“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#Minorias Hereges

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Hereges representados como demônios atacando a Trindade cristã. De um manuscrito inglês do século XIII. 
Créditos da British Library.

1. Do século XI ao século XIV, desenvolveu-se um mesmo modelo que levava à heresia: um líder carismático inspirava a criação de um grupo que defendia pontos de vista apostólicos. Então - por razões variadas -, não conseguindo reconhecimento, o grupo era impelido para a oposição. 

2. Na sequência, o grupo adotava pontos de vista cada vez mais anti-hierárquicos e anti-sacerdotais, sendo escorraçado e castigado pela Igreja até a submissão ou extinção. Ou, ainda, era forçado a sair para buscar sobreviver como seita herege perseguida. Somente num caso, o do catarismo, havia um sistema de crenças não-cristãs importado.     

3. Em sua maior parte, a heresia medieval tratava-se, de dissensão religiosa popular. A atração pela heresia não tinha base de classe; ela podia atrair todas as classes. A dissolução dos antigos laços comunitários e de família - um subproduto do crescimento urbano - podia ser compensada pela comunidade em grupos heréticos. Muitas mulheres, por sua vez, aderiram a seitas heréticas na esperança de obter status e autoridade nas novas comunidades. 

É importante destacar que, por norma, a heresia não foi fruto das discordâncias intelectuais sobre a fé. Uma exceção notável foi o lolardismo, movimento inspirado nas ideias de John Wyclif, na Inglaterra. 

4. Entre 970 e 1018, registraram-se apenas quatro casos de heresia no Ocidente medieval. Houve uma lufada herética entre 1018 e 1050; a partir de então, as fontes se silenciaram até 1100. Como características comuns desses movimentos, podemos citar a preocupação com a pureza, a rejeição do sexo e do materialismo e, finalmente, a negação das estruturas e práticas da Igreja. Essas ondas de puritanismo coincidem mais ou menos com as irrupções de violência contra os judeus.  

5. O retorno da heresia, no começo do século XII, era uma resposta a esse milenarismo subjacente e ao movimento de reforma eclesiástica. Muitos dos pregadores, como Marberto de Xanten e Roberto de Arbrissel, eram completamente ortodoxos. Mas outros eram muito mais críticos e abertamente anticlericais. O quadro geral na Igreja era de corrupção e negligência. 

6. Os primeiros heresiarcas da época, o monge Henrique de Lausanne e o Padre Pedro de Bruys, baseavam suas ideias com honestidade no Novo Testamento, visando comunidades de fé, regulando-se a si mesmas. Era a negação total do papel institucional da Igreja. A heresia albigense floresceu justamente nas áreas em que eles foram precursores.  

7. A tradição da piedade leiga foi um dos elementos mais duráveis e inspiradores da Reforma Medieval. O exemplo mais notável talvez tenha sido o dos valdenses. Eles eram seguidores de Pedro Valdo, outrora um rico comerciante de Lyon que traduziu o Evangelho para o vernáculo. Por sua influência, os "Pobres de Lyon" renunciaram à propriedade pessoal, viviam da caridade e buscavam prosélitos. Em 1184, foram condenados como hereges. Não tinham um clero ordenado. Só reconheciam três sacramentos - batismo de crianças, casamento e eucaristia. Defendiam a observância dos domingos e eram inteiramente ortodoxos do ponto de vista doutrinário. Mas rejeitavam a Igreja Católica e a hierarquia estabelecida. Os valdenses foram a única seita do século XII a sobreviver numa comunidade sem rupturas, ainda que tivessem sido ferozmente perseguidos.

8. Em meados do século XII, a tradição apostólica importou o maniqueísmo, religião persa do século III. O verdadeiro maniqueísta era celibatário, pacifista e vegetariano. No século X, na Bulgária, surgiu um tipo de heresia maniqueísta - a dos bogomilos. A primeira evidência da chegada da doutrina bogomila no Ocidente data de 1143.

9. Existiam divisões internas e diferenças doutrinárias entre os cátaros (como os adeptos da seita maniqueísta do sul da França ficaram conhecidos). Negavam o purgatório, as missas pelos mortos, a transubstanciação e o batismo de crianças. A seita tinha pouco apelo intelectual, mas imenso apelo popular. A reação da Igreja diante da ameaça de dissensão e de heresia pode ser sintetizada em três atos: persuasão, repressão e satanização.  

10. O papa Lúcio III e o imperador Frederico Barba-Ruiva selaram um acordo de política conjunta de repressão secular e eclesiástica. No Concílio de Verona (1184), foi publicada a bula Ad abolendam, a primeira tentativa nesse século de lidar com a heresia em bases supracionais. Por ter um alcance tão amplo, ela não funcionou. O papa Inocêncio III então mudou a estratégia. Ele introduziu uma política mais flexível e esclarecida em relação aos reformadores. Vários grupos de valdenses se reconciliaram com a Igreja em condições semelhantes aos humiliati da Lombardia.

11. A principal "arma" do papado na luta contra os hereges foi os frades, sobretudo os franciscanos e os dominicanos. Os primeiros foram reconhecidos em 1210. Os frades tornaram-se um elemento essencial na criação da mentalidade burguesa e na implementação do plano dos mendicantes para moralizar e purificar a sociedade urbana. Deram enorme contribuição para a vida intelectual da Igreja, provendo as universidades de pessoal e harmonizando o catolicismo com as novas ideias filosóficas (veja, por exemplo, a obra de São Tomás de Aquino).

12. Os frades atacavam não somente a heresia, mas também o "materialismo dogmático" (o interesse pelo dia de hoje - dinheiro, sexo e promoção). Os mendicantes se concentraram na confissão, na penitência e no arrependimento, e propiciaram o tipo de clima emocional e espiritual no qual a heresia poderia ser desbaratada. 

13. Em 1199, Inocêncio III equiparou pela primeira vez a heresia à traição, e ameaçou com deserdação perpétua os herdeiros dos hereges. Em 1208, ele proclamou a Cruzada dos Albigenses. A cidade de Béziers foi pilhada e queimada; sua população foi massacrada. Na discussão sobre como distinguir os hereges dos católicos, Arnaldo Amauri, abade de Cister e líder espiritual da cruzada, declarou: "Mate-os todos; pois o Senhor conhecerá aqueles que são Seus." Apesar disso, a cruzada arrastou-se inconclusivamente durante anos. Na França, o último cátaro foi queimado em 1326.

14. A Inquisição foi fundada em 1233, inicialmente para combater o catarismo, e seus poderes eram amplos. Contudo, uma autoridade coordenadora centralizada só surgiu em 1542, quando o papa Paulo III criou o Santo Ofício. O objetivo da Inquisição era estabelecer a culpa ou a inocência através de extensos interrogatórios, e tentar persuadir os infratores a retratar-se. Se fracassassem, entregavam os infratores às autoridades seculares para punição. A Inquisição agia através de denúncias e em segredo. Empregava agentes a tempo integral, informantes esporádicos e hereges arrependidos. 

15. A perseguição era acompanhada pela satanização, na forma de propaganda que estigmatizava os hereges como desviantes sexuais e orgiastas. Isso ocorria porque os católicos viam os hereges como hipócritas e muitas vezes interpretavam, de forma genuína ou deliberadamente errônea, que muitos grupos criam que era possível atingir um estado de libertação do pecado. A vinculação entre o culto ao Diabo e orgias sexuais já era clássica desde o surgimento da heresia no Ocidente medieval. Como os hereges eram, por natureza, hipócritas e, invariavelmente, pregavam a castidade pessoal, aos olhos dos seus inimigos eles deviam realizar orgias. 

Bibliografia consultada: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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