“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

De Imperador a Agricultor

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

 

Em 305 d.C., Diocleciano entrou para a história como o primeiro dos imperadores romanos a abdicar do poder voluntariamente. Em seu retiro, em Salona (atual Split, Croácia), o ex-imperador dedicou-se ao cultivo de hortaliças, especialmente repolhos. 

Quando Maximiano e Galério lhe pediram para reassumir o trono, Diocleciano recusou como se repelisse uma peste: "Se pudésseis ver em Salona os vegetais plantados por minhas próprias mãos, jamais consideraríeis adequado que eu voltasse a ser imperador." Sextus Aurelius Victor. Epitome de Caesaribus, 39.6.

Jihad contra o Ocidente

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A ideia de jihad como uma guerra contra o Ocidente teve na obra de Sayyid Qutb (1906-1966) uma de suas formulações mais influentes. Qutb, sobre quem há uma obra disponível aqui, buscava promover uma revolução moral e religiosa. O ideólogo contribuiu para isso promovendo uma crítica profunda ao Ocidente (seria materialista, imoral e destrutivo). Essa crítica fomentou a noção de que o Islã deveria resistir à influência ocidental, não apenas militarmente, mas cultural e espiritualmente. O Ocidente representaria uma pressão que desviava os muçulmanos de Deus.

Nesse sentido, a jihad seria um instrumento de libertação. Ela não constituiria mero ataque militar, mas um esforço para retirar a humanidade do domínio humano e colocá-la sob domínio de Deus. Ou seja, para Qutb, a jihad era "guerra contra sistemas humanos opressores", que ele via no Ocidente e em governos muçulmanos seculares. Por fim, Qutb defendia que uma elite fiel (tali'a) deveria iniciar uma transformação de cima para baixo, semelhante à dos primeiros companheiros de Maomé. Essa ideia de "vanguarda" inspirou movimentos que passaram a pensar em lutas revolucionárias contra Estados estabelecidos, especialmente aqueles ligados ao Ocidente.

Após a execução de Qutb pelo governo egípcio, em 1966, suas obras foram apropriadas por militantes que exageraram o aspecto militar de sua teoria, ignoraram suas advertências éticas contra violência indiscriminada e transformaram a "libertação humana" em retórica de guerra.

Medicina árabe x Medicina Ocidental

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Os franj, no século XII, estão muito atrasados em relação aos árabes em todos os campos científicos e técnicos. Mas é principalmente na medicina que a distância entre Oriente desenvolvido e Ocidente primitivo é maior. Osama observa a diferença:

Um dia, ele conta, o governador franco de Muneitra, no Monte Líbano, escreveu a meu tio Sultan, emir de Xaizar, para pedir que lhe enviasse um médico para tratar de alguns casos urgentes. Meu tio escolheu um médico cristão de nossa terra chamado Thabet. Este se ausentou por poucos dias e voltou. Estávamos muito curiosos para saber como ele conseguira tão rapidamente a cura dos doentes e o enchemos de perguntas. Thabet respondeu: "Trouxeram até mim um cavaleiro que tinha um abcesso na perna e uma mulher que sofria de tísica. Coloquei um emplastro no cavaleiro; o tumor se abriu e melhorou. À mulher, prescrevi uma dieta para refrescar seu temperamento." Mas um médico franco chegara e dissera: "Esse homem não sabe tratá-los!" E, dirigindo-se ao cavaleiro, perguntou-lhe: "O que prefere, viver com uma só perna ou morrer com as duas?". O paciente respondeu que preferia viver com uma só perna, e o médico ordenou: "Tragam-me um cavaleiro forte com um machado bem afiado." Logo vi chegar o cavaleiro e o machado. O médico franco colocou a perna num cepo de madeira, dizendo ao recém-chegado: "Dê um bom golpe de machado, para cortá-la de uma só vez!". Diante de meus olhos, o homem atingiu a perna com um primeiro golpe, depois, como ela continuava presa, atingiu-a de novo. A medula da perna esguichou e o ferido morreu na hora. A mulher, por sua vez, foi examinada pelo médico, que disse: "Ela tem na cabeça um demônio, que está apaixonado por ela. Cortem seus cabelos!". Os cabelos foram cortados. A mulher voltou a comer sua comida com alho e mostarda, o que piorou a tísica. "É porque o diabo entrou em sua cabeça", afirmou o médico. E, pegando uma navalha, fez uma incisão em forma de cruz até aparecer o osso da cabeça e o esfregou com sal. A mulher morreu na hora. Perguntei, então: "Vocês não precisam mais de mim?". Eles me disseram que não e eu voltei, depois de aprender sobre a medicina dos franj várias coisas que ignorava.

MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. Tradução de Julia da Rosa Simões. São Paulo: Vestígio, 2024, p. 149-150.

Saladino (1137-1193)

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

An-Nasir Salah ad-Din Yusuf ibn Ayyub, mais conhecido como Saladino, se tornou vizir do Egito Fatímida em 1169. Em 1171, no entanto, ele eliminou o Califado Fatímida e, em 1174, tornou-se o soberano de um principado combinado da Síria e do Egito, governando-o como sultão até sua morte, em 1193. Assim,

O mundo islâmico do Mediterrâneo Oriental estava mais uma vez unido, e possuía no Egito sua província mais rica. Por milênios antes que a exploração do petróleo viesse a modificar todos os tipos de equilíbrio, era certo que aquele que controlasse o Egito controlava o Mediterrâneo oriental.

FLETCHER, Richard. A Cruz e o Crescente - Cristianismo e Islã, de Maomé à Reforma. Tradução de Andréa Rocha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004, p. 89.

Porém, a conquista mais importante do fundador da dinastia Aiúbida foi a reconquista de Jerusalém, em 1187, após a vitória na Batalha de Hattin. Grande líder da resistência islâmica contra os cruzados europeus, Saladino obteve o respeito de muitos deles, incluindo o rei inglês Ricardo I (conhecido como "Ricardo Coração de Leão"), graças à sua conduta cavalheiresca. Ele se tornou um exemplo célebre dos princípios da cavalaria, no mundo islâmico e também na Europa.

Justiça Árabe x Justiça Ocidental

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Para entender o contexto abaixo, leia: Um Duelo Medieval 

Nada mais natural que essa indignação do emir, pois para os árabes do século XII a justiça é uma coisa séria. Os juízes, os cádis [acima], eram personagens altamente respeitados, que, antes de pronunciar sua sentença, têm a obrigação de seguir um procedimento definido, estabelecido pelo Alcorão: acusação, defesa, testemunhos. O "juízo de Deus", ao qual os ocidentais frequentemente recorrem, lhes parece uma farsa macabra. O duelo descrito pelo cronista é apenas uma forma de ordálio. A prova do fogo é outra. E também o suplício da água, que Osama descobre com horror:

Um grande tonel cheio de água tinha sido instalado. O jovem que era objeto de suspeita foi amarrado, suspenso pelas omoplatas a uma corda e colocado no tonel. Se ele fosse inocente, eles diziam, ele afundaria na água e seria retirado por meio da corda. Se ele fosse culpado, não conseguiria mergulhar na água. O infeliz, quando atirado no tonel, se esforçou para ir ao fundo, mas não conseguiu e precisou se submeter aos rigores da lei, que Deus os amaldiçoe! Então enfiaram em seus olhos um buril de prata incandescente e o cegaram.

MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. Tradução de Julia da Rosa Simões. São Paulo: Vestígio, 2024, p. 149.

Um Duelo Medieval

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Leia a continuação, aqui

Em Nablus, ele [o cronista árabe Osama] conta, tive a ocasião de assistir a um curioso espetáculo. Dois homens deviam se enfrentar em combate singular. O motivo era o seguinte: bandidos muçulmanos tinham invadido uma aldeia vizinha e se suspeitava que um cultivador lhes servira de guia. Ele fugira, mas logo precisara voltar, pois o rei Fulque mandara prender seus filhos. "Trate-me com equidade", pedira o cultivador, "e permita que eu enfrente aquele que me acusou." O rei dissera então ao senhor que recebera a aldeia como feudo: "Traga o adversário". O senhor escolhera um ferreiro que trabalhava na aldeia, dizendo-lhe: "É você que lutará em duelo". O possuidor do feudo não queria que um de seus camponeses fosse morto, com medo de que seus cultivos fossem prejudicados. Vi então esse ferreiro. Era um jovem forte, mas que, ao caminhar ou se sentar, sempre sentia necessidade de pedir algo para beber. O acusado, por sua vez, era um velho corajoso que estalava dedos em sinal de desafio. O visconde, governador de Nablus, se aproximou e deu a cada um uma lança e um escudo, fazendo com que os espectadores ficassem em círculo em volta deles.

A luta começou, continua Osama. O velho empurra o ferreiro para trás, na direção da multidão, depois voltava para o meio da arena. Houve uma troca de golpes, tão violenta que os rivais pareciam formar uma única coluna de sangue. O combate se prolongou, apesar das exortações do visconde, que queria apressar seu desfecho. "Mais rápido!", ele gritava. Por fim, o velho ficou exausto, e o ferreiro, tirando proveito de sua experiência em manejar o martelo, acertou-o com um golpe que o derrubou e o fez soltar a lança. Depois, ele se agachou sobre ele para enfiar os dedos em seus olhos, mas não conseguiu por causa do sangue que jorrava. O ferreiro se levantou e matou o adversário com um golpe de lança. Imediatamente, amarram ao pescoço do cadáver uma corda com a qual o arrastaram até o cadafalso, onde o enforcaram. Veja, através deste exemplo, como é a justiça dos franj [cruzados]!

MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. Tradução de Julia da Rosa Simões. São Paulo: Vestígio, 2024, p. 148-149.

Conflito Armado Não-Internacional

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Ontem, o Brasil foi abalado com as notícias de uma megaoperação das forças de segurança do estado do Rio de Janeiro no Complexo do Alemão e no Complexo da Penha, com saldo oficial de 113 presos, 91 fuzis apreendidos e mais de 120 mortos, dentre eles dois policiais civis e dois militares do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE).

Segundo o projeto RULAC da ICRC, tal situação de violência assume a dimensão de conflito armado não-internacional (CANI/NIAC).

São características do CANI: um conflito em que pelo menos um dos lados é um grupo armado organizado e a violência prolongada entre o Estado e um grupo armado organizado.