“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#Minorias Leprosos

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Mulher leprosa com um sino (sobre isso, ver o tópico 8, infra). 
Inglaterra, século XIV, British Library.

1. A lepra é uma doença infecciosa causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, o qual é parente da bactéria da tuberculose. Ela se dissemina através do contato pessoal, abrasões e mordidas de insetos. Tem um período de incubação longo, chegando às vezes a anos, e existe uma resistência natural alta a ela. Esta resistência natural pode ser minada por uma dieta pobre, habitação ruim e condições de vida insalubres; daí a incidência da doença na Europa medieval e áreas de países subdesenvolvidos atualmente. Hoje, felizmente, a lepra pode ser curada. Na Idade Média, era incurável.

2. Talvez não exista na história nenhuma doença que tenha causado tanto medo e asco quanto a lepra. O próprio termo "leproso" tornou-se sinônimo de rejeitado. Na Idade Média, esta reação derivava em parte das deformidades físicas, das feridas supurativas e do odor mefítico causados pela doença. Mas derivava mais ainda da convicção de que a lepra era o sinal externo e visível de uma alma corroída pelo pecado e, em particular, pelo pecado sexual.    

3. Para que alguém fosse identificado como leproso, o procedimento normal era a denúncia formal, geralmente por vizinhos, e depois uma investigação. No começo da Idade Média, isto era realizado sob os auspícios das autoridades da Igreja. No entanto, à medida que as cidades e vilas foram crescendo e desenvolveram mecanismos de auto-regulamentação, no período central da Idade Média, o procedimento era frequentemente assumido pelos magistrados locais. No início da Idade Média, não era garantido que um médico participasse do procedimento; com o tempo, no entanto, tornou-se cada vez mais comum que os médicos averiguassem a denúncia.   

4. Como havia grande risco de confinar alguém num hospital de leprosos erroneamente, e os médicos queriam ter certeza de que seu diagnóstico estava correto, Gui de Chauliac presceveu quatro procedimentos alternativos para os investigadores - um deles incluía o confinamento em suas casas se apresentassem os sintomas iniciais. A cautela dos médicos parece ter rendido frutos - dados (arqueológicos, inclusive) sugerem que a maioria dos leprosos nos hospitais era composta genuinamente de pessoas acometidas da lepra.   

5. A lepra não respeitava distinções sociais - podia acometer tanto os de mais alta posição quanto os mais humildes. Os reis Balduíno IV e Magno II, de Jerusalém e da Noruega, respectivamente, o abade Ricardo de St. Albans e os condes Teobaldo VI de Chartres e Raul de Vermandois, morreram todos, segundo se relata, leprosos. É possível, todavia, que alguns deles sofressem de doença venérea ao invés de lepra propriamente dita. A ordem da cavalaria de são Lázaro foi fundada em 1120, na Terra Santa, para abrigar cavaleiros leprosos e para cuidar de outros leprosos.

6. O medo da doença era baseado particularmente em seu contágio. O homem medieval compreendia bem que a transmissão de uma infecção de uma pessoa para outra se dava através do manuseio de objetos tocados pela pessoa doente, por contato sexual ou pela inspiração de hálito infectado. Assim, a segregação para longe dos outros, a proibição de leprosos tirarem água dos poços (pelo medo de que suas mãos infectassem as cordas das cacimbas) e o tampar da boca para evitar a emissão do hálito infecto eram princípios bem estabelecidos.  

7. Na Baixa Idade Média, provavelmente houve um aumento do número de leprosos na sociedade proporcional ao crescimento da população. Mas, com a maior mobilidade social e o crescimento das cidades e vilas, que agiam como pólos de atração para os desenraizados, eles também se tornaram mais visíveis. O crescimento das fundações de caridade para atendê-los pode ser visto como um aspecto do desenvolvimento do individualismo religioso. O Terceiro Concílio Lateranense (1179), presidido pelo papa Alexandre III, assumiu, ao invés de introduzir, o processo de segregação. Ele autorizou a provisão de capelas especiais, capelães e cemitérios específicos para leprosos em seus locais de confinamento e os isentou do pagamento de dízimos sobre seus produtos e animais.  

8. A exigência de roupas distintivas colocou os leprosos na mesma situação dos judeus, prostitutas e hereges regenerados. Em alguns lugares eles deviam vestir-se de branco, em outros deviam usar uma peça de material vermelho em suas vestes. Na França, eles deviam usar cinza ou preto com a letra L bordada na roupa. Alguns hospitais de leprosos possuíram uniformes distintivos para seus internos. Mas ainda mais significativo e universal do que suas vestes era o sinal, o guizo, sino ou trompa através do qual se exigia que anunciassem sua aproximação. Tudo isso simbolizava o fato de o leproso ser membro de uma minoria distinta, uma pessoa à parte. 

9. Ainda mais simbólico de seu isolamento da sociedade era a cerimônia formal de confinamento, pela qual eles eram declarados mortos para o mundo. Isso se desenvolveu nos séculos XII e XIII. Era uma ocasião de reverência. O leproso era conduzido pelo padre para a igreja. Era aspergido com água benta e se confessava. Ajoelhava-se sob um pano negro apoiado numa armação, enquanto o padre rezava a missa. Em seguida, o padre espalhava três pás cheias de terra, aos seus pés ou sobre sua cabeça, declarando: "Sede morto para o mundo, mas vivo novamente diante de Deus." A seguir, o leproso era conduzido para os campos, e o padre concluía com o conjunto de proibições.  

10. A exclusão formal da sociedade privava o leproso de seus direitos civis. Ele se tornava uma não-pessoa, impossibilitado de legar ou herdar propriedade, de defender suas demandas em tribunal, etc., embora a igreja reiterasse sistematicamente que a lepra não era motivo para a dissolução do casamento. Como os leprosos não podiam ser admitidos em hospitais comuns, o custeio de hospitais de leprosos passou a ser visto como uma atitude notável de caridade. Muitos desses hospitais de leprosos eram dedicados a são Lázaro, daí os termos lázaro e lazareto para leproso e hospital de leprosos.  

11. Na Inglaterra, no período central da Idade Média, foram fundadas mais de duzentas casas de leprosos. Eles foram estabelecidas sempre fora das cidades e longe dos centros de atividade, e variavam de tamanho. Na França, no século XIII, existiam dois mil hospitais de leprosos. A população da França era quatro vezes maior do que a da Inglaterra, mas é impossível dizer se a discrepância entre os números de casas de leprosários da França e da Inglaterra representa uma diferença no tamanho da população dos leprosos, ou meramente que eles eram tratados mais caridosamente na França. 

12. Embora presidisse a sua exclusão da sociedade, a Igreja ensinava que os leprosos deveriam ser tratados com compaixão. Divulgava a ideia de que os leprosos eram, em certo sentido, particularmente favorecidos por Deus, porque permitia que sofressem nesta vida, como Cristo havia sofrido. Histórias de santos cuidando, lavando e beijando leprosos fazia parte do folclore hagiográfico da Idade Média. Tal compaixão do santo pelo leproso foi um tema recorrente na arte medieval. No entanto, a Igreja nunca pôde superar o asco instintivo pelos leprosos que a maioria das pessoas trazia em si. 

13. Como a Igreja, as autoridades seculares tomavam medidas para assegurar a reclusão dos leprosos em relação ao meio social. A Coroa, em particular, interveio num momento em que a monarquia estava se tornando cada vez mais consciente do seu papel de guardiã da ordem pública, da saúde pública e da decência pública. Em 1346, o rei Eduardo III emitiu uma ordem proibindo a entrada de leprosos em Londres, a qual acentuava não apenas o perigo do contágio em geral, mas especificamente de contágio sexual. Em 1375, os guardas dos portões de Londres eram instruídos a proibir a entrada na cidade de leprosos e prendê-los se tentassem entrar.

14. Apesar dos esforços, a recorrência das instruções sugere que os regulamentos quanto à presença dos leprosos eram amplamente ignorados. Nem todos os leprosos estavam confinados em leprosários, e muitos vagueavam mendigando para sua subsistência. A mesma situação parece ter ocorrido em Paris. Isso preocupava as autoridades eclesiásticas, municipais e reais, que temiam o contágio tanto por sua conotação médica quanto moral. A tradição bíblica já associava a lepra ao pecado.  

A segregação e exclusão dos leprosos pelas autoridades precisa, portanto, ser vista também em termos de uma vontade de isolar da sociedade em geral um símbolo vivo da lascívia e da promiscuidade e de evitar que ele infecte esta sociedade com sua sexualidade excessiva. 

15. A partir da primavera de 1321, disseminou-se pela França o boato de que leprosos estavam envenenando poços. Leprosos de Périgueux e de outros locais foram torturados e queimados na fogueira e até mesmo em suas casas. Em Estang, Pamiers, o líder da colônia de leprosos, após ser preso e torturado, confessou uma conspiração dos leprosos para envenenar todos os poços da Cristandade e matar as pessoas saudáveis ou transformá-las em leprosos. Os judeus estariam envolvidos. O rei muçulmano de Granada e o sultão da Babilônia haviam prometido riquezas e honras como recompensa aos leprosos, caso tivessem êxito. Leprosos que confessaram a culpa foram queimados vivos; aqueles que não confessassem espontaneamente deveriam ser torturados. Em 1322, o rei Carlos V ordenou que todos os leprosos sobreviventes fossem aprisionados permanentemente. Nesse mesmo ano, os judeus foram expulsos da França. 
  
De qualquer modo, qualquer que tenha sido a escala da doença nos séculos XII e XIII, parece que sua incidência já estava em declínio no século XIV. No século XVII, a doença já estava mais ou menos extinta na Europa ocidental.

Bibliografia consultada: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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