domingo, 30 de dezembro de 2018
Cap. VII Compreender a intriga
A história não se contentaria em ser meramente uma narrativa; ela deve explicar. Esse é o reconhecimento de que ela não explica sempre, e que pode não explicar sem deixar de ser história. "A História não ultrapassa nunca este nível de explicação muito simples; ela permanece fundamentalmente uma narrativa e o que chamamos explicação não é mais do que o modo que a narração tem de se organizar numa intriga compreensível" (p. 115). Ora, falar de explicação é dizer muito ou bem pouco.
"Explicar" tem dois sentidos. A explicação história, em seu primeiro sentido, é "uma difícil conquista científica, concretizada neste momento sobre somente alguns pontos do campo acontecimental (...)" (p. 116). No sentido científico, não existe explicação histórica. Explicar, num segundo sentido, da parte de um historiador, significa "mostrar o desenvolvimento da intriga, fazer compreendê-la". "O historiador interessa-se pelos acontecimentos pela única razão de que eles tiveram lugar e não são para ele uma ocasião de descobrir leis (...)" (p. 116).
O historiador refaz nas fontes a aprendizagem de um diplomata ou de um militar, por exemplo; utiliza, igualmente, algumas verdades científicas "mas utiliza sobretudo verdades que fazem de tal modo parte do nosso saber cotidiano que quase não é necessário mencioná-las (...)" (p. 117).
No mundo sublunar da história coexistem liberdade, acaso, causa e fins. Isso está em oposição ao mundo da ciência, que só conhece leis. Na quintessência da explicação histórica, apenas "a clareza que emana duma narrativa suficientemente documentada (...)." Para ser verdadeiro historiador, basta ser homem. "A história não explica, no sentido em que ela não pode deduzir e prever (...)" (p. 118). Por exemplo, quando pedimos que nos expliquem a Revolução Francesa, queremos uma análise dos antecedentes que a desencadeou - "a explicação não é outra coisa senão a narrativa desses antecedentes (...)". As causas, na verdade, são os diversos episódios da intriga. "É um preconceito acreditar que a história é uma coisa à parte e que o historiador se entrega a misteriosas operações que conduziriam à explicação histórica" (p. 119).
A palavra "causa" é muito mais utilizada nos livros sobre a história do que nos livros de história. Para Seignobos, é impossível determinar as causas principais - "todas seriam causas de parte inteira". Isso é uma dupla ficção. O historiador desenvolve "uma narrativa cujos episódios se sucedem e na qual os atores e fatores estimulam os seus atos." Ninguém será menos historiador se não desvendar um "culpado" caso os documentos sejam insuficientes (p. 120). O historiador não-acontecimental sabe que a história é feita de "coisas que poderiam ser outras", e em história, explicar é explicitar (p. 121).
"É vão opor uma história narrativa a uma outra que teria a ambição de ser explicativa; explicar mais é contar melhor, e de qualquer modo não se pode contar sem explicar (...)." Nesse sentido, Veyne deixa claro que a história é narração, somente. (p. 122) A metáfora dos ritmos temporais múltiplos é justificada pela desigual resistência à mudança dos diferentes pólos de ação. (p. 123)
A pluralidade dos tempos históricos: A) os inovadores de uma época são mais raros que os imitadores; B) o historiador não deve limitar-se "ao que os documentos dizem preto no branco (...)". Todo fato é, simultaneamente, causador e causado. (p. 124)
Um mínimo fato histórico comporta: 1º) o acaso; 2º) causas materiais e 3º) a liberdade (causas finais). A insistência no acaso é típico de concepções clássicas da história; a insistência sobre a causa final é própria de uma concepção idealista da história; finalmente, a insistência sobre a causa material é próprio da concepção marxista da história. O conflito dessas concepções já foi resolvido há uns dois milênios. (p. 125).
Por muito longe que penetre a explicação histórica, ela não encontrará nunca o limite. Longe de ser uma construção escalonada (há aqui uma crítica ao esquematismo marxista), a história "é um monólito no qual a distinção das causas, dos fins e dos acasos é uma abstração." Os historiadores sempre terão explicações incompletas, visto que não podem "ser uma regressão ao indeterminado." Aonde quer que queiram ir, sempre pararão sobre um destes três aspectos de qualquer ação humana (p. 126). A seguir, Veyne discorre sobre as causas materiais (o marxismo) (p. 127-128).
Causas finais: mentalidade e tradição
Quanto às causas finais, se as tomarmos por uma ultima ratio, a explicação reveste-se das figuras míticas da mentalidade e da tradição. (p. 128) Neste contexto, "a última palavra da explicação histórica seria então de procurar na existência de 'micro-climas' mentais (...)" (p. 129).
Acaso e causas profundas
Causa profunda: difícil de se perceber, resume numa palavra toda a intriga. (p. 130)
Causas superficiais: as mais eficazes, "aquelas em que é maior a desproporção entre seu efeito e os seus custos (...)" (p. 131). "A distinção entre ocasiões e causas profundas baseia-se na ideia de intervenção" (p. 132). As causas profundas decidem do que acontece, se acontece. As causas superficiais, por sua vez, decidem se acontece, ou não.
A história não tem linhas gerais. O acaso histórico deve ser encarado diferentemente do caso de um acontecimento isolado, do caso da história vista globalmente. (p. 133). A história não tem profundezas e tampouco é racionalizável. "As linhas gerais da história não são didáticas (...)". É preconceito pensar que a história de cada época tem os seus "problemas" e se explica por meio deles (p. 134).
A história não tem método (seu método é inato); implica uma questão de entendimento e só apresenta dificuldade de pormenor. Assim como a realidade que está à nossa volta, o passado possui três espécies de causas: natureza das coisas, liberdade humana e acaso. (p. 135)
"Na reconstrução da verdade, o historiador submete-se às mesmas normas que os sábios; nas suas inferências, na procura das causas, ele obedece às mesmas leis gerais do pensamento que um físico ou um detetive." (p. 136)
A explicação histórica não pode apelar para nenhuma estrutura permanente. Encontramos na história uma forma de explicação que nós de certa forma já sabíamos (e é por isso que a história é familiar). A historiografia nunca teve um Galileu ou um Lavoisier. O seu método não fez qualquer progresso desde Heródoto ou Tucídides. O que progrediu foi a crítica histórica e, sobretudo, a tópica histórica. (p. 137).
A metodologia histórica não tem um conteúdo determinado. Os historiadores, e sobretudo os maiores, não têm ideias. Historiadores ocupam-se de epigrafia ou de registros paroquiais mas preocupam-se bastante menos de terem uma concepção geral da história e do social.
Fichamento: VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução de António José da Silva Moreira. Lisboa: 70, 1971, p. 115-147.
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