“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Rococó

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Les hasards heureux de l'escarpolette, 1767-1768. Jean-Honoré Fragonard (1732-1806).   

Estilo artístico e arquitetônico caracterizado pela leveza, graça, alegria e intimidade, surgiu na França por volta de 1700 e difundiu-se por toda a Europa no século XVIII. Por extensão, o termo designa também o período em que o estilo floresceu - "a era rococó". O vocábulo foi, ao que tudo indica, cunhado em 1796-7, numa referência depreciativa ao gosto prevalecente durante o reinado de Luís XV. O termo, à semelhança de tantos outros rótulos estilísticos, veio à tona com sentido pejorativo e por longo tempo reteve as conotações originais, designando uma arte que era, segundo uma das acepções, "excessiva ou insipidamente florida ou ornada". A palavra foi empregada como termo formal da história da arte a partir de meados do século XIX. Uma sucessão de mudanças no conjunto dos padrões estéticos deu respeitabilidade ao termo, que hoje é empregado sobretudo num sentido objetivo. 

Os caracteres mais imediatamente identificáveis do estilo são o interesse pela frágil decoração profusamente colorida, por temas mais triviais que edificantes e por um sentido de poesia pastoral na arte. Foi ao mesmo tempo um desenvolvimento e uma reação ao pesado estilo barroco, do gosto pela complexidade formal, mas à preocupação com a massa veio suceder um delicado jogo de superfície, e as cores sombrias e pesadas dourações deram lugar a claros rosas, azuis e verdes, destacando-se também, com frequência, o branco. A elegância e a conveniência, e não mais a grandeza, eram as qualidades exigidas por uma sociedade cansada dos excessos de Versalhes. 

Os primeiros mestres do novo estilo foram gravadores como Audran e Bérain. O primeiro grande pintor rococó foi Watteau. Boucher e Fragonard são os pintores que representam de modo mais completo o espírito do estilo em seu estado maduro, e Falconet talvez seja o seu pintor quintessencial. Apropriadamente, muitas das obras de Falconet foram reproduzidas em porcelana, pois essa forma de arte é muito mais representativa da época que, por exemplo, a estátua heroica. 

De Paris, o rococó difundiu-se por meio de artistas franceses trabalhando no estrangeiro ou de publicações de gravuras de composições francesas. Cada país acrescentou ao rococó uma qualidade nacional, dentro das quais muitas vezes distinguem-se diversas variantes locais. Além da França, os solos mais férteis para o florescimento do estilo foram a Alemanha e a Áustria. O rococó perdurou na Europa central até o final do século, mas na França e em outros países a maré estilística foi saindo da frivolidade e leveza para as qualidades mais austeras do neoclassicismo desde a década de 1760.

Adaptado de CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 455-456.

O Início da Revolução Francesa

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Juramento do Jogo de Péla (1791). Jacques-Louis David (1748-1825).   
Localização: Château de Versailles.

Assim como a coroação de Luís XVI em 1775, só que em escala ainda maior, a reunião dos Estados Gerais foi uma reconstituição extraordinária da história, tradição e ostentação francesas. No dia 4 de maio de 1789, os deputados dos três Estados eram 1167, no total. Desses, 302 eram do Clero; 289 eram da Nobreza; do Terceiro Estado, eram 576 deputados (logo reforçados por mais 35, que se atrasaram). 

A entrada do rei Luís XVI e da rainha perante os deputados dos Estados Gerias foi pomposa. Apesar disso, ao contrário do que acontecera em 1614, os deputados do Terceiro Estado se recusaram a se ajoelharem ante a presença dos monarcas. Entre eles estava o conde de Mirabeau (1749-1791), rejeitado pela Nobreza e eleito pelo Terceiro Estado. Outro outsider nesse grupo era o abade Sieyés (1748-1836), um gênio da teoria política que, no começo de 1789, escreveu o famoso Qu'est-ce que le tiers état? ("O que é o Terceiro Estado?"). No dia 10 de junho, Sieyés persuadiu o Terceiro Estado de que havia chegado a hora de "cortar o cabo" e assumir o poder e a identidade da nação. 

Como as coisas chegaram a esse ponto? Em 6 de maio, o Terceiro Estado recusou-se a atender uma chamada de seus deputados ou que suas credenciais representativas fossem verificadas à parte do Clero e da Nobreza. Ao contrário disso, o Terceiro Estado exigiu uma assembleia conjunta com os outros dois estados. Nela os votos seriam contados por cabeça, o que lhe possibilitaria derrotar a Nobreza e o Clero. Estas Ordens privilegiadas, no entanto, seguiram para suas assembleias separadas, e ignoraram o apelo do Terceiro Estado para que viessem a se juntar aos seus deputados. 

Nesses dias iniciais, Robespierre desenvolvia uma reputação crescente, apesar da timidez. Ele identificou-se fortemente com os colegas delegados de Arras, grupo que se destacava pelo patriotismo. Mais que isso, desempenhou seu papel ao induzir a assembleia a apoiar a posição de Sieyés, qual seja, a de que o Terceiro Estado se declarar Assembleia Nacional. Isso ocorreu no dia 17 de junho, após uma semana de verificação das credenciais dos deputados. Esse ponto da crise era irreversível - qualquer possibilidade de reconciliação ou negociação com as outras duas Ordens desapareceu. Além disso, Luís XVI teria que enfrentar o princípio da soberania popular. Era o início da Revolução Francesa. 

No dia 20 de junho, os deputados foram impedidos por guardas de entrar na Salle des Menus-Plaisirs, onde iriam obter a adesão dos deputados do Clero. Seguindo então a sugestão do doutor Guilhotin (1738-1814), os deputados se reuniram em uma quadra de tênis, onde juraram que não se separariam até que "a constituição do Reino e a regeneração pública estejam estabelecidas e garantidas", independentemente das dificuldades ou do tempo que isso levasse.   

Adaptado de SCURR, Ruth. Pureza fatal - Robespierre e a Revolução Francesa. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2009, p. 96-108.     

Obras de Intelectuais Brasileiros

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Disponibilizarei neste post as obras de alguns filósofos brasileiros. É desnecessário dizer que o fato de indicá-las não significa que concordo com todas as suas linhas, e nem que endosso o posicionamento político ou atitudes na esfera pessoal de seus autores. Mas, é inegável que têm contribuições importantes no campo do pensamento e, portanto, merecem ser lidas.

1. Bené Barbosa & Flávio Quintela

Mentiram para Mim sobre o Desarmamento

2. Leandro Karnal:

História dos Estados Unidos 
Todos Contra Todos

3. Leandro Narloch:

Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil

4. Luiz Felipe Pondé:

Contra Um Mundo Melhor
Crítica e Profecia  

5. Olavo de Carvalho: 

O Jardim das Aflições
O Mínimo Que Você Precisa Saber Para Não Ser Um Idiota
O Imbecil Coletivo
O Imbecil Coletivo II
Os EUA e a Nova Ordem Mundial
Maquiavel, Ou a Confusão Demoníaca

6. Osvaldo Peralva:

O Retrato

7. Walter Fraga Filho & Wlamyra R. de Albuquerque:

Uma História do Negro no Brasil

8. Maria Celina D'Araujo (org.)

As Instituições Brasileiras da Era Vargas
Democracia e Forças Armadas no Cone Sul

Doc. 'A Vida Após Hitler'

domingo, 25 de junho de 2017


O grande historiador Edward Gibbon (1737-1794) considerava a História "um pouco mais do que o registro dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade." No final da sua vida, ele pode ter confirmado esse diagnóstico ao saber dos horrores do Terror, na França revolucionária. Contudo, tudo isso pareceria irrisório perto das guerras mundiais e dos genocídios do século XX. 

Nesse sentido, estudar a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto e o pós-guerra é extremamente desagradável e até perturbador. Entretanto, é necessário: não podemos correr o risco de repetir os erros do passado. É o que lembra Norman Ohler, autor de um dos mais recentes livros sobre Hitler publicados no Brasil. Ao justificar a importância da sua investigação em entrevista à Veja, Ohler reconheceu que "algumas pessoas ficam saturadas desse assunto", mas defende que isso é preferível ao esquecimento de tamanhas atrocidades. 

Contrariando os mais otimistas, a derrota do III Reich e o fim da guerra na Europa não eliminaram do horizonte a violência, o ódio e o antissemitismo. Não bastasse o caos resultante da guerra mais destrutiva da História, os sobreviventes precisariam conviver com esses "fantasmas" durante algum tempo. Isso foi muito bem analisado por Ian Buruma em seu livro Ano Zero. Além disso, recentemente um documentário excelente, dividido em duas partes, foi disponibilizado no YouTube. Em tom aterrador (portanto, cautela ao visualizá-lo), ele mostra como o mundo mal se livrava de um pesadelo (a Segunda Guerra Mundial) e já iniciava outro (a Guerra Fria). Aproveitem, ele é dublado e duvido que fique por muito mais tempo no YouTube:


A Vida Após Hitler - Parte 1 (1945-1946)


A Vida Após Hitler - Parte 2 (1946-1949)      

A Pior Geração de Alunos Cristãos

sábado, 24 de junho de 2017

Eis o último vídeo que editei e postei no meu canal do YouTube. Desde já, convido-lhes a se inscreverem lá. Como verão, os vídeos que posto lá são objetivos, como os posts daqui do blog. Também sugiro que acompanhem o ministério do Pr. Paulo Junior, acessando o site Defesa do Evangelho.

Benefícios da Crença em Deus

sexta-feira, 23 de junho de 2017

"Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da Terra? Faze-mo saber, se tens entendimento." Jó 38:4. 

Assista e reflita sobre os benefícios da fé:

Os Profetas de Zwickau

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Thomas Müntzer em gravura de 1608 de Christoffel Van Sichem.

"Em maio de 1520, tumultos haviam rebentado em uma pequena cidade da Saxônia, ao norte de Erzgebirge e da região hussita: Zwickau. Um padre, um iluminado, Thomas Müntzer, apoiado pelos artesãos, notadamente têxteis, tentara instaurar ali um 'reino de Cristo': sem rei, sem magistrado, sem autoridade espiritual ou temporal, e também sem lei, nem Igreja, nem culto, e cujos súditos livres, resgatando diretamente as Escrituras, se beneficiariam de um comunismo cujo sonho edênico obcecava os espírito simples. O magistrado de Zwickau, assustado, reagiu duramente. Detenções em massa interromperam o movimento. Müntzer fugiu, seguido por seus adjuntos. E, em 27 de dezembro de 1521, três deles, o pisoeiro Nicolas Storch, Thomas Dreschsel e Marcus Thomae, vulgo Strübner, entravam em Wittenberg como em um abrigo seguro. Três semanas depois de Lutero, após sua primeira escapadela, reintegrar seu quarto em Wartburgo. 

Tão logo se instalaram na cidade, os três apóstolos passaram a cumprir sua missão de homens de Deus repletos das graças e revelações diretas do Espírito. Não demorou para que a estranheza de suas doutrinas, sua postura de visionários, a mescla de consideração e desprezo com que se referiam a Lutero, reformador timorato que só servia para fornecer aos verdadeiros profetas, para seu salto no absoluto, o trampolim de uma doutrina terra a terra; isso tudo, além de seus discursos contra a ciência geradora de desigualdade, suas apologias do trabalho manual, suas incitações a quebrar as imagens, que mexeriam, no fundo das almas populares, com o antigo legado de crenças e superstições, herdadas e transmitidas pelas mulheres, pelos curandeiros, pelos inspirados, sobre as quais jamais saberemos algo muito preciso - mas não corremos risco algum de exagerar sua influência sobre os homens daquele tempo: tudo isso granjeou, em poucas semanas, para os fugitivos de Zwickau, para os 'profetas Cygneaens' [mais conhecidos como profetas de Zwickau], a preocupante aceitação dos wittenburgueses. Na primeira fila de suas plateias, Carlstadt, repentinamente inflamado pela nova graça, vinha trazer aos iluminados sem diploma a apreciável adesão de um erudito e, como diríamos, de um intelectual conhecido e representativo

Os profetas não demoraram a passar aos atos. Arremessando contra as igrejas, saquearam-nas de maneira abominável. Acaso não estava escrito: 'Não farás para ti imagens de escultura'?"  

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, Um Destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 248-249.

A Reforma na Inglaterra: o Anglicanismo

terça-feira, 20 de junho de 2017

A bandeira da Comunhão Anglicana.

Na Inglaterra, a difusão da Reforma foi facilitada pela disputa pessoal entre o soberano, Henrique VIII (1509-1547), e o papa Clemente VII (1523-1534). Apesar de ser um católico fiel aos dogmas da Igreja, o rei Henrique VIII rompeu com o pontífice quando ele se recusou a dissolver seu casamento com Catarina de Aragão, que não lhe havia dado nenhum filho homem. Ignorando a decisão papal, o rei casou-se com Ana Bolena, em 1533, sendo excomungado pelo papa. 

O soberano encontrava, assim, uma justificativa para reforçar seu poder político em detrimento da influência da Igreja Católica. Desta forma, na Inglaterra, a Reforma e a afirmação do poder real, processo que conduziu ao absolutismo, caminharam juntas. 

Com a Reforma, os bens da Igreja foram confiscados pelo rei e distribuídos para a nobreza, grande parte dela identificada com os interesses mercantis. As vastas propriedades da Igreja que foram confiscadas passam a ser administradas dentro da lógica mercantilista. Assim, a produção de lã se intensificou, e essa matéria-prima passou a ser muito procurada pelas manufaturas de tecidos. 

A oficialização do rompimento entre Henrique VIII e o papado se deu quando o Parlamento inglês aprovou o Ato de Supremacia (1534). A religião passou ao controle real. Surgia assim a Igreja Anglicana que, pelo Ato dos Seis Artigos, assinado por Henrique VIII em 1539, manteve todos os dogmas católicos, exceto o da autoridade papal. Essa dubiedade foi atacada tanto por protestantes como por católicos: os protestantes condenavam a fidelidade aos dogmas católicos, os católicos reprovavam o cisma. 

Eduardo VI (1547-1553), filho e sucessor de Henrique VIII, impôs ao país a obrigatoriedade do culto calvinista. Maria I (1553-1558), sua sucessora, tentou sem sucesso restaurar o catolicismo. Sua sucessora e irmã, Elizabeth I (1558-1603), instituiu oficialmente a religião anglicana através de dois atos famosos: o Bill da Uniformidade, que criava a liturgia anglicana, e o Bill dos 39 Artigos, que fundamenta a fé anglicana. 

Adaptado de CARVALHO, Yvone de. et. al. História do Mundo Ocidental. São Paulo: FTD, 2005, p. 164.

Precursores da Reforma: Huss

segunda-feira, 19 de junho de 2017

O casamento do rei Ricardo II (1377-1399) da Inglaterra com Ana Boêmia atraiu muitos estudantes da Boêmia para a Inglaterra. Quando retornavam à sua terra natal, esses estudantes levavam consigo as ideias de Wycliffe. Dentre aqueles que adotaram as ideias desse pré-reformador inglês estavam John Huss, pastor da Capela de Belém (1402 a 1414). Huss estudou na Universidade Praga e chegou a ser seu reitor em 1409. Sua pregação dessas ideias coincidiu com a emergência de um sentimento "nacionalista" boêmio contra o controle da Boêmia pelo Sacro Império Romano. 

Huss se propôs a reformar a Igreja na Boêmia de modo semelhante a Wycliffe na Inglaterra. Suas ideias suscitaram a hostilidade por parte do papa, e ele foi convocado a comparecer no Concílio de Constança com um salvo-conduto do Imperador. O salvo-conduto, porém, não foi respeitado. Tanto as ideias de Wycliffe quanto as suas foram condenadas. Como se recusasse a se retratar, foi queimado na fogueira por ordem do Concílio. Felizmente, seu livro, De Ecclesia (1413), sobreviveu a ele. 

As ideias de Huss foram disseminadas por seus seguidores, e os mais radicais dentre esses ficaram conhecidos como taboritas. Estes rejeitavam tudo da fé e da prática da Igreja Católica que não encontrasse respaldo bíblico. Alguns do grupo taborita formaram aquilo a que veio a ser a Unitas Fratrum (Irmãos Unidos) ou Irmãos Boêmios (meados do séc. XV). Um dos Irmãos foi o grande educador Jan Amos Comenius (1592-1670). Foi desse grupo que surgiu a Igreja Morávia. 

Os utraquistas, ao contrário dos taboritas, achavam que tão somente aquilo que as Escrituras proibissem devia ser erradicado e que os leigos deveriam receber tanto o vinho quanto o pão na ceia. Acabaram por se unir à Santa Sé e derrotaram os taboritas na Batalha de Lipany (1434). 

Adaptado de CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos. Tradução de Israel Belo de Azevedo e de Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 227.      

Precursores da Reforma: Wycliffe

domingo, 18 de junho de 2017

O ingleses estavam descontentes em enviar recursos a um papa em Avignon, que estava sob influência do rei francês, então inimigo da Inglaterra. Além disso, esse sentimento proto-nacionalista foi intensificado pelo ressentimento real e das camadas médias por causa do dinheiro desviado do erário britânico através dos impostos papais. Foi nesse contexto de reação "nacionalista" ao eclesiasticismo que Wycliffe obteve projeção na vida religiosa inglesa. Apoiado pelo poderoso João de Gante, ele desafiou o papa. 

Wycliffe estudou e lecionou em Oxford durante a maior parte de sua vida. Até 1378, pretendeu reformar a Igreja Católica mediante a destituição dos clérigos imorais e confisco de suas propriedades. Nesse sentido, publicou em 1376 a obra Of Civil Dominion ("Sobre o Senhorio Civil"), na qual exigia uma base moral para a liderança eclesiástica. A falha por parte dos clérigos em cumprir suas funções seria suficiente para a autoridade civil tomar os seus bens e entregá-los somente àqueles que servem a Deus dignamente. Essa doutrina agradava aos nobres que cobiçavam as propriedades da Igreja Romana. Eles e João de Gante impediram que os prelados fizessem algum mal a Wycliffe. 

A partir de 1379, no entanto, Wycliffe começou a se opor aos dogmas católicos. Nesse ano, ele atacou a autoridade do papa, dizendo que não ele, mas Cristo era o chefe da Igreja. Defendeu que a Bíblia e não a Igreja era a autoridade única para o crente; a Igreja Romana deveria se ajustar ao padrão da Igreja do Novo testamento. Para apoiar essas ideias, em 1382 Wycliffe terminou a primeira tradução completa do Novo Testamento para o inglês. Nesse mesmo ano, se opôs ao dogma da transubstanciação. Se adotada, a ideia de Wycliffe significaria que o sacerdote não mais reteria a salvação de alguém por ter em suas mãos o corpo e o sangue de Cristo na Eucaristia. 

A Igreja rapidamente se articulou e suas ideias foram condenadas em Londres, ainda em 1382. Wycliffe foi obrigado a se retirar para seu pastorado em Lutterworth. Contudo, dois anos sua causa ganhou força com Nicolau de Hereford, que completou a tradução de grande parte do Antigo Testamento para o inglês. Além disso, Wycliffe providenciou a continuação da propagação de suas ideias com a fundação de um grupo itinerante de pregadores leigos, os lolardos. Graças a uma distorção da declaração De Haeretico Comburendo, promulgada pelo Parlamento em 1401, a Igreja Romana conseguiu que se aplicasse a pena de morte contra os lolardos. Apesar disso, alguns deles ainda atuavam na Inglaterra no início da Reforma Anglicana. 

As ideias de Wycliffe repercutiram entre os estudantes boêmios, que depois levaram a sua mensagem para a Boêmia e lançaram os fundamentos dos ensinos de John Huss. Além disso, internamente seus ensinamentos de igualdade na Igreja foram aplicados à vida econômica pelos camponeses, contribuindo para a Revolta dos Camponeses de 1381.    

Adaptado de CAIRNS, Earle E. O Cristianismo Através dos Séculos. Tradução de Israel Belo de Azevedo e de Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 225-227.      

A França às Vésperas da Revolução

sábado, 17 de junho de 2017

Abertura dos Estados Gerais, em Versalhes, no dia 05 de maio de 1789. Isidore-Stanislaus Helman (1743-1806) e Charles Monnet (1732-1808). 

8 de maio de 1788. Luís XVI, num esforço desesperado para reafirmar sua autoridade após anos de desordem fiscal e administrativa, despachou uma série de éditos ao Parlamento de Paris. Neles o monarca detalhava reformas na estrutura do Estado. Era só o começo. Até o dia 8 de agosto desse ano, a França mudaria definitivamente. 

No Antigo Regime, os parlamentos eram altamente privilegiados, e tinham responsabilidades legais, políticas e administrativas. Eram compostos principalmente por nobres que, via de regra, usavam sua riqueza pessoal para comprar cargos públicos. De caráter conservador, os parlamentos eram esbanjadores e preocupavam-se mais com seus próprios interesses. 

À medida que o século se aproximava do fim, o conflito entre o governo monárquico e os parlamentos tornou-se inevitável. Como o absolutismo tornava o direito à oposição algo raro, os parlamentos atraíam o interesse e o apoio do povo sempre que enfrentavam o governo de Luís XVI, mesmo quando obstruíam reformas sensatas. 

Enquanto isso, uma imensa dívida pública levava o país à beira da falência. Causado pelo injusto sistema de tributação, que isentava o Clero e a Nobreza e sobrecarregava o Terceiro Estado, esse endividamento foi agravado pela Guerra dos Sete Anos (1756-1763) e pelo envolvimento da França na Revolução Americana. Os gastos excessivos da corte só pioravam a situação, e os impostos estavam no centro dos prolongados entre o monarca e os parlamentos. 

Os éditos que o ministro Lamoignon apresentou ao Parlamento de Paris em 8 de maio levaram o povo às ruas. No meio do caos, havia um clamor crescente por uma reunião dos Estados Gerais, o maior corpo administrativo da nação e que não se reunia desde 1614. Em 13 de julho, uma violenta tempestade despejou granizos enormes no norte da França, agravando a crise alimentar (a safra de 1787 já havia sido pobre, e a de 1788 seria ruim de qualquer modo). 

Em 8 de agosto, Luís XVI finalmente concordou em reunir os Estados Gerais. Em 1614, eles haviam se reunido em três câmaras praticamente iguais numericamente. Eles haviam votado separadamente, por ordem, tornando fácil a derrota do Terceiro Estado. Desde 1614, no entanto, o Terceiro Estado crescera exponencialmente em números e riqueza, compreendendo 98% da população em fins da década de 1780. Assim, ele estaria gravemente sub-representado se os Estados Gerais fossem reunidos nos moldes de 1614, como exigia o Parlamento de Paris. Robespierre reagiu prontamente, denunciando com fúria essas antigas instituições legais.        

Além disso, o jovem advogado foi um dos milhares que publicaram panfletos com ideias sobre como os prometidos Estados Gerais deveriam ser organizados. Muitos pediam o dobro de representantes do Terceiro Estado e também que a contagem de votos fosse feita por cabeça, não por ordem. Em vez de defender os direitos históricos, constitucionais ou teóricos do Terceiro Estado em toda a nação, o panfleto de Robespierre tinha um foco específico e local. A não ser que a reivindicação do estado de Artois de representar a província homônima fosse negada, Robespierre não teria qualquer esperança de ir a Versalhes como representante do Terceiro Estado no ano seguinte (1789). Robespierre pretendia conquistar um papel na política nacional. Seu reconhecimento da oportunidade - e a ferocidade de sua determinação em abraçá-la - era assombroso. No passado, Robespierre discutira política quando ela envolvia seu trabalho legal ou surgia no contexto de seus ensaios premiados. Sem dúvida, ele era versado nas teorias políticas de Montesquieu e Rousseau, mas antes da convocação dos Estados Gerais não nutria a menor esperança de vir a desempenhar um papel na política nacional, por menor que fosse. Seus contemporâneos em Arras notaram com surpresa (e com um certo desgosto) o ímpeto com que Robespierre iniciou a campanha eleitoral. 

Na França do Antigo Regime, a pobreza era um problema comum e complexo. Segundo Arthur Young, que viajava pela França quando estourou a Revolução, a pobreza do país lhe lembrava a miséria da Irlanda. De fato, mais de um teço da população total da França era constituído de pobres; na melhor das hipóteses, essas pessoas viviam no nível da subsistência. Safras ruins, como as dos anos 1787-1788, poderiam deixar muitos à beira da inanição, e foi essa a situação com a qual Robespierre se deparou quando iniciou sua campanha eleitoral.   

Adaptado de SCURR, Ruth. Pureza fatal - Robespierre e a Revolução Francesa. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2009, p. 77-86.  

Helmut Kohl (1930-2017), R.I.P.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Um brinde à paz: Mikhail Gorbachev, presidente soviético, e Helmut Kohl. Bonn (Bona), capital da Alemanha Ocidental, 1989.

"Kohl foi o líder que reunificou a Alemanha que a guerra partira ao meio, e foi o líder europeu que uniu a Europa, dando-lhe um nó que, esperava, nunca mais pudesse ser desatado. Um legado extremamente sofisticado para um homem do campo, que não fazia voltar cabeças quando entrava numa sala e que falava com um sotaque de província, como sempre sublinharam políticos e muitos dos seus próprios parceiros de partido. 

Kohl era um político de estilo diferente daquele a que Bona (a capital da Alemanha Federal) estava habituada. Era persistente e afável. Em vez de diplomacia elegante, fazia diplomacia afectiva - tornou-se amigo dos líderes de um mundo soviético, o americano George Bush, o francês François Miterrand. Acompanhou as reformas do soviético e, quando percebeu os sinais da derrocada do bloco, arquitectou a reunificação alemã, em 1990, um ano depois da queda do muro de Berlim. Por causa disso, Bush chamou-lhe 'o maior líder europeu do século XX'." 

In: Público        

Últimas Leituras

Os últimos livros que li foram As Fábulas de Esopo (cuja referência pode ser conferida aqui), duas biografias - uma de César (referência aqui) e outra de Napoleão (referência aqui); nesta semana, finalmente, li Cartas de Um Diabo a Seu Aprendiz, do grande apologista cristão C. S. Lewis (1898-1963). 

A experiência de ler esses livros é indescritível. Ao invés de falar sobre eles, prefiro que eles falem por si próprios. Se estiver sem tempo para ler as obras inteiras, pesquise aqui no blog as citações e os textos que publiquei sobre sobre as fábulas de Esopo e as biografias citadas. Sobre a obra de C. S. Lewis, pretendo publicar um artigo no portal IASD em Foco. Por ora, friso a seguinte "pérola" que o diabo Fitafuso deixa para o seu aprendiz: 

"Uma vez que você tenha feito do mundo um fim em si mesmo, e da fé apenas um meio para chegar até ele, você estará a poucos passos de ter controle sobre o seu paciente, e fará pouca diferença a meta terrena que ele busca. Ele será nosso, contanto que encontros, panfletos, politicagens, movimentos, causas e cruzadas sejam mais importantes para ele do que preces, sacramentos e caridade - e quanto mais 'religiosos' (nesses termos) eles forem, mais controle teremos sobre eles. Você devia ver só quantas jaulas cheias deles existem aqui embaixo." (p. 35) 

A Arte da Guerra

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Disponibilizo neste post algumas das três obras mais célebres sobre a arte da guerra. São os tratados escritos pelo romano Flávio Vegécio (confira aqui uma outra edição, em espanhol), pelo chinês Sun Tzu e, finalmente, pelo florentino Nicolau Maquiavel

Os princípios enunciados por esses autores têm uma utilidade que vai muito além dos fins militares. Assim, têm sido utilizados através dos séculos em vários contextos, como o empresarial. Particularmente, aprecio a primeira dessas obras, que foi uma das principais fontes da minha pesquisa de mestrado. 

"Se vis pacem, para bellum" ("Se queres a paz, prepara-te para a guerra"). Vegécio  

A Era Yayoi no Japão Antigo

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Dōtaku (sino de bronze) da Era Yayoi, séculos I-II. 
Créditos: Metmuseum

Formado por quatro ilhas principais e mais de 4 mil ilhotas, o Japão foi ocupado há cerca de 30 mil anos por povos caçadores e coletores originários das atuais Sibéria e Coreia. Por volta de 10 mil a.C., essa civilização aprendeu a fazer objetos de barro, utilizados para cozinhar e guardar alimentos. 

Na mesma época em que a China se transformava em império (século III a.C.), o Japão começava a ingressar em seu primeiro grande período de desenvolvimento: a Era Yayoi (300 a.C. - 300 d.C.). Influenciados pelos chineses, pela primeira vez os japoneses passaram a cultivar e irrigar o arroz e a fabricar objetos de bronze e de ferro. Também dominaram a tecelagem e a escrita ideográfica. 

Adaptado de AZEVEDO, Gislane & SERIACOPI, Reinaldo. História em Movimento - Vol. 1. São Paulo: Ática, 2013, p. 54. 

Leviatã, de Thomas Hobbes

terça-feira, 13 de junho de 2017

Frontispício da edição original do Leviatã (1651)

O livro encontra-se disponível aqui e aqui. A primeira edição é mais acadêmica mas, infelizmente, o texto mostra-se desconfigurado em certas partes. Vale lembrar que a obra, lançada em 1651, é um clássico do pensamento político inglês e também é um dos principais fundamentos teóricos do absolutismo. 

Shoah (Holocausto)

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Restos humanos encontrados no crematório do campo de concentração de Dachau, após a libertação. Alemanha, abril de 1945. 
Créditos: US Holocaust Memorial Museum 

A terrível provação sofrida pelos judeus na Europa nazista de 1933 a 1945 é conhecido como "Shoah" ou "Holocausto". 

Convencionou-se dividir o Holocausto em dois períodos, antes e depois de 1941. No primeiro período, várias medidas antissemitas foram tomadas pela Alemanha e depois na Áustria. Na Alemanha, depois das Leis de Nuremberg (1935), os judeus perderam os direitos de cidadania, o direito de ocupar um cargo público, praticar profissões, casar-se ou ter relações sexuais com alemães. Também foram privados da educação pública. Suas propriedades e negócios foram registrados e, às vezes, sequestrados. Contínuos atos de violência era perpetrados contra eles, e a propaganda oficial incentivava os alemães a odiá-los e a temê-los. Na Europa central e oriental o antissemitismo estava solidamente enraizado, muito antes dos nazistas chegarem ao poder. Assim, Hitler e seus partidários contribuíram mais como catalisadores de um ódio popular que extravasou, por exemplo, na Noite dos Cristais, um progrom que se espalhou pela Alemanha e pela Áustria entre 9 e 10 de novembro de 1938.  

Como se pretendia, o resultado foi uma emigração em massa, reduzindo pela metade a população de meio milhão de judeus alemães e austríacos no início da Segunda Guerra Mundial. 

A segunda fase, que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1941, espalhou-se para a Europa ocupada pelos nazistas e envolveu trabalhos forçados, fuzilamentos em massa e campos de concentração, sendo esses últimos a base da "solução final" (Entlösung) nazista do assim chamado problema judeu, por meio do extermínio nas câmaras de gás. Os últimos estágios da solução final foram decididos na conferência nazistas realizada em Wannsee, em 1942. Nessa conferência, o macabro plano e as programações foram estabelecidas, para serem postos em prática por Adolf Eichmann. 

Estima-se que seis milhões de judeus tenham morrido durante o Holocausto. De uma população de três milhões de judeus na Polônia, restou menos de meio milhão em 1945, enquanto que as comunidades judaicas da Romênia, da Hungria e da Lituânia também foram dizimadas. 

O Holocausto levantou muitos problemas a respeito da natureza da civilização europeia e de sua influência cristã. Por exemplo, a Igreja Católica sabia da perseguição e dos extermínios, mas falhou em se opor ao que ocorria (omissão ilustrada, por exemplo, no filme Amém, dirigido por Costa-Gavras e lançado em 2003). Até denominações protestantes colaboraram com os nazistas na Alemanha e na Áustria, como foi o caso da Igreja Adventista do Sétimo Dia, que por isso se desculpou oficialmente em 2005 (fonte: Adventist News). 

Bibliografia consultada: LAW, Jonathan & WRIGHT, Edmund. Dicionário de História do Mundo. Tradução de Cristina Antunes. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 363-364.  

Perfil do Advogado Robespierre

domingo, 11 de junho de 2017

Retrato de Maximilien Robespierre. Pierre Roch Vigneron (1789-1872), cópia de um desenho em pastel datado de 1790.   

A rotina diária de Robespierre (1758-1794) era rígida e austera. Acordava cedo e trabalhava em casa até a chegada de um cabeleireiro, às oito da manhã. Partia para as cortes de justiça às dez horas, após tomar leite e comer pão. Tomava muito café (sem o qual não conseguia viver) e, à tarde, fazia um almoço leve, acompanhado por vinho diluído com água. Gostava de frutas, especialmente laranjas. Caminhava antes de retornar ao trabalho e se alimentava novamente à noite. Frequentemente, parecia estar ausente ou preocupado. Sem interesse por jogos, muitas vezes ficava num canto enquanto outros jogavam cartas ou conversavam depois do jantar - ele ficava então a refletir, a planejar ou simplesmente a sonhar. Sem a Revolução, Robespierre provavelmente teria prosseguido neste "caminho sensível", vivendo como um "advogado provinciano cada vez mais respeitado". Mas a rigidez de sua rotina, longe de limitar seus horizontes, deixou-o livre para abraçar qualquer oportunidade de melhoria ou avanço pessoal que se lhe apresentasse. 

A advocacia era a profissão tradicional da família de Robespierre. Ele escolheu o direito possivelmente por uma combinação de princípios elevados e ambição pessoal por coisas triviais - status, respeito, dinheiro e independência. Como advogado, Robespierre teve que enfrentar um sistema jurídico extremamente intricado e confuso, como quase tudo na França do Antigo Regime. Apesar disso, adequadamente apadrinhado e determinado a crescer, Robespierre estabeleceu-se rapidamente na profissão que escolhera. Detentor de certos talentos naturais, como a fluência e a lógica, perdeu relativamente poucas causas. Colaborava para esse sucesso o fato de só aceitar causas justas. Além disso, ele preferia representar os pobres, mesmo que isso significasse nunca ser pago.  

Adaptado de SCURR, Ruth. Pureza fatal - Robespierre e a Revolução Francesa. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2009, p. 52-56.

Lutero: Crente, mas não Líder

sábado, 10 de junho de 2017

Martinho Lutero como professor. Lucas Cranach, o Velho (1472-1523), Schlossmuseum, 1529.

"Não, não à autoridade. Não à violência também ou, mais precisamente, não às vias de fato. O povo se agita, os jovens impacientes descem às ruas. Padres são atacados, algumas casas são saqueadas, monges são insultados. É claro que, diante de tudo isso, não há que fingir escandalizar-se com um falso pudor de fariseu. Mas é mau o princípio de tais agitações. De que servem, para destruir o papismo, essas perturbações e violências? Que deixem atuar a Palavra, a única que é eficaz e soberana... O falso zelo dos agitadores não seria inspirado por Satã, Satã tentando difamar os evangelistas? (...) 

Para ele [Lutero] pouco importam os fatos. A partir do momento em que esclareceu suas ideias quanto à comunhão sob as duas espécies e à missa privada, que os fiéis tomem do cálice ou atenham-se à hóstia, que os padres celebrem ou deixem de celebrar missas privadas pouco lhe interessa. Não possui, aliás, o fetichismo da uniformidade. Uma vez de acordo sobre o essencial, ou seja, uma vez possuindo sobre a fé uma mesma concepção viva, que duas comunidades se desentendam sobre os ritos, eis aí a divergência sem interesse ou louvável diversidade. Só que isso seus contemporâneos, seus compatriotas, seus discípulos não compreendem. Não desaprovavam sua concepção de uma Igreja inteiramente espiritual, mas tampouco se contentam com ela."  

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, Um Destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas, 2012, p. 236-237.

Napoleão, o Sucessor de Carlos Magno

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Consagração do Imperador Napoleão I e Coroação da Imperatriz Josefina na Catedral de Notre Dame em Paris, no dia 2 de dezembro de 1804. Jacques-Louis David (1748-1825), Museu do Louvre, 1806-1807.
Ao contrário do que aparece nessa pintura, a mãe de Napoleão não participou da cerimônia da coroação. Ela preferiu ficar em Roma - um protesto contra a exclusão dos filhos Lucien e Jérôme da sucessão imperial.  

No próprio princípio do Consulado "vitalício" se encontrava o embrião da transição do poder já "monárquico" de Napoleão a um poder complementado com um título real ou imperial. 

Após a eliminação das câmaras, a reorganização do exército, a reconciliação religiosa, o perdão aos emigrados, o sucesso do plebiscito de 1802 e a retomada econômica, o Consulado não tinha mais inimigos interiores organizados. Com o tratado de Amiens, também não possuía mais inimigos externos. As elites e a população adulavam o primeiro cônsul, que era legítimo por seus êxitos e vitórias. 

O simbolismo monárquico se desenvolveu quase naturalmente no comportamento de Bonaparte. Na primavera de 1804, o ambicioso jovem de 35 anos deu a entender que aceitava a coroa (que não poderia ser real, uma vez que havia-se decretado, onze anos antes que Luís XVI seria "o último rei"). Era preciso estabelecer o império, cuja proclamação deveria se ajustar às formas jurídicas que defendiam os postulados em voga desde a Revolução. 

O Senado proclamou o Império no dia 18 de maio de 1804. O juramento civil, redigido pela Câmara constitucional, fez Napoleão se comprometer a defender a integridade do território da República, respeitando e fazendo respeitar a igualdade de direitos, a liberdade civil e de culto, o direito de propriedade e a venda dos bens nacionais. No verão, incríveis 99,99% dos eleitores que votaram no plebiscito disseram "sim" ao império. 

Napoleão impôs ao Conselho de Estado que a coroação ocorresse em Notre Dame. Ali, no dia 02 de dezembro de 1804, o papa Pio VII desempenhou o papel de simples figurante. Conforme combinara previamente com o pontífice, Napoleão coroou-se a si próprio e pronunciou o juramento civil. Pelas referências históricas explícitas e repetidas, ele se apresentou como sucessor de Carlos Magno, buscando assim justificar sua legitimidade.    

Adaptado de LENTZ, Thierry. Napoleão. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 85-97.

Perfil do Cônsul Napoleão Bonaparte

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Primeiro Cônsul Bonaparte (detalhe), c. 1802. Antoine-Jean Gros (1771-1835). 

"Napoleão Bonaparte tinha trinta anos [quando se tornou cônsul], estatura mediana (e não baixa) para sua época: 1,68 m. Era magro, cabelos à testa, a tez um pouco amarelada. Nada que chamasse a atenção, a não ser seu olhar e a vivacidade de sua expressão quando tomava a palavra. Todas as testemunhas da época disseram a que ponto haviam sido seduzidas pelo personagem, cujo sorriso vencia todas as reticências. Isso, evidentemente, não era suficiente para produzir um estadista, mas Bonaparte já tinha experiência. Na Itália como no Egito, ele havia tomado contato com o poder e dominara as dificuldades. Sabia impor sua autoridade e possuía boa visão para deslindar os casos mais complicados. Se sempre dedicava um tempo à reflexão antes de agir, detestava longos discursos e gostava que as coisas decididas fossem logo realizadas. Trabalhava muito, sobre todos os assuntos, sem negligenciar nenhum, e muitas vezes ia até os menores detalhes dos dossiês. Durante alguns anos afastou-se de qualquer referência filosófica, o que não o impediu de se apoiar no partido dos ideólogos, que havia colaborado muito para sua ascensão: Bonaparte, membro do Instituto, não era um deles? Mas, no fundo, para o primeiro cônsul mais do que para qualquer outro, a política era sobretudo (e antes de tudo) a arte do possível." 

LENTZ, Thierry. Napoleão. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 65-66.

Napoleão, o General Político

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Napoleão cruzando os Alpes. Jacques-Louis David (1748-1825). Data de criação: 1801-1805.

"Não há dúvida de que Napoleão foi um chefe militar de primeira importância, como alguns outros oriundos da Revolução Francesa. Mesmo limitado a um cenário restrito, sua estratégia em Toulon foi engenhosa e, dois anos mais tarde, a campanha da Itália entrou para os anais da guerra. Sua superioridade em relação a seus pares consistia em sua perícia e visão políticas, na habilidade em apreciar as situações e de ganhar destaque graças a elas, por se abster ou agir, mas nunca, se podemos dizê-lo, por se omitir. Vencedor nos campos de batalha, soube igualmente cultivar amizades e contatos, para finalmente se situar do 'lado bom', isto é, com aqueles que, após dez anos de desordens internas e externas, se engajaram na execução de um programa 'moderado' de encaminhamento da Revolução. Napoleão lhes pareceu ser o sabre justo para atingir suas finalidades e ajudá-los a caçar os 'neojacobinos' ou a conter os contra-revolucionários. Ele desejou desempenhar esse papel. Mas, uma vez adquirido o poder, não o largou mais." 

LENTZ, Thierry. Napoleão. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: Editora UNESP, 2008, p. 33-34.  

O Viandante e o Acaso

terça-feira, 6 de junho de 2017

Ao completar uma longa caminhada, um viandante, fraquejando de cansaço, deitou-se à beira de um poço e adormeceu. Estava ele quase despencando no poço, quando o Acaso parou ao lado dele e o despertou, dizendo a seguir: "Ô, camarada, se você tivesse caído, jogaria a culpa em mim, e não em seu próprio descuido!"

Moral: Assim, muitos homens provocam a própria desgraça e depois responsabilizam os deuses.

ESOPO. Fábulas completas. Tradução de Maria Celeste C. Dezotti e ilustrações de Eduardo Berliner. 3ª reimpressão. São Paulo: Cosac Naify, 2016, p. 521.

Imperador Calígula, o Tirano

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Busto de Calígula (37-41). Palazzo Massimo, Roma.

"Mesmo nas horas de descontração, quando se entregava ao jogo e aos banquetes, idêntica crueldade se revelava em seus atos e palavras. (...) Num faustoso banquete, pôs-se de súbito a gargalhar; perguntando-lhe os cônsules, que o ladeavam, por que se ria, respondeu: 'Simplesmente porque me ocorreu que, com um simples aceno, poderia mandar degolar vós ambos.'

Calígula era de estatura elevada, tez lívida, corpo malproporcionado, pernas e pescoço muito finos, olhos encovados, têmporas estreitas, fronte larga e disforme. Tinha cabelos raros e era calvo no alto da cabeça, embora peludo no resto do corpo; por isso, quando passava, constituía crime capital olhá-lo do alto ou pronunciar a palavra 'cabra' por qualquer motivo. Quanto ao rosto, já de natureza assustador e repelente, ele próprio se esforçava para torná-lo ainda mais medonho estudando diante do espelho as expressões fisionômicas capazes de inspirar terror e espanto. Sua saúde não foi bem-equilibrada nem no físico nem no moral. Sujeito a ataques de epilepsia durante a infância, mostrou-se, na adolescência, bastante resistente à fadiga, mas às vezes era tomado por acessos de fraqueza que mal lhe permitiam caminhar, ficar de pé, voltar a si e suster-se. Relativamente à sua insanidade mental, ele mesmo se dera conta dela e até projetara retirar-se para desanuviar o cérebro. Crê-se que enlouqueceu por ter bebido um filtro ministrado por Cesônia. Sofria principalmente de insônia, pois não dormia mais de três horas por noite (...)." 
SUETÔNIO. Calígula, 32 e 50. In: Os Doze Césares.Tradução de Gilson C. C. de Sousa. São Paulo: Germape, 2003, p. 172-173 e p. 182.

Imperador Tibério, o 'Caprino'

domingo, 4 de junho de 2017

Ruínas de Villa Jovis, residência do imperador Tibério em Cápri.

Segundo Suetônio, após sua ascensão ao império, Tibério (14-37) permaneceu em Roma durante dois anos inteiros. Posteriormente, só se ausentou para viajar a cidades vizinhas. Depois de percorrer a Campânia, estabeleceu-se na ilha de Cápri. Deixou a ilha devido à catástrofe ocorrida em Fidenas, onde mais de 20 mil morreram sob as ruínas de um anfiteatro durante um espetáculo de gladiadores, mas... 

"De volta à sua ilha, Tibério se desinteressou a tal ponto pelos negócios públicos que a partir dessa data nunca mais completou as decúrias dos cavaleiros, nem fez qualquer modificação entre os tribunos militares, os comandantes da cavalaria e os governadores das províncias, deixando por bom tempo a Espanha e a Síria sem legados consulares. Permitiu que os partas ocupassem a Armênia, que os dácios e sármatas devastassem a Mésia, e que os germanos assolassem as Gálias, para grande vergonha e perigo do império. 

Imerso na solidão e subtraído, por assim dizer, aos olhos da cidade, permitiu enfim que transbordassem todos os seus vícios até então dissimulados. Examiná-los-ei um por um, desde o princípio. Já quando de sua iniciação no exército a paixão excessiva pelo vinho fazia com que o chamassem de Bibério ao invés de Tibério, Cáldio ao invés de Cláudio e Mero ao invés de Nero [o nome completo do imperador é Tibério Cláudio Nero César]. Mais tarde, feito imperador, no instante mesmo em que reformava os costumes públicos passou dois dias e uma noite seguidos bebendo e banqueteando em companhia de Pompônio Flaco e L. Pisão; logo depois, entregava ao primeiro a província da Síria e ao segundo a prefeitura da cidade (...). Enfim, instituiu um novo cargo, a 'intendência dos prazeres', que confiou ao cavaleiro romano T. Cesônio Prisco. 

Em seu retiro de Cápri, planejou até mesmo instalar um local guarnecido de bancos para a exibição de obscenidades secretas; ali, bandos de moças e rapazes libertinos, trazidos de todas as partes, e os tais inventores de acasalamentos monstruosos a que ele chamava 'espíntrias', formando uma tríplice cadeia, prostituíam-se em sua presença, espetáculo destinado a reavivar seus desejos extintos. (...) Imaginou também dispor a espaços, nos bosques e jardins, retiros consagrados a Vênus (...). De sorte que já todos o chamavam abertamente de 'Caprino', por um jogo de palavras com o nome da ilha." 

SUETÔNIO. Tibério, 41-43. In: Os Doze Césares.Tradução de Gilson C. C. de Sousa. São Paulo: Germape, 2003, p. 135-136.