“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

"Africanização": São Maurício e outros

sábado, 28 de dezembro de 2019

Estátua de são Maurício, catedral de Magdeburgo, Alemanha, séc. XIII.

As ideias ecumênicas tiveram uma influência significativa na Europa Ocidental, espalhando-se juntamente com a difusão dos ritos e dos símbolos do Império Bizantino e sendo absorvidas em diferentes graus pelas cortes reais e pelo Sacro Império Romano. Os projetos imperiais na Sicília realçavam diferentes tipos humanos, incluindo os africanos negros, como símbolos de reivindicações universais, criando o cenário para a imagética política posta em circulação pelo imperador Frederico II. Entretanto, a imagem da rainha de Sabá, representada como símbolo da nobreza que desejava converter-se ao cristianismo, começou a escurecer, acabando por se tornar negra. A placa de esmalte de Nicolau de Verdun, Salomão e a rainha de Sabá, no Capítulo de Klosterneuburg (1181), é um dos primeiros exemplos, mas a extraordinária ilustração no manuscrito iluminado por Conrado Kyeser antes de 1405, no qual se mostra uma rainha negra com cabelo louro, suscita a questão do contraste simbólico de cores. No longo prazo sobressai a ambiguidade visual, já que a negra sensual e tentadora está justaposta ao que antes fora um símbolo de virtude religiosa. 

Também no século XIII, os três reis magos começaram a ser associados às três partes do mundo, embora os seus nomes, que não foram registrados nos evangelhos, viessem a ser permutáveis, bem como as supostas regiões de origem: Melchior, que oferecia ouro, seria representado por um idoso europeu de barba branca comprida; Gaspar, que levava incenso, era representado como um asiático jovem de túnica e, mais tarde, de turbante; e Baltazar, com a sua mirra, era representado com pele trigueira, tornando-se negro no século XIII. A pintura em Würzburg, na capela de Santa Maria (1514), é um dos melhores exemplos dessa tradição, bem representada pelo retábulo de Polling (1444).

A "africanização" de um dos três reis magos acompanhou a "africanização" de são Maurício, um mártir da Legião de Tebas que foi condenado à morte no Império Romano entre 386 e 392 por se recusar a renegar o cristianismo. Logo o santo passou a ser objeto de um culto que justificou a fundação da abadia de Agaune (1515). O cavaleiro-santo tornou-se extremamente importante durante a instabilidade militar da Idade Média como alternativa ao são Jorge "inglês" ou ao são Tiago "hispânico": o seu nome foi atribuído a 62 comunas no território da atual França, tornando-se indissociável do exército franco. Otto I da Saxônia escolheu-o como santo padroeiro do Sacro Império Romano (a Federação Suíça escolheu-o para a mesma função); a expansão oriental alemã contra os eslavos e os húngaros foi realizada sob o seu patrocínio.

Originalmente um santo branco, Maurício só começou a se tornar negro no século XIII (ver acima, sua estátua na catedral de Magdeburgo). Ele foi representado como negro sobretudo na Alemanha e na Europa Central e Setentrional. Na França, em Flandres e na Itália (onde, ao norte, foi criada uma ordem militar em seu nome), Maurício permaneceu branco. O apoio do imperador foi fundamental para a aquisição e a oferta das relíquias do santo aos principais centros do seu culto. Muitas pinturas, esculturas, textos iluminados e, mais tarde, gravuras do santo foram encomendadas pelas elites imperial, religiosa e locais. 

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 74-75.

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