“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

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Villa Borghese, Roma, Itália.

A Heresia Ariana

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

É importante observar que ideia do que constitui uma heresia mudou bastante. Até o século IV, a "Grande Igreja" concentrava-se na tarefa de preservar a unidade e a continuidade do ensinamento cristão. Atacava o que fosse considerado "heresia", porque tal "heresia" poderia enfraquecer e dividir a continuidade cristã. Mas, a partir de então, uma "heresia" passava a significar "uma negação direta daquilo que é verdadeiro". Evitar uma má compreensão da Tradição é diferente de combater quem nega "a" exposição da Verdade. 

O Édito de Tolerância, promulgado por Constantino em 313, trouxe a paz aos cristãos do Império. No entanto, essa paz deu lugar à controvérsia interna. A Igreja católica, no sentido de uma igreja "universal", começava a ser uma instituição organizada, com seu próprio cânon de Escrituras e um corpus doutrinário oficial. As disputas religiosas centravam-se então na formulação dessas doutrinas. Os embates, que acabaram por se transformar em heresias, eram diferentes das divergências dos séculos anteriores. 

As heresias normalmente surgem quando se levantam questões que desafiam a lógica humana. As heresias primitivas surgiram em torno do perene problema do Bem e do Mal - como compreendê-lo e como interpretar o ensinamento cristão para explicá-lo. As heresias do século IV surgiram de outro problema que parecia impossível de responder - o significado da Trindade e da Natureza de Cristo. 

No século IV, o Império Romano do Oriente era o principal centro de discussão teológica. Os problemas religiosos permeavam todo o cotidiano, e os gregos, assim que adotaram o cristianismo, trouxeram consigo o amor pela disputa e pela definição lógica das coisas. 

Para alguns, as tentativas para explicar a divindade de Cristo estavam levando ao perigo de esquecer a sua humanidade. Esse receio levou Ário (256-336), um sacerdote de Alexandria, no começo do século IV, a protestar contra o que considerava ser sabelianismo de seu bispo, Alexandre. Uma das metas de Ário era estabelecer a unidade e a simplicidade de Deus. Como espírito puro, o Pai não podia manter contato direito com o mundo material, razão pela qual existia a necessidade de um intermediário. E este era o Filho, um Ser criado, apesar de formado antes do começo dos tempos. Cristo era divino apenas por causa da participação na divindade do Pai, que era transcendente a tudo e estava acima de todas as coisas. 

Ao negar completamente a divindade de Cristo, Ário incluiu uma negação da divindade do Espírito Santo. Outros foram ainda mais longe, afirmando que o Espírito Santo era um ministro, tal como os anjos (cf. a heresia macedônica, fundada por Macedônio). 

O bispo de Alexandria pediu a excomunhão de Ário e anatematização de todos os seus textos. Ário reuniu apoiadores e, desta forma, surgiram grupos rivais. O grande movimento de ruptura conhecido como heresia ariana acabaria por dividir a Igreja cristã, e só desapareceu por completo no século VIII. 

Ao contrário do que muitos pensam, foi o arianismo, e não o cristianismo trinitário, que esteve mais suscetível às influências da cultura politeísta (pagã). Como destacou a minha coorientadora do mestrado, em artigo publicado em 2013,   

"As diferentes versões do cristianismo no séc. IV, nomeadamente as questões trinitárias e a questão cristológica, que animaram a especulação teológica destes séculos IV e V, estiveram também contaminadas por um contexto filosófico e religioso pagão, que é necessário ser transferido para o cristianismo. Assim, a versão arianista do cristianismo esteve mais próxima deste monoteísmo religioso pagão do que o próprio cristianismo, na sua concepção trinitária, adquiriu." 

DIAS, Paula Barata. Cristianismo e responsabilidade cristã na queda de Roma. In: BRANDÃO, José Luís et. al. A queda de Roma e o alvorecer da Europa. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, abril de 2013, p. 48, nota 6. Destaques acrescentados.

Deixando de lado as questões teológicas, há que se considerar sumariamente o impacto político dessa controvérsia. O imperador Constantino, alarmado diante dessa crescente desunião em seu império, convocou o primeiro concílio (ecumênico) mundial, o de Niceia (325). Ao término desse concílio, a fórmula do Credo usada na preparação dos catecúmenos para o batismo em Cesareia foi aceita como base para o acordo, e a palavra homoousios (de uma única substância) passou a ser utilizado para descrever o Ser de Cristo. Assim, confirmava-se que Cristo possuía a mesma natureza do Pai. Além disso, o credo de Niceia estabeleceu, de uma vez por todas, que as três pessoas da Trindade eram iguais em majestade e era um único Deus. 

Ário foi excomungado e mandado para o exílio. Muitos, porém, que se opunham ao arianismo, desagradaram-se com a adoção da palavra homoousios, que não consta em nenhuma parte da Bíblia. Embora o ocidente latino tenha aceitado pacificamente a definição de Niceia, o oriente grego dividiu-se em muitas escolas de pensamento, sendo afligido por ameaças de sabelianismo. 

As disputas doutrinárias e pessoais se multiplicaram, tendo em Atanásio, o bispo de Alexandria, o maior oponente do arianismo. Para ele, o significado da revelação cristã dependia de Cristo ser totalmente humano totalmente Divino. 

Os sucessores do imperador Constantino foram, em sua maioria, arianos ou semi-arianos - adotavam a fórmula de que o "Filho era igual ao Pai", "de substância parecida, mas não da mesma substância" (homoiousius). Entretanto, em 381, o imperador Teodósio convocou o Concílio Ecumênico de Constantinopla, que transformou a doutrina de Niceia em definição de ortodoxia católica, e a Igreja católica (universal) dos cristãos foi declarada como Trinitária. Esse cristianismo "trinitário ortodoxo" foi estabelecido por Teodósio como a única religião oficial do Império Romano. 

Bibliografia consultada: O'GRADY, Joan. Heresia - o jogo de poder das seitas cristãs nos primeiros séculos depois de Cristo. Tradução de José Antonio Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1994, p. 99-112.

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