“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Um "Selvagem" nas Cortes Europeias

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Arrigo peloso, Pietro matto, Amon nano, 1598-9, óleo sobre tela de Agostino Carracci, 97 X 130 cm. Nápoles, Museo di Capodimonte, n. inv. Q369.

Desde os tempos gregos e romanos, o continente africano foi identificado como a fronteira entre as sociedades policiadas e as bárbaras, exposto a ermos e a regiões inóspitas. As condições supostamente extremas de clima e de solo sustentavam a ideia europeia de monstros e selvagens usada para refletir sobre as fronteiras entre a cultura e a natureza, o humano e o animal, as sociedades controladas e a selvageria. O caso de um suposto "homem selvagem" também surge na sociedade cortesã europeia do século XVI.

Trata-se de um guanche, um nativo das ilhas Canárias, certamente não negro, mas ainda assim ligado à África segundo a percepção europeia. Pedro Gonzalez, nascido por volta de 1537 em Tenerife, nas ilhas Canárias, afirmava ser de ascendência principesca. Sofria de um distúrbio genético particular, hypertrichosis universalis congenita, que o destacou ao longo de toda a vida: tinha pelos que lhe cresciam por todo o rosto, orelhas, costas, peito, braços, mãos, dedos, coxas e pernas. Só a palma das mãos, a planta dos pés e os lábios não eram cobertos de pelos. A aparência de Gonzalez correspondia à imagem mítica do homem selvagem (homo silvestris ou silvaticus, a origem etimológica de selvagem) criada na Antiguidade Clássica para servir de apoio à reflexão sobre a diferença entre cultura e natureza, seres humanos que viviam em comunidade e humanos que viviam nas regiões selvagens. A imagem do selvagem nu, de corpo coberto de pelos compridos, o espírito entregue aos instintos e sentimentos mais básicos, uma figura próxima do estereótipo medieval do gigante, fora renovada no século XV, por coincidência, quando da conquista das ilhas Canárias. A recuperação do tema foi claramente expressa pelas enormes esculturas colocadas na entrada da faculdade de San Gregorio, em Valladolid.

A aparência de Gonzalez suscitou uma enorme curiosidade na corte real francesa, quando ele foi oferecido a Henrique II, com dez anos de idade. "Pierre sauvage", como era conhecido à época, foi educado. Aprendeu latim e saiu-se tão bem que alcançou uma boa posição na corte como escanção (perito em vinho). Após a morte infeliz de Henrique II, Gonzalez provavelmente passou para a casa de Catarina de Médici. Por volta de 1573, casou-se com uma francesa, Catarina, com quem teve cinco filhos (os quais, talvez com a exceção do último, herdaram o seu problema genético).

Em 1589, com a morte de Catarina de Médici, Gonzalez seguiu para Parma, onde Alexandre Farnese passou a ser o seu novo patrono. Gonzalez foi registrado como "Don Pietro Gonzales Selvaggio" na corte de Parma. Isso significa que o título aristocrático espanhol "don" ficaria associado à vida de Gonzalez junto com a palavra "selvagem". Em 1592, nasceu o seu sexto filho (também ele peludo). Mais uma vez, Gonzalez foi exibido como caso curioso e valioso, resgatado de uma condição quase animalesca.

A família Gonzalez tornou-se uma das mais representadas na Europa de finais do século XVI. No entanto, o extraordinário quadro de Agostino Carracci, executado em 1598-9 e intitulado Arrigo peloso, Pietro matto, Amon nano (Henrique peludo, Pedro louco, Amon anão) no inventário de 1644 explicava a função do "selvagem" peludo na corte: Arrigo era representado com um tamarco (um sobretudo de pele de cabra usado nas ilhas Canárias), junto com um anão, um bobo, dois macacos, dois cães e um papagaio. Resumidamente, surgia ao lado de seres humanos identificados (e troçados) pelas suas "deformidades" físicas e mentais - todos usados como acessórios de luxo na corte e exibidos como fenômenos bizarros do mundo natural.  

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 136-139.

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