistas, a exemplo dos professores que "avaliam tudo" de modo materialista e dos ícones da televisão e influenciadores digitais.

8. Por fim, tais crianças são dependentes, passivas e tímidas diante de novos desafios. Essa timidez é frequentemente mascarada por uma superfície de bravata, raiva ou agressividade, mas o que há, no fundo, é um vácuo desprovido de firmeza. 

Adaptado de GATTO, John Taylor. Emburrecimento programado - o currículo oculto da escolarização obrigatória. Tradução de Leonardo Araujo. Campinas, SP: Kírion, 2019, p. 62-64.