“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos O Marginal Medieval

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Russell Crowe como protagonista do filme Robin Hood, de 2010. Herói no imaginário popular, Robin Hood teria sido um fora-da-lei e, portanto, marginal. Ele teria vivido na Inglaterra do rei Ricardo Coração de Leão (séc. XII).

1. Durante o milênio medieval, as estruturas de organização social, os modelos administrativos e as formas de governo amadureceram. Para além disso, o ritmo dessas transformações dependia das zonas de evolução do continente europeu e, a par delas, o fenômeno da marginalização assumiu novas formas. A condição natural do homem era viver no território de origem, vivendo numa comunidade de vizinhos e perto dos túmulos dos pais. No entanto, as sociedades medievais estavam longe da estabilidade espacial e, nesse contexto, surgiu a figura do exilado (também um alvo da exclusão do direito à paz e privação dos direitos naturais do homem). 

2. Embora o viajante pareça concretizar plenamente o ideal do cristão enquanto «viator» na vida terrena, no próprio conceito de viagem está inserido um fator de marginalização ou, pelo menos, o risco de marginalização. O homem que abandona o seu ambiente natural expõe-se aos perigos do caminho, estabelecerá relações com desconhecidos e irá ao encontro das armadilhas da natureza. Por isso, quando se organizava uma viagem, tentava-se garantir a continuidade dos laços sociais e, por isso, partia-se em companhia de parentes, amigos ou servos, procurava-se a companhia de grupos, que viajavam juntos ou organizavam-se caravanas de mercadores.
  
3. Ao longo da Idade Média, a Igreja procurou dar aos peregrinos estruturas organizativas destinadas a garantir a «stabilitas in peregrinatione», ou seja, a fazer das peregrinações um elemento da ordem estável. No extremo oposto, a expulsão da comunidade dos fiéis, a proibição de participar nos sacramentos e a exclusão não só do espaço sagrado da igreja e dos locais de culto, mas também de qualquer rito (foi Gregório IX, no século XIII, quem formalizou a distinção entre «excomunatio minor» e «excomunatio maior», sendo esta o único caso que implicava a exclusão total da comunidade cristã), eram, porém, o início de uma marginalização total. 

4. O édito de Hilperico (574), definia os malfeitores como pessoas más, que vagueiam pelos bosques, responsáveis por más ações, sem residência fixa e sem nada que possa ser confiscado em consequência dos seus delitos. Sob este ponto de vista, a inexistência de bens, que deve ser entendida de uma fornia mais dilatada, como ausência de determinadas fontes de rendimento (e é precisamente nisso que se centra a atenção das leis na baixa Idade Média), tem uma certa importância. Todavia, os outros dois fatores referem-se à falta de estabilidade. Nos capitulares de Carlos Magno, revela-se, muitas vezes, desconfiança e hostilidade em relação aos vagabundos e aos viajantes.

5. Na Idade Média, o conceito de marginalização proveniente de metáforas espaciais está relacionado diretamente com o conceito de espaço, interpretado dicotomicamente como «dentro» e «fora», centro e periferia, e contendo um juízo de valor, já que ao primeiro termo dessa dicotomia se atribui um carácter positivo. Esta imagem de diferenciação social sobrepôs-se à organização social, afastando do «centro», ou seja, da sociedade organizada em comunidades familiares ou de grupo, os marginalizados de todos os gêneros: banidos, malfeitores, contestatários, hereges, dissidentes.  

6. Na documentação histórica, os marginalizados deixam poucos vestígios: não estabelecem relações, não herdam nem são heróis de grandes feitos que possam passar à história. Estão presentes, sobretudo, nos arquivos da repressão e, por isso, a imagem que deles temos é uma imagem reflexa que nos dá só a justiça da sociedade organizada, mas também o seu terror e o seu ódio. Assim, as informações referem-se acima de tudo à própria sociedade e aqueles que são objeto de repressão aparecem em segundo plano. Além disso» referem-se mais às normas jurídicas do que às pessoas. Quando os processos judiciais já se encontravam bastante difundidos e se começava a usar os registos judiciários, muitas das controvérsias eram resolvidas por via extrajudicial, sem a redação de qualquer ata. A partir do século XII, surgem na Europa medieval os arquivos da repressão, que se tornam um elemento universal na Idade Média tardia. Esses arquivos fornecem um quadro geral da delinquência medieval e constituem retratos da vida das pessoas marginalizadas.  

7.  Um registo judiciário do Bedfordshire relata uma rixa sangrenta que teve lugar no dia 28 de Abril de 1272, em Dunton. Tratava-se de uns vagabundos — dois homens e duas mulheres — que tinham aparecido naquela região e que tinham tentado, primeiro, vender a pele de um animal e, depois, obter hospitalidade, mas sem o conseguirem. Entre os dois vagabundos estala um conflito e um deles é morto à facada. Uma das mulheres refugia-se então na igreja, utilizando o direito de asilo e, posteriormente, confessará ao coroner que cometeu muitos furtos e que os seus companheiros também são ladrões. O assassino — que foi condenado à forca— é definido como «vagabundo e pessoa não pertencente a nenhuma decúria (tithing)». Do passado desse grupo não se sabe mais nada. Pode apenas acrescentar-se que provinham de várias zonas da Inglaterra, o que reforça a opinião de que se tratava mesmo de vagabundos. Deslocando-se de uma região para outra, viviam do roubo, pediam esmola, caçavam e trabalhavam ocasionalmente. Os grupos formam-se após um encontro no caminho, depois de uma refeição numa estalagem ou, por vezes, na organização de um roubo. Na maior parte dos casos, o delinquente opera sozinho, mas às vezes há grupos de casais. 

8. As pessoas que figuram nos arquivos criminais são, essencialmente, pessoas vulgares, inseridas no mundo do trabalho organizado, em contextos familiares e de boa vizinhança, mas que a um dado momento, e inesperadamente ou gradualmente, romperam com essas estruturas. Para esses, na maior parte dos casos, a marginalização parece ter, porém, um caráter instável, acidental e muito próximo da normalidade. Num dado momento, e inesperadamente ou gradualmente, romperam com essas estruturas. Em 1416, em Paris, foi processado um clérigo, acusado de roubo e homicídio. Tratava-se de um filho bastardo, que desde muito novo gostava dos jogos de azar e que se tinha alistado num destacamento militar. Trabalhara como criado na corte de uma dama. Por conseguinte, era um clérigo, um soldado, um vagabundo e um ator. De tempos a tempos, praticava um roubo e já tinha estado na cadeia pelo menos quatro vezes. É lícito supor que esse «homem de muitos ofícios» tivesse tido longos períodos de vida regrada, pelo menos no sentido em que ganhava para viver e ter uma situação. Assim sendo, os períodos em que violava a lei eram apenas situações acidentais que, em geral, não definiam um estilo de vida? O que é certo é que a sociedade organizada, que ele exprimia e cujo aparelho jurídico-policial protegia, tratava-o como um vagabundo, um indivíduo não estabilizado, um marginal.  

9. Na Idade Média existe também uma categoria de pessoas que poderiam ser definidas como «delinquentes de profissão», isto é, pessoas cuja vida se baseia no crime e que não exercem qualquer outro tipo de atividade. No entanto, é difícil isolá-las de uma forma precisa. A determinados níveis, desaparecem as fronteiras entre delinquência e trabalho. Trata-se, no entanto, de um trabalho de baixo nível, que não corresponde aos critérios da especialização artesanal e que não está organizado corporativamente. Além disso, embora o fato de se fazer parte de um bando de criminosos possa ser considerado um atestado de delinquência profissional, esse tipo de vida pode manter-se apenas durante um certo tempo.    

10. Na Baixa Idade Média, a guerra deu ensejo a processos de marginalização de grande vulto, pelas possibilidades que fornecia de se viver um tipo de vida diferente do tipo de vida dos camponeses e dos artesãos, primeiro em destacamentos militares e, depois, autonomamente. Entre o serviço militar normal e o banditismo, entre uma companhia do exército e um bando de salteadores, as diferenças não eram grandes. Verifica-se um processo de desclassificação: artesãos e comerciantes, filhos de nobres e assalariados rurais, vagabundos e clérigos encontravam na guerra o gosto pela vida fácil e libertavam-se, provisoriamente, da ação das normas sociais e da divisão provocada pelas funções que desempenhavam na sociedade. Mesmo quando há possibilidade de se reassumir um tipo de vida estável, as experiências anteriores e os laços que se criaram levam, inevitavelmente, a um tipo de vida marginal.     

11. Certas profissões que fugiam ao esquema tripartite dos que "oravam", os que "lutavam" e os que "trabalhavam" (trabalho no campo) poderiam ser marginalizadas. Já no direito romano e no direito consuetudinário germânico se consideravam indignos todos os que subiam ao palco para ganhar dinheiro. Nos estatutos dos artesãos das cidades alemãs, está amplamente presente o conceito de profissão indigna que pesa sobre os descendentes. As «boas origens» exigidas pelos estatutos como uma das condições para se obter os direitos corporativos, implicavam a exclusão não só dos filhos ilegítimos ou de pais escravos, mas também dos descendentes de quem pertencia a determinadas categorias profissionais. A longa lista abrange, antes do mais, as profissões de carrasco, carcereiro, ajudante de carrasco, certos funcionários da polícia urbana, coveiro, magarefe, guarda dos banhos públicos, barbeiro, prostituta, chulo, músico, acrobata, bobo, tecelão de tela, pisoeiro e pastor.

12. Quando se fala de condenação, infâmia e marginalização, não se pode prescindir das questões referentes ao corpo, que determinam os efeitos marginalizantes da doença e a condição social dos doentes. A enfermidade tinha um efeito socialmente degradante, pelo menos na medida em que provocava uma identificação da doença com a miséria. A caridade para com os doentes andava a par com o medo do contágio e a aversão e o desprezo para com os aleijados. Os leprosos fornecem-nos um exemplo clássico desse medo do contágio. Saiba mais sobre a marginalização dos leprosos aqui.  

13. Se o processo de marginalização for entendido como fundamentado na exclusão dos laços sociais ou na sua ruptura espontânea, na perda de lugar no mundo do trabalho ou na distribuição de funções sociais, torna-se difícil considerar os mendigos como marginalizados. Os mendigos eram necessários, na medida em que davam a possibilidade de se dar provas de caridade, estavam organizados e viviam de uma maneira estável, respeitando as normas da convivência social. As violentas crises sociais que provocavam um depauperamento periódico ou estável, produziam também alterações na relação com os mendigos; a modificação da doutrina acerca da pobreza, que se verifica no século XIII, traduz precisamente essa situação que leva à propagação de atitudes repressivas e marginalizantes para com os mendigos.  

14. Certas categorias se distinguiam nitidamente: a diferença de cor ou de língua distinguiam as minorias étnicas e um determinado tipo de atividade podia equivaler aos sintomas externos de uma doença ou de uma deficiência. O vestuário era fator de «distinção» mais frequente. No geral, os vagabundos e os malfeitores não se distinguiam, quanto ao vestuário, de todos os que pertencem às classes sociais mais baixas. Apesar disso, pressupunha-se que as vestes esfarrapadas e o bastão — imagens clássicas das gravuras dos séculos posteriores — definiam a pessoa. A orelha cortada permitia reconhecer um ladrão. No caso dos mendigos, os farrapos e o corpo seminu — meios eficazes para se receber esmola — eram sinais evidentes. Os judeus reconheciam-se pelo vestuário: nas regiões alemãs, o barrete pontiagudo era característico, mas o IV Concílio de Latrão, em 1215, introduziu um outro distintivo que, tendo-se espalhado pelos países cristãos, constituía uma marca de infâmia. As prostitutas, em muitos países, precisavam obedecer rigorosamente às normas referentes à maneira de vestir, mas também era obrigatório usarem marcas de identificação. Quanto aos heréticos, o seu sinal de penitência podia ser uma cruz na frente e nas costas do vestuário e a sentença que os condenava previa, entre outras coisas, que estivessem expostos ao público ostentando as marcas da infâmia como, por exemplo, uma mitra na cabeça, a letra «H», etc.  
  
15. É certo que, entre as várias categorias que compunham o mundo da marginalização na Idade Média, existiam diferenças essenciais e, por vezes, capitais. Verifica-se uma certa gradação na exclusão e na segregação; a decadência não era a mesma coisa para o cavaleiro e para o camponês e a marginalização social nem sempre equivalia a exclusão e segregação. As barreiras raramente eram tão rígidas como no caso dos leprosos. No entanto, todas essas categorias de pessoas se caracterizavam pela sua diferente maneira de viver, por não se sujeitarem a normas e modelos de vida estabelecidos e por se recusarem a trabalhar ou a desempenhar uma função social. Os marginalizados encontravam-se juntos também na aversão, na estranheza, no medo e, por vezes, no ódio que a sociedade lhes demonstrava.   
  
Bibliografia consultada: GEREMEK, Bronislaw. In: O Marginal. LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 233-248.

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