“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Origens da Mishná e do Talmude

terça-feira, 31 de agosto de 2021

 

Depois da destruição do Primeiro Templo pelos babilônios, da profanação do Segundo Templo pelos gregos e da destruição da comunidade política judaica pelos romanos, os judeus já haviam se transformado em "mestres da sobrevivência". Cada catástrofe exigia uma reação diferente. No primeiro caso, a reação consistiu em resgatar uma tradição espiritual poderosamente eficaz; no segundo, os judeus reagiram com um misto de rebelião e conformismo; e na terceira grande catástrofe reagiram, em parte, fingindo-se de mortos.

Nesse sentido, Yohanan ben Zakai escapou da destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. e solicitou ao imperador Vespasiano que lhe autorizasse fundar uma casa de estudos em Jâmnia, ao sul de Jafa. O destacado jurisconsulto judeu admitiu que o poder político dos judeus estava acabado, e por isso se contentou em pedir "apenas" uma sobrevida espiritual. Sem suspeitar que tal pedido viria a assegurar a continuidade do judaísmo, o imperador atendeu ao desejo do rabino.

Mais uma vez, a formação de um texto sagrado foi a chave da sobrevivência. A Mishná, escrita em hebraico, originou-se na Palestina. Nos três séculos seguintes, foi seguida pela Guemará, composta em aramaico em duas versões: uma na Galileia e a outra, mais importante, na Babilônia. A Guemará, também chamada de Talmude, constitui, junto com a Mishná, o mais importante documento escrito dos judeus depois da Bíblia.

A estrutura do Talmude se caracteriza pelos debates entre os doutores da lei de diferentes séculos. As autoridades subsequentes estabeleceram a opinião vinculante; mesmo assim, via de regra, a opinião minoritária também é transmitida no Talmude. Consequentemente, formou-se uma técnica judaica de aprendizado baseada no diálogo e na discordância. Esse estilo de pedagogia se difundiu para vários continentes ao longo dos séculos.

Adaptado de BRENNER, Michael. Breve História dos Judeus. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013, p. 51-52.

«Mitologia Grega», de Pierre Grimal

domingo, 29 de agosto de 2021

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Cidades Imaginárias

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

 

No Renascimento, as três Eutopias famosas e declaradas são as de Thomas More (Utopia), Tommaso Campanella (A Cidade do Sol) e Francis Bacon (A Nova Atlântida). Um espaço de cerca de 100 anos separa o pioneiro dos outros dois, dos quais Campanella precisa de uma palavra de identificação. Foi um poeta cujos sonetos foram suficientemente bons para serem traduzidos por John Addington Symonds e por ele publicados juntamente com os de Miguel Ângelo. Campanella foi também um dos novos cientistas. Escreveu uma defesa de Galileu e um tratado de fisiologia e psicologia combinadas. Esta obra deixou vestígios na literatura americana: Poe cita-o em "A Carta Roubada", embora não o tenha lido: a referência é plagiada do Ensaio sobre o Sublime e o Belo de Burke, para onde presumivelmente veio diretamente da fonte.

A Utopia, de More, é, num sentido pleno, um livro do Renascimento. Rapidamente apareceram quatro edições em diferentes cidades. Sua tese é simples e direta: por toda parte "uma certa conspiração dos ricos" trabalha contra os pobres e faz com que seja absurdo chamar ao estado uma res publica.

Desta acusação segue-se que uma sociedade sã deve basear-se na propriedade comum dos bens. O comunismo é também a base da Cidade do Sol de Campanella, que se situa abaixo do Equador, em África. Bacon, decidido a tornar a sua "Ilha de Bensalem" um vasto instituto de pesquisa, não diz nada sobre a propriedade, mas infere-se da paz e tranquilidade gerais "daquela terra feliz" que ali não existe pobreza nem luta de classes.

Por inferência, todas as utopias nos contam o que é considerado bom nas nações atuais. As três Eutopias do século XVI são comunidades intensamente religiosas, governadas eticamente pela revelação de Cristo, quer obtida de maneira milagrosa, quer imitada por inspiração local. Com More, Campanella é tolerante para com as outras religiões; os seus profetas parecem pregar em grande parte o mesmo credo e são os apóstolos cristãos que, pelo exemplo, justificam o comunismo, tanto em Campanella como em More. Ao mesmo tempo, Campanella não acredita que o mundo foi criado do nada ou que seja eterno: deste modo se revela, aqui e ali, o cientista.

Qual seria o objetivo principal de cada um dos eutopistas? More quer a justiça através da igualdade democrática; Bacon quer o progresso através da investigação científica; Campanella quer a paz permanente, saúde e abundância através do pensamento racional, do amor fraterno e do eugenismo. Todos os três concordam que todos devem trabalhar. Quando isso acontecer, Campanella calcula que quatro horas por dia serão suficientes para criar prosperidade para todos, deixando amplo tempo livre para (segundo a sua sugestão) assistir a preleções.

Os três eutopistas também concordam que a guerra é detestável, salvo em legítima defesa ou - num dos casos - quando é travada para libertar um povo oprimido. Campanella - o único que tem vistas largas a respeito das mulheres - admite mesmo o recrutamento feminino. Segundo ele, o comércio, sendo uma das causas da guerra, deve ser limitado às necessidades absolutas. O ideal é a autossuficiência total, o que significa ausência de dinheiro.

As leis eutópicas são invariavelmente escassas, claras e afixadas para que todos as conheçam. Não há advogados; cada indivíduo defende a sua própria causa. Ao tratarem a questão do crime, os três manifestam grande indulgência. A pena de morte só se aplicaria a alguns poucos casos. Contudo, os prisioneiros de guerra são transformados automaticamente em escravos. Seus filhos, porém, são homens livres.

Os três eutopistas se deleitam a contar-nos quão saudáveis, bem parecidos, generosos e inteiramente razoáveis são os seus povos. Eles, por exemplo, trabalham energicamente e com fé, uma vez que descobriram que, se relaxam no trabalho, verão reduzidas as reservas comuns de bens e todos terão menos. A experiência do Socialismo Real, no século XX, mostrou que esse raciocínio complexo nem sempre tem lugar. 

Adaptado de BARZUN, Jacques. Da Alvorada à Decadência - 500 anos de vida cultural no Ocidente (de 1500 à actualidade). Tradução de António Pires Cabral e Rui Pires Cabral. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 130-135.

Mapa-Múndi segundo Estrabão

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

 

Europa x EUA

terça-feira, 24 de agosto de 2021

É difícil não notar o ódio que se acumulou contra as administrações americanas, pela sua própria afirmação de uma postura independente. Isso certamente tem sido verdade para os temas abertamente nacionalistas do governo Trump. No entanto, em muitos aspectos, isso não é algo novo. Pelo menos desde o fim da Guerra Fria, os europeus têm criticado as administrações americanas por sua "recusa para se juntar" aos acordos internacionais que ganharam o favor da "comunidade internacional", desde o Protocolo de Kyoto até o Tribunal Penal Internacional. Eles deploraram os EUA por sua disposição de resolver sozinhos problemas urgentes de segurança, como no caso da Segunda Guerra do Golfo, que foi conduzida sem um mandato das Nações Unidas. De fato, os europeus acham perturbador que os americanos nem sempre vejam seus próprios militares como disponíveis para servir "à comunidade internacional", e que os americanos estejam dispostos a rejeitar as Nações Unidas como a "autoridade suprema de tomada de decisões" do mundo. Em outras palavras, além de se sentir incomodada pelo conteúdo desta ou daquela política americana, a liderança europeia tem consistentemente considerado perturbador que os EUA se vejam a si mesmos como tendo o direito de agir unilateralmente, de acordo com seu próprio julgamento, a serviço de seu próprio povo, valores e interesses. Seu problema é, em outras palavras, que os EUA agem como uma nação independente.

HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 212.

Mapa-Múndi segundo Heródoto

domingo, 22 de agosto de 2021

 

O Império Europeu

terça-feira, 17 de agosto de 2021

"Uma vez que a decisão sobre as ações que podem ser melhor alcançadas pelo governo federal europeu está nas mãos dos agentes desse próprio governo, não há barreiras para a redução constante da autoridade dos Estados nacionais membros que não seja o autocontrole desses mesmos agentes. Esta restrição não tem sido iminente, no entanto, e a burocracia da UE, apoiada pelos tribunais federais europeus, tem constantemente estendido seus poderes sobre os países membros em áreas como política econômica, política trabalhista e de emprego, saúde pública, comunicações, educação, transporte, meio ambiente e planejamento urbano. O princípio europeu de subsidiaridade não é, portanto, nada além de um eufemismo para o império: as nações subsidiárias na Europa só são independentes na medida em que o governo europeu determina o quanto e o como elas serão independentes."

HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 157.

Hino dos Pitagóricos ao Sol

domingo, 15 de agosto de 2021


 Hino dos pitagóricos para o Sol Nascente, 1869, óleo sobre tela de Fyodor A. Bronnikov (1827-1902).

O Estado Nacional e a Guerra

domingo, 8 de agosto de 2021

Sob uma ordem política anárquica, o desejo de autodeterminação coletiva é manifestado por meio da independência de cada clã e tribo em face de todas as demais. Em tais circunstâncias, a lealdade do indivíduo para com o clã ou tribo exige que ele vá para a guerra por causa dessas coletividades, seja em busca de seus interesses ou para obter justiça tendem a ser inalcançáveis sem a constante ameaça de violência, e todas as vidas estão sujeitas a isso.

Quando a lealdade do indivíduo é revertida para o Estado nacional, o foco de seu desejo de liberdade coletiva e autodeterminação se desloca para um nível acima. Isso não significa que ele renuncie à lealdade para com seu clã ou tribo. Mas onde a unificação das tribos sob um Estado nacional for bem-sucedida, o anseio pela liberdade e autodeterminação do clã ou tribo será contido por um intenso desejo de alcançar a integridade interna da nação. O desejo pela integridade interna da nação acaba com a guerra enquanto instrumento para perseguir os interesses do clã ou tribo, de modo que ela é retirada desse âmbito e passa a defender exclusivamente a ordem doméstica e a paz em ampla esfera nacional. Da mesma forma, a administração da justiça, que era assunto a ser resolvido, quando necessário, pela violência entre clãs e tribos, é realocada dentro de um sistema de leis, policiamento e tribunais, que respondem ao governo nacional, portanto são livres das influências de uma determinada família, clã ou afiliação tribal.

Desta forma, o Estado nacional suprime a guerra como meio de resolver conflitos domésticos, banindo-a para a periferia da experiência humana. Certamente, os servidores do Estado no governo e soldados continuam a dedicar-se às lutas entre os Estados nacionais e suas guerras. Mas agora a violência colide com a vida do indivíduo muito mais raramente, e quase sempre a uma longa distância da sua casa, onde sua família pode viver tranquilamente, mesmo quando a guerra ocorre em outro lugar. A criação dessa esfera de paz, na qual a família e a vida econômica pode se desenvolver amplamente protegida da violência, é a primeira inovação do Estado nacional, sobre a qual muitas outras inovações são construídas.

HAZONY, Yoram. A Virtude do Nacionalismo. Tradução de Evandro Fernandes de Pontes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2019, p. 119-120.

O Pai Perdoa

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

 

W. Livingston Larned

Escute, filho: enquanto falo isto, você está deitado, dormindo, uma mãozinha enfiada debaixo do seu rosto, os cachinhos louros molhados de suor grudados na fronte. Entrei sozinho e sorrateiramente no seu quarto. Há poucos minutos, enquanto eu estava sentado lendo meu jornal na biblioteca, fui assaltado por uma onda sufocante de remorso. E, sentindo-me culpado, vim para ficar ao lado de sua cama.

Andei pensando em algumas coisas, filho: tenho sido intransigente com você. Na hora em que se trocava para ir à escola, ralhei com você por não enxugar direito o rosto com a toalha. Chamei-lhe a atenção por não ter limpado os sapatos. Gritei furioso com você por ter atirado alguns de seus pertences no chão.

Durante o café da manhã, também impliquei com algumas coisas. Você derramou o café fora da xícara. Não mastigou a comida. Pôs o cotovelo sobre a mesa. Passou manteiga demais no pão. E quando começou a brincar e eu estava saindo para pegar o trem, você se virou, abanou a mão e disse: "Tchau, papai!" e, franzindo o cenho, em resposta, lhe disse: "Endireite esses ombros!"

De tardezinha, tudo recomeçou. Voltei e, quando cheguei perto de casa, vi-o ajoelhado, jogando bolinha de gude. Suas meias estavam rasgadas. Humilhei-o diante de seus amiguinhos, fazendo-o entrar na minha frente. As meias são caras - se você as comprasse tomaria mais cuidado com elas! Imagine isso, filho, dito por um pai!

Mais tarde, quando eu lia na biblioteca, lembra-se de como me procurou, timidamente, uma espécie de mágoa impressa nos seus olhos? Quando afastei meu olhar do jornal, irritado com a interrupção, você parou à porta: "O que é que você quer?", perguntei implacável. Você não disse nada, mas saiu correndo num ímpeto na minha direção, passou os braços em torno do meu pescoço e me beijou; seus braços foram se apertando com uma afeição pura que Deus fazia crescer em seu coração e que nenhuma indiferença conseguiria extirpar. A seguir, retirou-se, subindo correndo os degraus da escada.

Bem, meu filho, não passou muito tempo e meus dedos se afrouxaram, o jornal escorregou por entre eles, e um medo terrível e nauseante tomou conta de mim. O que o hábito estava fazendo de mim? O hábito de ficar achando erros, de fazer reprimendas - era dessa maneira que o vinha recompensando por ser uma criança. Não que não o amasse, o fato é que eu esperava demais da juventude. Eu o avaliava pelos padrões da minha própria vida.

E havia tanto de bom, de belo e verdadeiro no seu caráter. Seu coraçãozinho era tão grande quanto o sol que subia por detrás das colinas. E isto eu percebi pelo seu gesto espontâneo de correr e dar-me um beijo de boa-noite. Nada mais me importa nesta noite, filho. Entrei na penumbra do seu quarto e ajoelhei-me ao lado de sua cama, envergonhado! É uma expiação inútil; sei que, se você estivesse acordado, não compreenderia essas coisas. Mas amanhã eu serei um pai de verdade! Serei seu amigo, sofrerei quando você sofrer, rirei quando você rir. Morderei minha língua quando palavras impacientes quiserem sair pela minha boca. Eu irei dizer e repetir, como se fosse um ritual: "Ele é apenas um menino - um menininho!"

Receio que o tenha visto até aqui como um homem feito. Mas, olhando-o agora, filho, encolhido e amedrontado no seu ninho, certifico-me de que é um bebê. Ainda ontem esteve nos braços de sua mãe, a cabeça deitada no ombro dela. Exigi muito de você, exigi muito.

Citado em CARNEGIE, Dale. Como fazer amigos e influenciar pessoas. Tradução de Fernando Tude de Souza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2016, p. 59-61.