“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Concubinato e Matrimônio na Colônia

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Casamento de negros escravos em uma casa rica, pintura de Jean-Baptiste Debret (1768-1848). 

1. Sequiosos de prazer sexual, os colonos da América portuguesa resistiram ao casamento desde o século XVI. Além de preferirem amasiar-se, segundo a historiografia tradicional, a maioria da população tinha dificuldades em atender às exigências burocráticas e financeiras do matrimônio eclesiástico, além de enfrentar a instabilidade social e a mobilidade espacial. No caso dos escravos, havia ainda a tradicional oposição dos senhores ao seu matrimônio.    

2. O casamento era relativamente escasso. A união oficial praticamente se restringiu à elite branca ligada à terra, ao comércio ou aos cargos públicos, sendo, portanto, uma opção das "classes dominantes", motivado por interesses patrimoniais ou de status, restando o concubinato como alternativa sexual e conjugal para os demais estratos da colônia.   

3. Na perspectiva eclesiástica, o concubinato aludia a uma relação intermediária entre a simples fornicação e o adultério. Ele era antes definido pela durabilidade e publicidade do que pela coabitação. Enquanto, na Europa, o concubinato tenha entrado em franco declínio desde o século XVII, na colônia ele cresceu desde o século XVI.   

4. O mundo dos concubinatários, vemo-lo na correspondência jesuítica do século XVI, entre os amores de índias e colonos, que tanto inquietaram os jesuítas; vemo-lo, um pouco, entre os personagens da primeria visitação inquisitorial ao Nordeste; e, ainda, nos tratados morais dos séculos XVII e XVIII. Mas era sobretudo na documentação das visitas diocesanas que o concubinato aparece de maneira mais completa.    

5. Casar-se com índias a quem viam como "solteiras", prostitutas ou amásias, eis uma ideia jamais cogitada pela maioria dos portugueses chegados ao Brasil no século XVI. Às mancebas índias dos primeiros lusitanos somar-se-iam as negras, mulatas, mamelucas e mesmo as brancas pobres nos séculos XVII e XVIII. Muitos solteiros viviam amancebados anos a fio, preferindo a morte à vergonha de esposar mulheres infamadas pelo sangue, pela cor ou pela condição social.   

6. Apesar disso, muitos amancebamentos eram autênticas paixões e casos de amor entre senhores e escravas, como no lendário romance entre o contratador João Fernandes e a escrava Xica da Silva, no distrito Diamantino do século XVIII. Nesse mesmo século, na Bahia, um rico proprietário de escravos amava tanto a sua escrava-concubina que chegou a conceder-lhe em testamento a liberdade, a propriedade da casa e três escravos, "com a condição de que ela permanecesse solteira".       

7. A tendência geral era, porém, a de confundir exploração social e sexual, unindo-se os senhores, casados ou solteiros, às negras e mulatas da casa-grande ou da senzala, a despeito do tour de force jesuítico inspirado pelo Concílio de Trento. Assim como o papa Alexandre VI tolerou a criada-concubina que fosse indispensável ao serviço do seu amo, também as Constituições de 1707 curvaram-se aos hábitos coloniais, reconhecendo tacitamente o direito dos senhores de se amancebarem com suas escravas.     

8. Prostituição de escravas à parte (às vezes com o objetivo de que elas engravidassem), o concubinato de brancos com negras ou mulatas era sobretudo uma faceta da exploração escravista, extensiva à própria miséria. Senhores, mercadores e burocratas não só abusavam sexualmente das cativas, como de mulheres pobres ou desamparadas, lhes serviam de amantes. Até mesmo autoridades, juízes e governadores foram pródigos em conceder favores ou dinheiro a mulheres humildes, "tirando-as da miséria", protegendo-as da Justiça, convidando-as para saraus e comédias palacianas em troca de prazeres sexuais.  

9. Aqueles que ousassem casar com mulheres de cor ou cristãs-novas ficavam impedidos de concorrer aos quadros burocráticos da monarquia; ingressar nas Ordens Militares de Cristo, Aviz e Santiago; integrar o clero; obter vereanças nas câmaras municipais; associar-se a certas irmandades, misericórdias, instituições de caridade e outras - além de igualmente bloquearem toda a sua descendência. Assim, foram raros os casamentos mistos no Brasil colonial.  

10. Entre os escravos de origem africana, o reduzido número de casamentos decorria, antes de tudo, das imposições do tráfico, cujo objetivo era abastecer de braços fortes a lavoura tropical e as minas, e por isso mesmo composto majoritariamente de homens. Impossibilitados de se casar por falta de mulheres em igual condição social, os escravos ainda o seriam pela má vontade dos senhores. Até os franciscanos, em 1745, proibiram matrimônios que envolvessem escravos dos conventos. Assim, o concubinato nas senzalas era tolerado e incentivado pelos senhores.  

11. Segundo Antonil, os próprios senhores amiúde promoviam os amancebamentos e determinavam os parceiros, formando e desfazendo uniões a seu bel-prazer, conforme as suas próprias conveniências. Mesmo entre os escravos legalmente casados, costumavam interferir e separar casais por meio da venda ou qualquer expediente. As relações amorosas entre os escravos, portanto, foram provavelmente as mais difíceis de firmar, as mais precárias e vulneráveis de quantas houve na colônia.  

12. No século XVIII, a Coroa portuguesa empenhou-se em aumentar o número de matrimônios e combater os concubinatos no Brasil - temerosa do crescimento dos mestiços e das "desordens" que se lhes atribuía -, chegou mesmo a afirmar que a Igreja agia em sentido contrário, dificultando o casamento com a imposição de taxas onerosas, só acessíveis à elite colonial. 

13. Processos inquisitoriais contra bígamos indicam que, para se casarem na metrópole ou na colônia, numa segunda ou terceira vez, muitos homens e mulheres mudavam de nome, apregoavam-se solteiros, forjavam testemunhas de seu estado, e logo corria o processo. Assim, casar-se no Brasil parecia ser muito fácil, exceto no caso de haver notório impedimento canônico apurado nos pregões. Pouco sabemos sobre o eventual pagamento de taxas matrimoniais, mas quanto ao processo burocrático em si, bastava ao contraente proclamar-se solteiro e apresentar indivíduos que confirmassem seu nome e sua versão, e logo corriam os pregões e celebrava-se o matrimônio.    

14. Para Ronaldo Vainfas, os segmentos pobres deixavam de se casar no Brasil não pela impossibilidade de superar os obstáculos financeiros e burocráticos exigidos pelo matrimônio oficial, nem muito menos por terem escolhido qualquer forma de união oposta ao sacramento católico. Amancebavam-se por falta de opção, por viverem, em sua grande maioria, num mundo instável e precário. Forros, brancos pobres, mestiços, pardos, gente que vivia à cata de alguma oportunidade que lhes amenizasse a miséria, por que haveriam de se casar? 

15. A promiscuidade em que viviam os pobres não raro os levava a concubinatos incestuosos, a relações sexuais e amorosas entre irmãos, ou entre tio e sobrinha. Entre os miseráveis, como nas relações entre senhores e escravas, vários concubinatos, e até casamentos, mal se distinguiam da prostituição e da alcovitagem, solução que muitos encontravam para atenuar a pobreza ou escapar da indigência.   

Bibliografia consultada: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 77-95.

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