segunda-feira, 27 de agosto de 2018
Homossexuais destinados ao Inferno. Inferno, de Dante, Canto XV. Aqui Dante reconhece seu antigo professor Brunetto e Latini e outros florentinos condenados por crime de sodomia.
1. O estudo mais erudito sobre o papel da homossexualidade no mundo cristão é o trabalho de John Boswell, Christianity, Social Tolerance and Homossexuality (1980). Uma vez que, segundo os ensinamentos cristãos, o sexo foi dado ao homem unicamente para os propósitos da reprodução e por nenhuma outra razão, qualquer atividade sexual que não levasse ou não pudesse levar à procriação era um pecado contra a natureza.
2. O Antigo Testamento (Levítico 18:22; 20:13) declarou a homossexualidade uma abominação passível de pena de morte. Jesus nada disse especificamente sobre a homossexualidade, mas é razoável concluir que a reprovasse, ainda que tratasse o pecador com amor, como agiu em relação à mulher adúltera. O apóstolo Paulo (Romanos 1: 26-27; 1 Coríntios 6:9; 1 Timóteo 1:10) condenou claramente a homossexualidade. Ele só concebia atos homossexuais cometidos por pessoas heterossexuais. Os primeiros padres da Igreja - Clemente, Jerônimo, Orígenes e Agostinho - estabeleceram um código abrangente de ética sexual.
3. Mais tarde, na Idade Média, a era da reforma eclesiástica e a onda de espiritualidade ascética, juntamente com a revitalização das cidades e da vida urbana, intensificaram a sensibilidade geral em relação à homossexualidade e criaram a percepção de um "problema homossexual". Três grupos eram regularmente mencionados como envolvidos em atividades homossexuais - a nobreza, particularmente a nobreza jovem (a homossexualidade, por exemplo, teria florescido nas cortes de Roberto, duque da Normandia, e do rei Guilherme II da Inglaterra); o clero, tanto o regular quanto o secular, e, finalmente, estudantes (os da Universidade de Paris, em especial, eram notórios por seu envolvimento nela).
4. Se existiam pessoas inconscientes do pecado da homossexualidade no século XI, elas passariam a ter poucas dúvidas sobre o assunto no século XIII. Nessa altura, foi publicada uma rica literatura oferecendo textos em prosa e verso dos fundadores da Igreja, dos concílios da Igreja, dos Antigo e Novo Testamentos, o conjunto enfatizando o caráter hediondo desta prática.
5. Santo Alberto Magno (1206-1280) considerava a sodomia o pior pecado contra a natureza, e a definia como a prática do sexo entre homens ou entre mulheres. Para ele, o pecado se distinguia por sua "imundície repugnante", e era, apesar disso, mais recorrente entre pessoas de alto nível do que de baixo nível. Aqueles que se viciavam nessa perversão raramente conseguiam dela escapar; tal pecado era contagioso como uma doença.
6. O tratamento mais sistemático da homossexualidade encontra-se na Summa Theologiae, de São Tomás de Aquino (c. 1266). Ele a via como uma forma inatural de devassidão. Por ordem crescente de gravidade, os pecados contra a natureza eram: masturbação, relação inatural com o sexo oposto, relação homossexual e bestialidade. Estas concepções eram amplamente disseminadas, e Dante reservou aos homossexuais e aos violentos o Sétimo Círculo do Inferno.
7. O Concílio de Nablus (1120), celebrado no reino cruzado de Jerusalém, estabeleceu que um adulto do sexo masculino que persistisse no pecado da sodomia seria queimado pelas autoridades civis. Desde da queda do Império Romano, foi a primeira vez que a pena capital foi evocada para os homossexuais, que foram equiparados a hereges, assassinos e traidores. O rigor se explicava pelo temor de uma onda de homossexualidade, devido à escassez de mulheres cristãs, pelo contato com os muçulmanos (que, segundo a propaganda cristã, eram viciados em pederastia) e o elevado número de normandos na Terra Santa - diziam que eles estavam manchados por esse pecado.
8. Concílios posteriores também lidaram de forma rígida com a homossexualidade, ainda que não tenham seguido a rígida orientação do Concílio de Nablus. O papa Gregório IX, no século XIII, enviou inquisidores dominicanos para erradicar a sodomia na Alemanha. No final do século XII, a sodomia transformou-se em crime reservado, e só os bispos ou os seus representantes podiam lidar. Nessa época, dominicanos, cartusianos e cistercienses exigiram a construção de prisões para encarcerar os sodomitas juntamente com os ladrões, falsificadores, assassinos e incendiários.
9. No século XIII, a redescoberta do direito romano, que determinava um papel moral aos legistas da monarquia e impunha sentenças capitais, teve um significativo impacto sobre os legisladores. O direito romano era visto pelos monarcas centralizadores como um caminho ideal para impor a uniformidade nacional e enfatizar o papel do monarca como fonte da justiça. O código de Justiniano havia prescrito a execução pública na fogueira para os homossexuais, e isto configurou como o modelo para os códigos de leis introduzidos pelas monarquias nacionais.
10. Um episódio que contribuiu grandemente para a satanização dos homossexuais foi o processo contra os templários. Após a perda da Terra Santa, em 1291, essa ordem monástica de cavalaria retirou-se para a França. Lá eles estabeleceram seu quartel-general em Paris, numa fortaleza denominada O Templo. Ricos, poderosos, arrogantes e crescentemente impopulares, eles atraíram a atenção do rei Filipe IV da França. Presos, os templários foram acusados dos piores crimes - rejeitar o Cristo e cuspir na cruz, fazer oferendas a ídolos, adorar gatos (uma imagem usual do Diabo), praticar ritos obscenos de iniciação e atos homossexuais. Trinta e seis templários morreram sob tortura e pelo menos setenta e dois outros foram queimados. Apenas três admitiram a participação em atos homossexuais. Tribunais designados para investigar a culpa dos templários fora da França os consideraram inocentes, ou arquivaram o caso por falta de provas.
11. As cidades, sob a crescente influência puritana e moralista das ordens mendicantes, mobilizaram-se para reprimir a homossexualidade. As campanhas dos mendicantes envolvia a denúncia do jogo, da bebida, da prostituição e da sodomia. Ao longo dos séculos XIII e XIV, uma cidade após a outra decretou a morte na fogueira e, em alguns casos, a decapitação e confisco das propriedades dos sodomitas habituais - por exemplo, Ancona, Belluno, Cremona, Faenza, Florença, Modena, Parma, Siena, Todi, Urbino. Frequentemente, aplicavam-se penas mais leves para menores e infratores esporádicos, de modo a levá-los ao arrependimento antes que fosse muito tarde.
12. Em Veneza e em Florença, os homossexuais se tornaram bodes expiatórios para a peste e para o declínio populacional, e eram claramente vistos como um ultraje para o código da respeitabilidade burguesa, recém-estabelecido e influenciado pelas ordens mendicantes. Até que ponto os homossexuais foram processados em outras regiões ainda não está inteiramente claro. Entre 1420 e 1518, apenas um entre 21 mil réus diante dos Tribunais da Igreja de Londres foi acusado de sodomia.
13. A partir do século XII, a propaganda antimuçulmana ressaltava o predomínio da homossexualidade entre eles e destacava histórias de atrocidades homossexuais contra cristãos, crianças e clérigos. A sodomia também era associada à heresia e, em alguns casos, a propaganda funcionou. Uma vez que o Islã era a principal ameaça externa, e a heresia, a principal ameaça interna, e dado que ambas eram associadas à sodomia, a homofobia recebeu um poderoso impulso.
14. O puritanismo da revitalização evangélica dos séculos XI e XII inspirou tentativas sistemáticas de definir e lidar com pecados, gerando uma preocupação crescente de policiar a vida moral tanto do clero quanto do laicado. À medida que uma subcultura homossexual tornou-se mais visível nas cidades em expansão, a Igreja, a Coroa e as autoridades municipais, fortemente influenciadas pelo direito romano e pela espiritualidade pregada pelas ordens mendicantes, mobilizaram-se para reprimi-la.
15. O cristianismo é fundamentalmente hostil à homossexualidade. No período inicial da Idade Média, a punição era a penitência; no período posterior, a fogueira. Assim, a mudança não foi um deslocamento da tolerância para a intolerância por razões não-intrínsecas às crenças cristãs, mas uma alteração nos meios de lidar com a questão.
Bibliografia consultada: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
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