“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Perfil do Imperador Cômodo

domingo, 31 de dezembro de 2017

Detalhe do busto de Cômodo vestido como Hércules. Museus Capitolinos. Cômodo passou a ser chamado "Hércules Romano" após matar animais selvagens no anfiteatro de Lanúvio (HA, Vida de Cômodo, 8.5).

Em 192 d.C., num 31 de dezembro tal como hoje, era assassinado o imperador Cômodo. Ele reinava sozinho desde 180 d.C., quando sucedeu o pai, Marco Aurélio (161-180). Cômodo foi retratado no épico A Queda do Império Romano, de 1964, e na série de 2016 da Netflix intitulada Roma: Império de Sangue.

Segundo uma fonte produzida no século IV, Cômodo "logo desde a primeira infância se mostrava vil, vergonhoso, cruel, lascivo, conspurcado até da boca e pervertido" (História AugustaVida de Cômodo, 1.7). Um vez no trono, ele chocou a aristocracia ao modelar cálices, dançar, cantar, assobiar e de "exibir na perfeição a arte do bufão e do gladiador" (de fato, ele participou de inúmeros combates de gladiadores, e matou com as próprias mãos elefantes e outros animais selvagens). O exibicionismo não parava por aí. Por exemplo, num triunfo, ele aberta e frequentemente beijava um liberto, o amante Saótero. Tal comportamento, desprezível para a elite imperial, foi repetido na orquestra (a parte do teatro reservada aos altos dignitários). 

A relação de Cômodo com o senado era das piores. Seu governo era tão opressivo que sua irmã Lucila e Quadrato, com a anuência do prefeito do pretório Tarruténio Paterno, tramaram para matá-lo. O plano foi frustrado, e a vingança contra os conspiradores foi brutal (nem Lucila, inicialmente apenas enviada ao exílio, seria poupada da execução). 

Ainda mais violenta e ampla foi a repressão aos envolvidos no assassinato de Saótero. A partir de se esbaldar em sua vingança, Cômodo delegou as tarefas da administração do império a Perene. Passou a então a dedicar-se à luxúria desenfreada e às lutas na arena. Após a morte de Perene, o poder de facto passou a Cleandro. Nesse sentido, a corrupção e a venalidade de cargos e de sentenças se intensificaram: para se ter ideia, pela primeira vez, houve 25 cônsules num só ano (189 d.C.), e todos os governos de províncias eram colocados à venda. Como sempre, o povo pagava o preço, na forma de tributos e de escassez. 

Cleandro, contudo, acabaria executado, juntamente com vários outros membros da elite romana. Entretanto, apesar do seu dissoluto "reinado de terror", os legados de Cômodo derrotaram os mauros e os dácios, e promoveram a pacificação das províncias da Panônia, da Britânia, da Germânia e da Dácia. 

A descoberta de uma nova lista de execuções, que incluía Ecleto, o prefeito Quinto Emílio Leto e Márcia, a concubina do imperador, levou os dois últimos a conspirarem contra Cômodo. Primeiro, deram-lhe veneno, mas este foi pouco eficaz. Assim, ordenaram a Narciso, com o qual Cômodo costumava treinar, que o matasse por estrangulamento. Desse modo, um dos mais sanguinários imperadores romanos não viu o ano novo de 193 d.C.

A Ambição de Gandhi

sábado, 30 de dezembro de 2017

Um líder nacional pode ter uma incrível carreira política, e uma vida sexual apelativa em termos midiáticos, mas nenhum outro aspecto que interesse a um biógrafo ou jornalista. Quanto a Gandhi, contudo, foram fascinantes toda a sua vida política, bem como sua vida espiritual, familiar e sexual. Seu relacionamento com o alimento, por si só, já preencheria um livro inteiro. 

Sobram informações sobre esse importante personagem da história da Índia e do mundo no século XX. O próprio testemunho de Gandhi ainda sobrevive, em livros, artigos, cartas e discursos que totalizam cem volumes. Dentre essas fontes, duas autobiografias, uma sobre sua vida na década de 1920 e a outra sobre suas experiências na África do Sul, constituem um guia para a relativa importância que ele dava aos vários aspectos de sua vida. 

Como todo biógrafo bem sabe, é preciso ter extremo cuidado com informações autobiográficas, principalmente se elas partem de um político. A seletividade da verdade nas obras de Gandhi, no entanto, não se relacionam tanto ao que ele queria ocultar, mas pelo que ele queria explorar em seu passado: o seu desenvolvimento moral. 

Alguns episódios de sua vida precisam ser desmistificados. Por exemplo, em 1930, Gandhi desafiou o Império Britânico ao pegar sal ainda não legalizado (sem o recolhimento dos impostos devidos). Ora, é verdade que ele foi para Dandi, mas as imagens e os relatos dessa sua visita foram fruto da montagem de um cenário muito bem pensado e cuidadosamente preparado. Nesse mesmo ano, ele concordou em desistir da desobediência civil desde que fosse aceita uma série de exigências que incluísse o direito dos indianos ao porte de armas. Para todos aqueles que consideram Gandhi uma espécie de "santo", tais revelações são, no mínimo, perturbadoras.

 Mas não para por aí. Gandhi era um homem intensamente ambicioso, ainda que essa ambição não fosse uma ambição comum. A ambição não era conseguir justiça para os trabalhadores ou a independência da Índia - essas eram exigências transitórias. Seu objetivo era nada mais do que a perfeição espiritual. 

Bibliografia consultada: ADAMS, Jad. Gandhi: a Ambição Nua. Tradução de Fulvio Lubisco. São Paulo: Geração Editorial, 2012, p. 11-19.

As Origens da Guerra Fria

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

"O fim da Primeira Guerra pelo menos alimentava a esperança de uma paz duradoura, durante uma década. Mal terminara a Segunda, eis que já se levanta a ameaça da Terceira: Não uma ameaça vaga ou distante, mas sim, pelo contrário, um confronto quase inevitável, já que é proclamado e sentido como tal, com grande estrépito, dos dois lados." 

FURET, François. O Passado de uma Ilusão. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 467.

Na Conferência de Potsdam, celebrada entre os líderes da União Soviética, Reino Unido e Estados Unidos, entre 17 de julho e 22 de agosto de 1945, já se estabeleceu uma animosidade mais aflorada entre o "mundo livre" e o bloco socialista. A Áustria, a Alemanha e a cidade de Berlim foram divididas em quatro setores, sendo que, mais tarde, na Alemanha e em Berlim restaram apenas dois: o lado ocidental, capitalista, e o lado oriental, socialista. 

Meses após o término da Segunda Guerra, no dia 5 de março de 1946, Winston Churchill fez um famoso discurso em Fulton, Missouri, EUA. Na ocasião, denunciou a "cortina de ferro" que descera sobre a Europa. Ele estava se referindo à expansão do comunismo pelo Leste Europeu, no esteio da libertação dos países dessa região pelo Exército Vermelho, nos anos finais do maior conflito que a humanidade uma vez presenciara. 

Outro importante discurso para a gênese da Guerra Fria foi feito ao Congresso americano, no dia 12 de março de 1947, por Harry Truman. Na ocasião, o presidente estadunidense buscava obter o financiamento dos empréstimos militares à Grécia e à Turquia. Indo além dessas questões práticas, ele definiu uma doutrina de ajuda aos governos e aos povos que lutavam para manter "suas livres instituições" contra o comunismo. A "Doutrina Truman", como ficou conhecida, possuía uma face externa, voltada sobretudo para a Europa; possuía também uma face interna, que dizia respeito aos Estados Unidos.   

A União Soviética não ficaria sem agir. Em setembro de 1947, quatro anos após a dissolução da Komintern, foi fundada a Kominform, a organização internacional liderada pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) para promover o intercâmbio de informações e coordenar as ações dos vários partidos comunistas da Europa. Nesse momento, ocorreu a definição de dois campos, o do imperialismo e o do socialismo. 

«Pureza Fatal», de Ruth Scurr

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017


SCURR, Ruth. Pureza fatal - Robespierre e a Revolução Francesa. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2009.

Faltava-me ler a biografia de um dos personagens mais emblemáticos da História do Ocidente: Maximilien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794). A história deste impressionante ícone começou nos confins da França do século XVIII, e só adquiriu velocidade com o início da Revolução Francesa (1789-1799). Sua vida então se acelerou, pautada no ritmo da própria revolução, atravessando dramas pessoais e políticos cada vez mais assustadores, para ser encerrada repentinamente sob a guilhotina, no verão de 1794. 

Quando, exatamente, o advogado de Arras começou a acreditar na imagem que a revolução lhe refletia? Por que motivo tal imagem tornou-se tão perigosamente hipnótica, tanto para ele quanto para seus contemporâneos e para a posteridade? E por que é tão difícil compreender quem era Robespierre e o que ele significava? 

Pureza Fatal responde a essas questões, motivado por um interesse imparcial. A autora concede ao biografado o benefício da dúvida. O Incorruptível, como era conhecido, não tinha muitos amigos, era reservado e desconfiado (conheça o Perfil do Advogado Robespierre). Desprezava o suborno, mas acabou sendo corrompido de três maneiras: era vaidoso, cometia atos impulsivos movido pelo ciúme e acreditava ser um instrumento da Providência. 

Robespierre cristalizou as principais contradições da Revolução Francesa, e por meio da compreensão de sua vida pode-se entender o período da História da França que marcou o nascimento do mundo contemporâneo.  

A Deskulakização na URSS (1929-1932)

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Propaganda soviética anti-Kulak.

"O kulak é o adversário de classe, e isso é o essencial. As qualificações variam conforme o igualitarismo: emprega um ou dois assalariados, tem uma casa grande, tem duas vacas, etc. E até, quando o camponês que deve ser deportado é tão pobre quanto os outros, basta declará-lo 'kulakizante' para fazer a maldição cair sobre ele. A categoria vale não pelo que engloba, mas pelo que autoriza. Ela é o disfarce de uma guerra contra o campensinato: matam-se ou deportam-se uns, escravizam-se os outros em grandes fazendas sob o controle do partido, kolkhozes [propriedade coletiva] ou sovkhozes [fazenda estatal]. Nunca antes algum regime no mundo se lançara numa operação tão monstruosa, de dimensão tão gigantesca e de tão vastas consequências: eliminar milhões de camponeses, destruir a vida rural até a raiz. Quando o historiador relaciona o caráter do evento com a indiferença que ele encontrou, na época, no Ocidente, e mesmo com os elogios que muitas vezes provocou, ele tem a opção entre dois tipos de explicação, que não são incompatíveis: ou o que se passava realmente na União Soviética era ignorado por ser sistematicamente ocultado, ou então a ideia da 'coletivização dos campos' evocava em muitos espíritos o funcionamento de uma utopia positiva, somado a um sucesso sobre a contra-revolução. A capacidade de mitologizar sua própria história constituiu uma das mais extraordinárias façanhas do regime soviético. Mas essa capacidade teria sido menos eficaz se não se tivesse somado a uma tendência à credulidade inscrita na cultura europeia da democracia revolucionária." 

FURET, François. O Passado de uma Ilusão. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 178.

O Terror (1793-1794)

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Execução de Robespierre e de seus apoiadores no dia 28 de julho de 1794. Autor desconhecido.

O girondino Condorcet identificou Robespierre como o sumo sacerdote da revolução. Ora, esse "sumo sacerdote" lutou pela morte do rei Luís XVI com uma solenidade religiosa. O guilhotinamento do monarca, no dia 21 de janeiro de 1793, espalhou-se como uma mancha pela Europa e, até mesmo na jovem república estadunidense, a reação foi ambivalente. Dez dias depois dessa execução, a Convenção declarou guerra à Inglaterra e à Holanda. 

Com a mente "infestada" de campos de batalha e de relatos da revolta monarquista e católica nas províncias, com mágoas e impressionado com os parisienses famintos, o líder jacobino Danton persuadiu a Convenção a reinstaurar o Tribunal Revolucionário, com poderes extraordinários de condenar as pessoas à morte. Além de apoiar integralmente a solicitação, Robespierre ainda propôs que a pena de morte fosse aplicada a todos os atos contrarrevolucionários dirigidos "contra a segurança do Estado ou contra a liberdade, a igualdade, a unidade e a indivisibilidade da República." No dia 10 de março de 1793, o Tribunal Revolucionário foi reinstaurado. 

Na noite do dia anterior, grupos armados saquearam as ruas de Paris. Enquanto isso, as notícias provenientes da frente de batalha pioravam. Em 18 de março, na batalha de Neerwinden, as tropas francesas sob o comando do general Dumouriez foram derrotadas pelo inimigo e fugiram rapidamente do campo de batalha. Em meio ao pânico em Paris, a Convenção decidiu criar comitês de vigilância em todas as comunas do país para inspecionar as atividades de estrangeiros e suspeitos. 

Após saber que Dumouriez havia desertado para o exército austríaco, Danton impeliu a Convenção a criar o Comitê de Segurança Pública - um governo revolucionário provisório designado para supervisionar a acelerar o exercício do poder ministerial. Em setembro de 1792, a Convenção havia estabelecido o Comitê de Segurança Geral, e agora os dois comitês deveriam trabalhar em parceria, e ambos deveriam responder formalmente à Convenção. Com o tempo, contudo, a relação entre os dois comitês tornou-se extremamente frágil. 

Em meio à crise, a nova república precisava urgentemente de um exército maior para vencer a guerra contra as potências estrangeiras. Para obter recrutas, a Convenção recorreu à conscrição e decretou uma cota para cada um dos 83 departamentos. Na falta de voluntários suficientes, homens deveriam ser sorteados e alistados à força. Com isso, os descontentes da Vendeia - uma região especialmente religiosa - explodiram em uma guerra civil terrível. Nesse período, Robespierre estava mais histérico publicamente do que nunca, convencido de que estava prestes a ser assassinado.

A propriedade privada passava a ser o novo foco de controvérsia na Revolução. Os girondinos queriam uma república que protegesse fortemente a propriedade privada e as diferenças na riqueza pessoal dos cidadãos. Os jacobinos, liderados por Robespierre, propuseram limites à propriedade privada, visando ao interesse do povo. Marat, o mais franco e provocador de todos os jacobinos, passou a ostentar o seguinte lema em seu jornal: "Taxemos os ricos para subsidiar os pobres." Por essa razão, foi indiciado, mas seus colegas jacobinos no Tribunal Revolucionário não só o inocentaram, mas também o coroaram com uma guirlanda cívica. 

O ambiente político entre girondinos e jacobinos se deteriorava rapidamente. Enquanto os primeiros passaram a atacar a Comuna, Robespierre, o grande representante dos segundos, não mais defendia a liberdade de imprensa. Ele perdoou a destruição das gráficas girondinas. Em 11 de maio, as seções de Paris exigiram a expulsão dos deputados girondinos em nova petição à Convenção. No dia 2 de junho, os líderes girondinos que não tinham fugido foram presos temporariamente. No dia 13 de julho, Marat foi assassinado por uma girondina.

Apesar de todas essas tensões, em agosto de 1793, a Convenção elaborou a mais democrática constituição que o mundo moderno já vira. Ela também ampliou o papel do Estado, mas teve que ser suspensa mal havia sido criada. Robespierre, assim como Saint-Just, Danton e Marat, acreditava há tempos que o terror era o único instrumento capaz de salvar a Revolução. 

Tamanho radicalismo cobrou o seu preço. A simpatia pela Revolução estava sendo minada nas províncias. Em Lyon (onde a contrarrevolução triunfou em maio de 1793) e em outros lugares, ocorreram execuções em massa horripilantes, nas quais pessoas eram mortas com tiros de canhões de metralha e grupos eram afogados no rio Vendeia - crimes contra humanidade pelos quais os revolucionários teriam que responder sob a legislação de direitos humanos da qual eles foram os pioneiros. 

Em 2 de setembro, chegou a Paris a notícia de que os rebeldes contrarrevolucionários haviam rendido a grande base naval em Toulon aos ingleses. Parisienses famintos e irados entraram em pânico e a cidade ficou inteiramente fora de controle por vários dias. Assim, no dia 5 de setembro, a Convenção declarou o terror "a ordem do dia". Recursos equivalentes a 100 milhões de livres foram aprovados para fornecer um mosquete a cada homem na França, o Tribunal Revolucionário foi expandido e, no dia 17 de setembro, foi aprovada a Lei dos Suspeitos. Após a declaração do dia 5 de setembro, o Terror permaneceu como o regime oficial da França por nove meses. Nesse período, 16 mil pessoas foram oficialmente condenadas à morte e um número bem maior de vítimas não oficiais morreu na prisão ou foi linchada sem julgamento. 

No dia 9 de junho de 1794 - um dia após o Primeiro festival do Ser Supremo - Robespierre redigiu leis que fortaleceram ainda mais o Tribunal Revolucionário. Além disso, ele inventou uma nova categoria de criminosos: inimigos do povo. Na sequência, sem a discussão prévia habitual no Comitê de Segurança Pública, foram aprovadas pela Convenção as propostas que ficaram conhecidas como a infame Lei de 22 de Prairial (10 de junho). Nos 47 dias seguintes - até o 9 de termidor (27 de julho), quando Robespierre foi preso - o Terror atingiu o seu clímax. Somente na capital francesa, 1.376 foram guilhotinadas nesse período, o que representa um número maior que em todos os meses desde que fora estabelecido por Danton, em março de 1793.  

Bibliografia consultada: 
BLUCHE, Frédéric. et. al. Revolução Francesa. Tradução de Rejane Janowitzer. Porto Alegre, RS: LP&M, 2009.
SCURR, Ruth. Pureza fatal - Robespierre e a Revolução Francesa. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2009, p. 273-308 e p. 349-352.

Mensagem de Natal de Ronald Reagan

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Perfil de Stálin, o Georgiano

domingo, 24 de dezembro de 2017

"Obrigada ao querido Stálin, pela infância feliz!"

"O paradoxo de Lênin é ter deliberadamente instaurado a ditadura de seu partido e ter temido as consequências disso. Esse dogmático sectário, esse homem de ação explosivo não teve medo de pôr o Estado sob o domínio do partido e de instaurar o reino do terror, mas temeu, antes de morrer, a burocratização do regime que fundara. 

Stálin, por sua vez, sente-se à vontade na burocracia do partido e no atraso russo. Desde 1922, é o secretário-geral, cargo sem destaque no começo, de que ele aos poucos foi fazendo um formidável instrumento de clientelismo e de poder. Georgiano, torna-se mais russo do que os russos, como um homem nascido às margens do império e chegado ao seu centro. Fez parcos estudos, leu pouco. Lênin tinha uma boa dose de populismo russo em seu marxismo, mas tinha um pé na cultura europeia. Ele conhece Marx através de Lênin, sobrepondo sua ignorância a uma interpretação já simplista. De qualquer forma, tem pouco gosto pelas discussões, menos ainda pelas ideias, mas sabe que elas fazem parte da tradição bolchevique: não há estratégia ou virada política que não deva ser justificada em 'teoria'. Quem quer ser o herdeiro de Lênin deve dominar também essa particularíssima arte. Por isso ele publicou os Fundamentos do leninismo, obra composta de uma série de conferências redigidas para a Universidade comunista de Sverdlov, em abril de 1924. (...) É o equivalente, na ordem doutrinal, do mausoléu de Lênin na ordem simbólica. Stálin escreveu o comentário destinado a se tornar sagrado do pensamento de Lênin. Muitas vezes, corta seu texto com longas citações, para melhor se apropriar da substância do pai fundador falecido. De quando em quando, um sarcasmo ridiculariza o erro ou a objeção de um adversário passado ou presente, pois a exposição deve ser lida em dois níveis, como imposição de um dogma político e como acento de contas mais ou menos explícito. Tudo isso forma um tratado pedagógico compacto e sem graça, mas claro: simplificação do marxismo de Lênin, que era uma simplificação do marxismo de Marx. Mas o autor desse catecismo camponês acrescentou a ele uma contribuição original: teve o cuidado de apimentar seu texto com homenagem ao gênio do proletariado e do campensinato russos que com certeza teriam escandalizado Lênin. O chefe da Revolução de Outubro pretendera-se revolucionário, embora russo. Stálin, o Georgiano, optou ser russo porque revolucionário." 

FURET, François. O Passado de uma Ilusão. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 165-166.

#15Reflexões A Revolução Russa

sábado, 23 de dezembro de 2017

1. A Revolução de Outubro de 1917 foi a revolução proletária no mais atrasado dos países europeus - a Rússia. Inicialmente, foi vista com cautela. Não teria sido apenas um putsch tornado possível pela ocasião? De qualquer forma, magnetizou as imaginações com o reaparecimento da ideia revolucionária. Após ela, nenhum país seria considerado incapaz de ser o "soldado da revolução universal". 

2. Dessa forma, os bolcheviques foram os sucessores dos franceses do fim do século XVIII. O leninismo tinha preferência pela ditadura de salvação pública dos jacobinos, entre 1793 e 1794. Contudo, os bolcheviques foram além do Terror, e fizeram do governo de exceção a regra.

3. Outro traço da Revolução Russa sem paralelo na Revolução Francesa: a irrupção, no curso dos acontecimentos, de um partido que procede a um confisco absoluto do poder em nome de princípios inversos aos dos primórdios da revolução. Qualquer comparação entre as duas revoluções se tornou insustentável quando a ditadura do partido de Lênin passou a se mostrar eterna. 

4. A vitória de Lênin (1870-1924) foi acompanhada de uma rejeição aberta a todo reformismo. Para Boris Souvarine (1895-1984), a contrarrevolução desculparia a necessidade do terror por parte dos sovietes (a mesma escusa para os crimes do Terror de 1793-1794). Dentre os críticos da ditadura bolchevique, alguns defendiam a pressão - e mesmo a intervenção - internacional.  

5. Os sobreviventes da democracia russa de fevereiro não nutriam simpatias pelo bolchevismo. Foram grandes patriotas em 1914 e deploraram a defecção russa em Brest-Litovsky. Internacionalmente, a derrubada do czarismo, em fevereiro de 1917, foi encarada como um fenômeno local. Outubro, por outro lado, passou a gozar a universalidade. 

6. O decreto sobre a terra para os camponeses e o tratado de Brest-Litovsky (março de 1918) mostraram a diferença entre a revolução de Outubro (conduzida pelos bolcheviques) e a de Fevereiro (liderada pelos mencheviques). Por outro lado, Lênin confiscou o poder em alguns meses e abriu uma nova revolução contra a burguesia.

7. A Rússia bolchevique de Outubro se instalou na herança da Revolução Francesa. Isso ocorreu no mesmo momento em que Lênin liquidou toda a oposição e instaurou o "arbítrio do terror". A ideia leninista só penetrou profundamente na opinião de esquerda da época porque cruzou a ideia jacobina, adquirindo por fusão a sua força mitológica.

8. Desde Lênin, o bolchevismo impôs o silêncio a seus críticos. Essa foi uma parte essencial ao seu reinado do terror, instalado já em 1918. Entretanto, Rosa Luxemburgo (1871-1924) e Karl Kautsky (1854-1938) negaram aos bolcheviques o privilégio de representarem toda uma classe social.  

9. Os socialistas rejeitaram a Revolução Bolchevique como um desvio, mas reconheceram que ela derrubou o capitalismo. Toda a esquerda europeia da época comungava da ideia de que o fim do capitalismo era iminente. 

10. Bertrand Russell (1872-1970) conheceu a Rússia em 1920. Em sua visita, não viu muitos pontos positivos no que a experiência revolucionária russa comportava de novo. Em nenhum instante ele se enganou sobre o mito soviético de uma democracia direta. O que mais combateu no bolchevismo foi a sua pretensão à universalidade.

11. A Revolução Russa acabou com a NEP (Nova Política Econômica), implantada por Lênin, em 1921. No entanto, analisando sob outro prisma, ela prosseguiu e o líder bolchevique só realizou um recuo tático. O poder permaneceu com aqueles que fizeram a Revolução de Outubro, perpetuando-a.

12. A probabilidade de novos "Outubros" na Europa do pós-guerra foi superestimada e por toda a parte foram implantados partidos submissos, através da força do marxismo-leninismo. O preço da ortodoxia (a ortodoxia aqui entendida como o partido, ou melhor, seus chefes, como único ponto de referência): dissensões passaram a ser encaradas como heresias.  

13. A partir da fundação da Internacional, em 1919, o comunismo passou a ser um sistema internacional centralizado, no interior do qual o partido russo desempenhava o papel dirigente. A "receita" dos bolcheviques: militância quase militar, realismo político radical e altas doses de ideologia. 

14. Quando estava no poder, Trotsky (1879-1940) cometia terrorismo e concordava com a ditadura absoluta do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Quando caiu em desgraça, mesmo exilado, estaria cativo da "superstição" do partido. E, no exílio, prolongou a mitologia dos Sovietes.

15. A fé comunista parece unir a ciência e a moral, duas ordens de razões miraculosamente reunidas. "Quando acredita realizar as  leis da História, o militante luta também contra o egoísmo do mundo capitalista, em nome da universalidade dos homens" (p. 156).

Bibliografia consultada: FURET, François. O Passado de uma Ilusão. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 80-156.

Spider Consense

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O humor é uma das melhores armas para se combater a intolerância e os absurdos da esquerda. Nesse sentido, em 2017 foi criado um canal brilhante: Spider Consense. Vale a pena se inscrever e compartilhar a notícia.

Para "fechar" o ano, a paródia "E o fascista sou eu?":  

Paisagem Noturna

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Paisagem noturna com Rio e Casebre, óleo s/madeira, 58x88 cm, João Bertoni (1889-1980). 

João Bertoni foi um pintor nascido em Madaloni, Itália, em 1889, e falecido no Rio de Janeiro, em 1980. Foi filho de Ângelo Bertoni, também pintor, e irmão do artista plástico Bertoni Filho. Sabe-se que foi mencionado na imprensa de Curitiba, entre 1941 e 1942, e no livro Artistas Pintores do Brasil (1942), de Theodoro Braga. 

Como pode-se ver, Paisagem noturna é um bom exemplo de arte figurativa, que é um tipo baseado na representação ou objetos reconhecíveis. Ao retratar a natureza com uma pequeníssima interferência humana (o casebre), o quadro transmite muita paz e, ao mesmo tempo, um ar de mistério. A exuberância da criação é exposta de forma impressionante.     

A Saturnália

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Os finais de ano eram um dos momentos mais aguardados pelos romanos. A razão era a chegada da Saturnália, celebrada sempre antes do solstício de inverno. Essa festividade surgiu em 497 a.C., e relacionava-se à agricultura. Após o semeio, os romanos pediam a Saturno o auxílio necessário para que as sementes suportassem os rigores do inverno antes de germinar e crescer com a primavera. 

Leia mais em Antigua Roma.  

«A História da Humanidade Contada Pelos Vírus»

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

O livro encontra-se disponível gratuitamente aqui

Há algum tempo eu pretendia adquirir e ler esse livro. Recentemente, graças a uma promoção no site da Saraiva, eu pude comprá-lo. Eis a referência completa:       

UJVARI, Stefan Cunha. A História da Humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microrganismos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.

O título despertou-me grande curiosidade. Através dos vírus, bactérias e outros microrganismos os passos do homem ao longo das épocas e dos continentes seriam mapeados. Era o que eu esperava. Infelizmente, não foi o que encontrei. 

Stefan C. Ujvari é médico infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. Já lecionou, como professor substituto, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e é mestre em doenças infecciosas. Isso explica, em parte, a minha frustração. 

O livro pode ser qualquer coisa, menos uma história da humanidade conta pelo vírus. Trata-se, antes, de uma história dos vírus, bactérias e epidemias. A humanidade é um elemento intrínseco ao relato, mas bastante marginal. Além disso, a narrativa é desorganizada, frustrando aqueles que apreciam uma boa história cronológica. As análises também são superficiais, são alcançando algum detalhamento na parte estritamente científica. 

Apesar disso, a obra tem o mérito de esclarecer a origem de certas doenças e epidemias. Fornece uma introdução à compreensão do impacto desses fenômenos às sociedades humanas, em diversos períodos históricos. 

#15Fatos A Segunda Revolta Judaica

domingo, 17 de dezembro de 2017

Tetragrama de Simão bar Kokhba, cunhado em Jerusalém em comemoração à independência da Judeia.

1. No ano 70 d.C., após a derrota dos rebeldes judeus que defendiam Jerusalém, o general romano e futuro imperador Tito ordenou aos legionários da X Fretensis que arrasassem totalmente a cidade e, na sequência, que construíssem entre as ruínas um acampamento permanente para as tropas. 

2. Foi esse cenário de desolação que o imperador Adriano e seu séquito encontraram quando chegaram às colinas da Judeia, no verão de 131 d.C. Restavam poucas construções. Assim, o imperador deu ordens a seus subordinados para que construíssem uma nova cidade (Aelia Capitolina), no mesmo lugar da antiga Jerusalém. Ela teria o status de colônia e seria destinada a receber legionários reformados.

3. Aos judeus, era intolerável que povos estrangeiros vivessem em sua santa cidade, praticando ritos religiosos pagãos. Além disso, Adriano havia proibido a prática da circuncisão em todo o império. Tudo isso levou os judeus da Judeia a se reunirem em torno de Simão bar Kokhba, o líder da Segunda Revolta Judaica contra o Império Romano (132-135).   

4. A liderança de Bar Kokhba adquiriu credibilidade entre os judeus por ele afirmar ser descendente do rei Davi e por ser respaldado pelo rabino mais influente da época, Akiva ben Yosef, que chamava o líder revoltoso de o "Filho da Estrela". Isso implicava que ele era o tão esperado Messias judeu. 

5. A revolta de Bar Kokhba foi planejada com calma e astúcia. No restante do ano de 131, embora Adriano estivesse nas proximidades da Judeia (Egito e depois na Síria), Bar Kokhba e seus seguidores seguiam fabricando as armas que deviam entregar aos seus senhores romanos como forma de tributo. Contudo, as fabricavam com defeitos, enquanto preparavam boas armas para si próprios. Ao mesmo tempo, começaram a construir baluartes subterrâneos em lugares isolados. 

6. Os funcionários romanos da Judeia não prestaram atenção à revolta latente. Na primavera de 132 d.C., a agitação havia se estendido por toda a província, com judeus se reunindo em todas as partes, tanto em segredo quanto publicamente. O movimento rebelde recebia então ajuda de regiões distantes, onde existiam grandes comunidades judias (como as localizadas a leste do Eufrates, na Pártia).

7. A revolta estourou num dia da primavera de 132 d.C. Por toda a província da Judeia, uma série de ataques simultâneos e coordenados que surpreenderam os romanos, mostraram a força dos revoltosos. As legiões aquarteladas na província (X Fretensis, em Jerusalém, e VI Ferrata, na Galileia) levaram a pior nesse levante. 

8. O governador da província, Tineu Rufo, sobreviveu ao início da revolta porque estava na costa, no quartel-general da Cesareia. Os habitantes dos territórios judeus que não apoiavam a revolta - como os cristãos - sofriam nas mãos dos rebeldes sendo, inclusive, assassinados. Ao saber da revolta, Adriano destacou um de seus melhores generais, Sexto Júlio Severo, então governador da Britânia, para esmagar a sedição.

9. É provável que Severo não conseguiu chegar à Judeia antes da primavera ou do inverno do ano 133 d.C. A situação que encontrou era dramática - Dião Cássio escreveu que os romanos foram duramente penalizados ao longo da revolta, embora nenhuma fonte afirme que uma legião tenha sido destruída, ou ao menos perdido a sua águia.

10. Bar Kokhba estabeleceu o seu quartel-general na fortaleza de Bethar, localizada a 12 Km a sudoeste de Jerusalém. A fortaleza, de forma quase ovalada, cobria dez hectares. Logo no início da revolta, os rebeldes conquistaram e destruíram a fortaleza da X Fretensis em Jerusalém. Os legionários capturados foram passados ao fio da espada e, finalmente, o ofensivo porco de mármore que os romanos haviam colocado sobre a porta da cidade foi derrubado.

11. Nos três anos seguintes, Bar Kokhba governou a Judeia a partir de Bethar. Ele era assessorado por um Sinédrio, e chegou a cunhar suas próprias moedas, provavelmente após fundir moedas romanas tomadas como butim. 

12. Severo enfrentou o mesmo desafio que Vespasiano no ano 67 d.C.: recuperar Jerusalém e boa parte da Judeia das mãos dos rebeldes judeus. Para consegui-lo, precisou de reforços, provenientes da III Cyrenaica e da III Galica

13. A resposta romana foi dura e implacável, do mesmo modo que havia sido o massacre dos romanos pelos rebeldes no começo do levante. Tendo em vista a inferioridade numérica de suas forças frente a centenas de milhares de rebeldes armados, o general romano Severo concebeu uma estratégia brutal, porém efetiva. Ele dividiu suas unidades em uma série de grupos menores e de amplo alcance que interceptavam agrupamentos pouco numerosos de judeus. Estes eram capturados, aprisionados e, privados de alimento, morriam de fome. 

14. Em outras regiões, as colunas volantes romanas empreendiam razias relâmpago. Ao localizarem postos avançados de judeus escondidos, todos os revoltosos eram aniquilados, em número de até cinquenta de uma só vez. Foi posta em prática uma verdadeira operação de limpeza étnica que ceifou as vidas de 580 mil homens. Assim, Severo derrotou a revolta sem enfrentar seus oponentes em campo aberto uma única vez.

15. Ao promover o assédio a Bethar (onde, segundo o Midrash judaico, chegaram a reunir-se 200 mil judeus em torno de Bar Kokhba), Severo seguiu o modelo utilizado no cerco a Massada, 62 anos antes. A queda de Bethar e o massacre de todos os que se encontravam no interior de seus muros pôs fim à Segunda Revolta Judaica. Aos judeus, foi proibido até mesmo se aproximar de Jerusalém, e a província da Judeia passou a se chamar Síria Palestina.   

Bibliografia consultada: DANDO-COLLINS, Stephen. Legiones de Roma - La Historia definitiva de todas las legiones imperiales romanas. Traducción de Teresa Martín Lorenzo. Madrid: La Esfera de los Libros, 2012, p. 464-474.

#15Fatos O Bandido no Mundo Clássico

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Na parábola do bom samaritano (Lc 10:30-35), um judeu é vítima dos salteadores típicos das perigosas estradas do Mundo Antigo. 

1. Apuleio destacou aquilo que considerava as características essenciais da figura do bandido: uma tradição hereditária de fora-da-lei, uma "alteridade" bárbara e a afirmação de sua independência pessoal.

2. A Cilícia era a fortaleza dos piratas durante a República. Eles se colocaram a serviço de Mitrídates durante a sua guerra contra Roma (88-85 a.C.). Durante as guerras civis do século I a.C., eles se aproveitaram da situação e devastaram ilhas e cidades costeiras.

3. O banditismo era uma forma de poder pessoal. Esse poder pessoal, baseado no carisma, na impressão causada pelo aspecto, na força bruta e em laços de tipo pessoal (familiares, de amizade ou clientelares) é provavelmente uma das formas originárias de poder que a humanidade conhece. 

4. "Uma vez desaparecida a justiça, o que são os reinos senão grandes quadrilhas de bandidos? E o que são as quadrilhas de bandidos senão pequenos reinos?" (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, 4, 4).

5. Teseu, o lendário fundador da Ática, derrotou lestai (bandidos) antes de comandar a grande unificação mítica (synoikismos) da Ática, a fundação do Estado ateniense. No caso de Roma, são Rômulo e Remo que abandonam o seu papel de pastores-bandidos para fundarem a nova cidade.

6. Segundo a moral dominante, quem se dedicava ao banditismo fazia-o contra as suas próprias convicções éticas - se tivesse tido a possibilidade de escolher, o bandido teria preferido adquirir bens licitamente, e não roubando.

7. Na visão dos romanos, ou se era um Estado legítimo e reconhecido, capaz de combater numa guerra regular (bellum) com o Estado romano, ou se era um bandido. Assim, nossas categorias de "bandido" e de "banditismo" não se ajustam a esta sumária definição romana.

8. Existia um tipo de banditismo parasitário de subsistência em que a aquisição de bens e serviços dependia diretamente do uso da violência física e das ameaças. Tanto Platão como Aristóteles reconheciam no banditismo (lesteia) um dos "modos de vida" fundamentais do homem, ao lado da caça, do pastoreio e da agricultura. 

9. Segundo as "leis" atribuídas a Sólon (c. 594 a.C.), parece que em Atenas era absolutamente legal constituir "sociedades de piratas" com o objetivo de atacar outras cidades. No século seguinte, Tucídides testemunhou a existência de comunidades gregas para as quais a pirataria era uma ocupação totalmente respeitável, e mesmo honrada.

10. No auge do Império Romano, contudo, as principais correntes ideológicas não admitiam a possibilidade de coexistência do poder dos bandidos com o poder do Estado. 

11. Cícero, em De Officiis, 2, 11, 40, fez menção às "leis dos bandidos" (leges latronum), obedecidas e respeitadas pelos foras-da-lei. Por exemplo, se um bandido roubasse algo de um comparsa, seria expulso do bando; o chefe dos piratas, caso não dividisse igualmente a presa, era morto ou abandonado pelos companheiros.

12. A definição de bandido própria do Estado romano teve um sentido de desaprovação e de condenação tão intenso que o termo "bandido" (latro) se aplicava aos inimigos políticos, em especial os inimigos acérrimos em cujos atos se podia detectar um gênero de violência que se podia identificar como ameaça de regresso da sociedade civil ao caos primordial.  

13. Nas fontes literárias romanas, os bandidos muitas vezes eram incluídos entre os desastres naturais, tais como a peste e os terremotos. Além disso, um número bastante elevado de epitáfios recordam que o defunto foi "morto por bandidos" (interfectus a latronibus).

14. Mais vastas e ameaçadoras do que qualquer terra pantanosa eram as longas faixas montanhosas que atravessavam os países mediterrânicos: o Atlas, os Pireneus e os Alpes, os Apeninos, o Tauro e o Antitauro, o Líbano. Tais regiões constituíam um "outro mundo", quase impenetrável e desafiadoras para ações de policiamento.

15. Amiano Marcelino descreveu vagas maciças de banditismo na Isáuria (anos 350-70). Ele reportou um verdadeiro fenômeno histórico de longa duração, uma espécie de autonomia regional que denominada latrocinium. Em tais zonas, a violência tinha um caráter endêmico que sempre afligia o Império Romano e, depois, o Bizantino.   

Bibliografia consultada: SHAW, Brent D. O Bandido. In: GIARDINA, Andrea (dir.). O Homem Romano. Tradução de Maria Jorge V. de Figueiredo. Lisboa: presença, 1991, p. 247-258.

O Arianismo e os Bárbaros

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Úlfilas explicando o Evangelho aos godos. Gravura de c. de 1900.

Em 360, quando o semi-arianismo era o cristianismo oficial do Império Romano, Úlfilas foi consagrado bispo. Ele então partiu para ser missionário junto aos godos nas fronteiras do Mar Negro, ensinando-os o cristianismo ariano. 

Quando os godos invadiram a região Noroeste do Império, e lá se estabeleceram, levaram consigo seu cristianismo ariano. À medida em que se espalharam pelo império, os visigodos e os ostrogodos levaram a heresia para a Itália, a Espanha, o Norte da África e a Gália. 

Os invasores viviam em constante conflito com a Igreja do Império e com as populações que haviam conquistado. No século VI, no entanto, os reinos arianos foram absorvidos pelo catolicismo e a heresia acabou desaparecendo por volta do século VIII, como forma organizada de cristianismo. Contudo, a concepção básica do Filho, como intermediário diferente do Pai, não desapareceu. Até hoje, as Igrejas Unitárias constituem um bom exemplo de antitrinitarianismo. 

A heresia ariana, como muitas outras heresias, foi um elemento catalisador na formação da doutrina "ortodoxa". Os credos que tinham sido usados no batismo variavam ligeiramente entre si nas diferentes cidades e nos distritos do Império Romano. No Concílio de Constantinopla, a fórmula de Niceia foi aceita e incluída num credo que deveria ser usado por toda a Igreja.   

Bibliografia consultada: O'GRADY, Joan. Heresia - o jogo de poder das seitas cristãs nos primeiros séculos depois de Cristo. Tradução de José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1994, p. 110-111.

A Heresia Ariana

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

É importante observar que ideia do que constitui uma heresia mudou bastante. Até o século IV, a "Grande Igreja" concentrava-se na tarefa de preservar a unidade e a continuidade do ensinamento cristão. Atacava o que fosse considerado "heresia", porque tal "heresia" poderia enfraquecer e dividir a continuidade cristã. Mas, a partir de então, uma "heresia" passava a significar "uma negação direta daquilo que é verdadeiro". Evitar uma má compreensão da Tradição é diferente de combater quem nega "a" exposição da Verdade. 

O Édito de Tolerância, promulgado por Constantino em 313, trouxe a paz aos cristãos do Império. No entanto, essa paz deu lugar à controvérsia interna. A Igreja católica, no sentido de uma igreja "universal", começava a ser uma instituição organizada, com seu próprio cânon de Escrituras e um corpus doutrinário oficial. As disputas religiosas centravam-se então na formulação dessas doutrinas. Os embates, que acabaram por se transformar em heresias, eram diferentes das divergências dos séculos anteriores. 

As heresias normalmente surgem quando se levantam questões que desafiam a lógica humana. As heresias primitivas surgiram em torno do perene problema do Bem e do Mal - como compreendê-lo e como interpretar o ensinamento cristão para explicá-lo. As heresias do século IV surgiram de outro problema que parecia impossível de responder - o significado da Trindade e da Natureza de Cristo. 

No século IV, o Império Romano do Oriente era o principal centro de discussão teológica. Os problemas religiosos permeavam todo o cotidiano, e os gregos, assim que adotaram o cristianismo, trouxeram consigo o amor pela disputa e pela definição lógica das coisas. 

Para alguns, as tentativas para explicar a divindade de Cristo estavam levando ao perigo de esquecer a sua humanidade. Esse receio levou Ário (256-336), um sacerdote de Alexandria, no começo do século IV, a protestar contra o que considerava ser sabelianismo de seu bispo, Alexandre. Uma das metas de Ário era estabelecer a unidade e a simplicidade de Deus. Como espírito puro, o Pai não podia manter contato direito com o mundo material, razão pela qual existia a necessidade de um intermediário. E este era o Filho, um Ser criado, apesar de formado antes do começo dos tempos. Cristo era divino apenas por causa da participação na divindade do Pai, que era transcendente a tudo e estava acima de todas as coisas. 

Ao negar completamente a divindade de Cristo, Ário incluiu uma negação da divindade do Espírito Santo. Outros foram ainda mais longe, afirmando que o Espírito Santo era um ministro, tal como os anjos (cf. a heresia macedônica, fundada por Macedônio). 

O bispo de Alexandria pediu a excomunhão de Ário e anatematização de todos os seus textos. Ário reuniu apoiadores e, desta forma, surgiram grupos rivais. O grande movimento de ruptura conhecido como heresia ariana acabaria por dividir a Igreja cristã, e só desapareceu por completo no século VIII. 

Ao contrário do que muitos pensam, foi o arianismo, e não o cristianismo trinitário, que esteve mais suscetível às influências da cultura politeísta (pagã). Como destacou a minha coorientadora do mestrado, em artigo publicado em 2013,   

"As diferentes versões do cristianismo no séc. IV, nomeadamente as questões trinitárias e a questão cristológica, que animaram a especulação teológica destes séculos IV e V, estiveram também contaminadas por um contexto filosófico e religioso pagão, que é necessário ser transferido para o cristianismo. Assim, a versão arianista do cristianismo esteve mais próxima deste monoteísmo religioso pagão do que o próprio cristianismo, na sua concepção trinitária, adquiriu." 

DIAS, Paula Barata. Cristianismo e responsabilidade cristã na queda de Roma. In: BRANDÃO, José Luís et. al. A queda de Roma e o alvorecer da Europa. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, abril de 2013, p. 48, nota 6. Destaques acrescentados.

Deixando de lado as questões teológicas, há que se considerar sumariamente o impacto político dessa controvérsia. O imperador Constantino, alarmado diante dessa crescente desunião em seu império, convocou o primeiro concílio (ecumênico) mundial, o de Niceia (325). Ao término desse concílio, a fórmula do Credo usada na preparação dos catecúmenos para o batismo em Cesareia foi aceita como base para o acordo, e a palavra homoousios (de uma única substância) passou a ser utilizado para descrever o Ser de Cristo. Assim, confirmava-se que Cristo possuía a mesma natureza do Pai. Além disso, o credo de Niceia estabeleceu, de uma vez por todas, que as três pessoas da Trindade eram iguais em majestade e era um único Deus. 

Ário foi excomungado e mandado para o exílio. Muitos, porém, que se opunham ao arianismo, desagradaram-se com a adoção da palavra homoousios, que não consta em nenhuma parte da Bíblia. Embora o ocidente latino tenha aceitado pacificamente a definição de Niceia, o oriente grego dividiu-se em muitas escolas de pensamento, sendo afligido por ameaças de sabelianismo. 

As disputas doutrinárias e pessoais se multiplicaram, tendo em Atanásio, o bispo de Alexandria, o maior oponente do arianismo. Para ele, o significado da revelação cristã dependia de Cristo ser totalmente humano totalmente Divino. 

Os sucessores do imperador Constantino foram, em sua maioria, arianos ou semi-arianos - adotavam a fórmula de que o "Filho era igual ao Pai", "de substância parecida, mas não da mesma substância" (homoiousius). Entretanto, em 381, o imperador Teodósio convocou o Concílio Ecumênico de Constantinopla, que transformou a doutrina de Niceia em definição de ortodoxia católica, e a Igreja católica (universal) dos cristãos foi declarada como Trinitária. Esse cristianismo "trinitário ortodoxo" foi estabelecido por Teodósio como a única religião oficial do Império Romano. 

Bibliografia consultada: O'GRADY, Joan. Heresia - o jogo de poder das seitas cristãs nos primeiros séculos depois de Cristo. Tradução de José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1994, p. 99-112.

A Heresia de Orígenes

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Segundo a explicação de Orígenes (c. 185-253), a Santíssima Trindade está unida em uma só Divindade - o Pai, não gerado; o Filho, a Sabedoria e o Poder de Deus que dirigem o Universo; e o Espírito Santo, trazido à existência pelo Pai através de Cristo. O jovem líder da escola catequética alexandrina acreditava, como os gnósticos, num Cristo divino, descido do céu. Mas ele também afirmava que o Salvador devia ter tido a alma, a mente e o corpo de um homem.

Apesar de simpatizar com muitos ensinamentos gnósticos, Orígenes procurou contradizer estas ideias em particular, considerando-as um perigo para a autêntica tradição cristã. Por outro lado, aqueles que, como Paulo de Samósata, sublinhavam a humanidade de Cristo acima de tudo, rechaçaram os ensinamentos de Orígenes por enfatizar Sua divindade. Apesar disso, curiosamente, os ensinamentos de Orígenes foram mais tarde atacados e condenados pelos líderes da Igreja, para quem Cristo era igual a Deus, e consideravam que Orígenes tinha tornado o Filho um subordinado. 

Apesar da profundidade do ensinamento de Orígenes, ainda parecia não responder a questão de como podiam existir em Cristo tanto o Divino quanto o humano, e qual era a relação de Jesus Cristo com o Deus Uno Onipotente. 

Orígenes aceitava a ideia de que o Logos - o Filho, conforme é descrito no Evangelho de João - era o mediador entre Deus e o homem. Nesse sentido, era subordinado a Deus, o Pai de todos. Esse "subordinacionismo" foi uma das chamadas "heresias" que causaram a condenação dos textos de Orígenes no século V. 

As relações entre Deus e Cristo, e entre este e o homem, formaram a substância das controvérsias dos séculos IV e V e, através destas, a das heresias do mesmo período. Frequentemente, as intermináveis dissidências, condenações e contracondenações não passavam de disputas entre os teólogos quanto ao detalhado uso das palavras sobre diferenças mínimas na "expressão do inexprimível".     

Bibliografia consultada: O'GRADY, Joan. Heresia - o jogo de poder das seitas cristãs nos primeiros séculos depois de Cristo. Tradução de José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1994, p. 103-104.