“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Cidades Imaginárias

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

 

No Renascimento, as três Eutopias famosas e declaradas são as de Thomas More (Utopia), Tommaso Campanella (A Cidade do Sol) e Francis Bacon (A Nova Atlântida). Um espaço de cerca de 100 anos separa o pioneiro dos outros dois, dos quais Campanella precisa de uma palavra de identificação. Foi um poeta cujos sonetos foram suficientemente bons para serem traduzidos por John Addington Symonds e por ele publicados juntamente com os de Miguel Ângelo. Campanella foi também um dos novos cientistas. Escreveu uma defesa de Galileu e um tratado de fisiologia e psicologia combinadas. Esta obra deixou vestígios na literatura americana: Poe cita-o em "A Carta Roubada", embora não o tenha lido: a referência é plagiada do Ensaio sobre o Sublime e o Belo de Burke, para onde presumivelmente veio diretamente da fonte.

A Utopia, de More, é, num sentido pleno, um livro do Renascimento. Rapidamente apareceram quatro edições em diferentes cidades. Sua tese é simples e direta: por toda parte "uma certa conspiração dos ricos" trabalha contra os pobres e faz com que seja absurdo chamar ao estado uma res publica.

Desta acusação segue-se que uma sociedade sã deve basear-se na propriedade comum dos bens. O comunismo é também a base da Cidade do Sol de Campanella, que se situa abaixo do Equador, em África. Bacon, decidido a tornar a sua "Ilha de Bensalem" um vasto instituto de pesquisa, não diz nada sobre a propriedade, mas infere-se da paz e tranquilidade gerais "daquela terra feliz" que ali não existe pobreza nem luta de classes.

Por inferência, todas as utopias nos contam o que é considerado bom nas nações atuais. As três Eutopias do século XVI são comunidades intensamente religiosas, governadas eticamente pela revelação de Cristo, quer obtida de maneira milagrosa, quer imitada por inspiração local. Com More, Campanella é tolerante para com as outras religiões; os seus profetas parecem pregar em grande parte o mesmo credo e são os apóstolos cristãos que, pelo exemplo, justificam o comunismo, tanto em Campanella como em More. Ao mesmo tempo, Campanella não acredita que o mundo foi criado do nada ou que seja eterno: deste modo se revela, aqui e ali, o cientista.

Qual seria o objetivo principal de cada um dos eutopistas? More quer a justiça através da igualdade democrática; Bacon quer o progresso através da investigação científica; Campanella quer a paz permanente, saúde e abundância através do pensamento racional, do amor fraterno e do eugenismo. Todos os três concordam que todos devem trabalhar. Quando isso acontecer, Campanella calcula que quatro horas por dia serão suficientes para criar prosperidade para todos, deixando amplo tempo livre para (segundo a sua sugestão) assistir a preleções.

Os três eutopistas também concordam que a guerra é detestável, salvo em legítima defesa ou - num dos casos - quando é travada para libertar um povo oprimido. Campanella - o único que tem vistas largas a respeito das mulheres - admite mesmo o recrutamento feminino. Segundo ele, o comércio, sendo uma das causas da guerra, deve ser limitado às necessidades absolutas. O ideal é a autossuficiência total, o que significa ausência de dinheiro.

As leis eutópicas são invariavelmente escassas, claras e afixadas para que todos as conheçam. Não há advogados; cada indivíduo defende a sua própria causa. Ao tratarem a questão do crime, os três manifestam grande indulgência. A pena de morte só se aplicaria a alguns poucos casos. Contudo, os prisioneiros de guerra são transformados automaticamente em escravos. Seus filhos, porém, são homens livres.

Os três eutopistas se deleitam a contar-nos quão saudáveis, bem parecidos, generosos e inteiramente razoáveis são os seus povos. Eles, por exemplo, trabalham energicamente e com fé, uma vez que descobriram que, se relaxam no trabalho, verão reduzidas as reservas comuns de bens e todos terão menos. A experiência do Socialismo Real, no século XX, mostrou que esse raciocínio complexo nem sempre tem lugar. 

Adaptado de BARZUN, Jacques. Da Alvorada à Decadência - 500 anos de vida cultural no Ocidente (de 1500 à actualidade). Tradução de António Pires Cabral e Rui Pires Cabral. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 130-135.

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