“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Dia da Reforma Protestante

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Num dia tal como hoje, mas em 1517, o Dr. Martinho Lutero teria afixado suas 95 Teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, dando origem à Reforma Protestante. Para saber mais sobre esse assunto fascinante - que, diga-se de passagem, vai muito além da religião - leia o artigo que publiquei sobre 500 Anos da Reforma Protestante. Além disso, como bibliografia básica e inicial, recomendo

FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, Um Destino. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
GREEN, V. H. H. Renascimento e Reforma - a Europa entre 1450 e 1660. Tradução de Cardigos dos Reis. Lisboa: Dom Quixote, 1991.

A propósito, existem várias citações dessas obras aqui no blog. Basta digitar "Lutero", "Reforma", "Calvinismo" ou "Indulgências" no campo de busca, na barra lateral, para se ter acesso aos textos. Além disso, recomendo uma Exposição do Museu da Bíblia, a ser retomada no próximo dia 5 de novembro.

«Guia do Estudante - Atualidades»

terça-feira, 30 de outubro de 2018

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«As Três Ordens», de Georges Duby

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

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«A Sociedade Cavaleiresca»

domingo, 28 de outubro de 2018

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«A Escrita da História»

sábado, 27 de outubro de 2018

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Pérola de Chesterton (II)

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

CHESTERTON, Gilbert Keith. Ortodoxia. Tradução de Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2017, p. 191.

As Origens Marxistas do Fascismo

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Estado totalitário. Notou a semelhança entre o fascismo e o marxismo? 

O marxismo surgiu num contexto de cientificismo. Newton tinha descoberto as leis da física e Darwin as da seleção natural. Indo no encalço desses dois, e também de Hegel, Marx e Engels anunciaram que haviam descoberto as leis da história. Tal como as leis da física e da biologia, ambos concluíram que as leis da história eram deterministas e independentes da vontade humana. 

O socialismo científico era tão científico, na opinião de Marx e Engels, quanto a física de Newton e a biologia de Darwin. E que leis eram essas? Eram as do determinismo histórico, estudadas pela sua nova ciência, o socialismo científico. A ideia era simples: ao feudalismo sucede-se o capitalismo, cujas contradições levarão inevitavelmente os proletários à revolução que conduzirá ao comunismo. Nesta visão a história é teleológica e determinista.

Os anos passaram e não ocorreu nenhuma revolução, o que contradizia a teoria marxista. Como explicar isto? Surgiram duas teses revisionistas. A primeira, do marxista alemão Bernstein, foi a de que afinal o capitalismo não ia acabar, o operariado até estava a melhorar o seu nível de vida e o socialismo podia perfeitamente adaptar-se ao capitalismo. Esta corrente cresceu no SPD alemão e acabou na social-democracia como a conhecemos atualmente.

A segunda tese teve origem no marxista francês Georges Sorel. Numa obra tremendamente influente, Refléxions sur la violence, Sorel concluiu que a revolução não era inevitável nem seria espontânea. Teria de ser provocada. Como? Usando uma elite para guiar o proletariado e recorrendo à violência. Seria a violência que desencadearia a revolução. 

Foi o marxismo soreliano que conduziu ao bolchevismo e ao fascismo. Lênin leu Sorel e apropriou-se dos conceitos revisionistas da elite, a famosa "vanguarda", e do uso da violência. O mesmo Sorel foi lido com atenção em Itália, em particular pelos sindicalistas revolucionários, marxistas que adotaram a greve e a violência como formas de desencadear a revolução. 

Em paralelo, um marxistas austríaco, Otto Bauer, notou que no Império Austro-Húngaro os operários húngaros mostravam sentimentos de solidariedade mais fortes para com os burgueses húngaros do que para com os operários austríacos. Embora o marxismo fosse uma corrente internacionalista, Bauer buscou legitimidade em algumas afirmações nacionalistas de Marx e Engel para lançar uma nova ideia revisionista. Concluiu ele que o comportamento dos operários húngaros mostrava que o sentimento de nação era mais poderoso do que o sentimento de classe. O nacionalismo era revolucionário, argumentou, pois galvanizaria o proletariado para a revolução. 

Esta ideia entrou em Itália pela pena de um marxista italiano de origem alemã, Robert Michels, e influenciou os sindicalistas revolucionários italianos. Estes, contudo, enfrentaram a ortodoxia dos restantes marxistas, incluindo Benito Mussolini, o diretor do órgão oficial do partido socialista italiano, o Avanti! 

Acontece que em 1911 ocorreu um acontecimento que abalou as convicções ortodoxas de Mussolini: a guerra ítalo-otomana pela Tripolitânia. Mussolini opôs-se a essa guerra, mas ficou atônito com a reação do proletariado italiano, que exultava com as vitórias de Itália. "Michels e os sindicalistas tinham razão!", concluiu Mussolini. As pessoas estão afinal mais dispostas a morrer pela sua pátria do que pela sua classe. 

Quando a Grande Guerra começou, em 1914, ocorreu uma cisão no movimento socialista. A Segunda Internacional tinha determinado que os operários dos diferentes países não entrariam em guerra uns contra os outros, mas na hora da verdade os socialistas alemães, franceses e britânicos apoiaram a guerra. Apenas os bolcheviques russos e os socialistas italianos se opuseram. 

O problemas é que nem todos os socialistas italianos estavam de acordo. Os sindicalistas revolucionários queriam a entrada de Itália na guerra porque achavam que ela seria o forno onde se forjaria o sentimento nacional dos italianos, cujo país era novo e buscava ainda a sua identidade, e que seria o sentimento de nação que uniria o proletariado italiano e desencadearia a revolução. Ou seja, a guerra derrubaria o capitalismo. 

Mussolini começou mantendo a linha do partido e opôs-se à entrada de Itália na guerra, mas rapidamente deu razão aos sindicalistas e defendeu que os socialistas italianos deveriam seguir o exemplo dos socialistas alemães, franceses e britânicos e apoiar a guerra. Isso valeu-lhe a expulsão do partido.

Os sindicalistas revolucionários italianos, incluindo Mussolini, foram para a guerra - uma posição perfeitamente em linha com a de outros marxistas europeus, incluindo os do SPD alemão. Quando o conflito terminou, os marxistas italianos pró-guerra regressaram para casa mas foram antagonizados pelos marxistas italianos anti-guerra. Em conflito com estes, os marxistas pró-guerra fundaram o movimento fascista, com reivindicações como o salário mínimo, o horário laboral de oito horas, a participação dos trabalhadores na gestão das fábricas, a aposentadoria aos 55 anos e o confisco dos bens das congregações religiosas. Será que só eu noto que estas reivindicações fascistas têm origem marxista?

O pensamento fascistas foi evoluindo. Recorde-se que Marx e Engels consideravam que o capitalismo era uma fase necessária e imprescindível da história e que sem capitalismo nunca haveria comunismo. Os bolcheviques renegaram esta parte do marxismo quando preconizaram que na Rússia era possível passar diretamente de uma sociedade agrária para o socialismo, mas neste ponto os fascistas mantiveram-se marxistas ortodoxos ao aceitar que o capitalismo teria de ser temporariamente cultivado em Itália.

Noutros pontos os fascistas desviaram-se da ortodoxia marxista. Por exemplo, aproximaram-se do revisionismo bolchevista quando abraçaram a ideia soreliana da violência provocada por uma vanguarda e afastaram-se do marxismo e do bolchevismo quando aderiram à ideia baueriana de que o sentimento de nação era para o proletariado mais galvanizador do que o sentimento de classe. Isto levou-os a dizer que a luta de classes não se aplicava à Itália porque esta já era uma nação proletária explorada pelas nações capitalistas. A luta de classes apenas iria dividir a nação proletária, pelo que em vez de conflitualidade deveria haver cooperação entre classes (corporativismo).

O pensamento fascista continuou a evoluir, sobretudo em consequência do Biennio Rosso (1919-1920), período em que os comunistas italianos lançaram uma campanha de ocupação selvagem de fábricas e de propriedades rurais. Estes eventos levaram os fascistas a afastaram-se mais do marxismo, pois entendiam que estas ações enfraqueciam a nação, que designavam de "classe das classes", ao ponto de começarem a proclamar-se anti-marxistas. Convém no entanto recordar que Mussolini esclareceu que o fascismo objetava ao marxismo não por este ser socialista, mas por ser anti-nacional. 

Se acham que o fascismo não tem origens marxistas, aproveitem também para desmentir por que o fascismo alemão se designava nacional-socialismo. Como acham que a palavra socialismo foi parar ali? Por acaso? 

Adaptado de: José Rodrigues dos Santos, Fascismo: uma ideologia de esquerda originada do marxismo. Disponível em: ILISP

#15Fatos O Santo Medieval

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Relicário de São Segismundo, rei dos burgúndios entre 516 e 524. Após renunciar ao arianismo, Segismundo teria fundado a abadia de Saint-Maurice de d'Agaune, no Valais.

1. As vidas de santos e as coletâneas de milagres visavam adaptar os servidores de Deus a modelos que correspondiam a categorias reconhecidas da perfeição cristã — mártires, virgens, confessores, etc. — e, para além disso, à figura de Cristo. Cada santo ou santa dignos desse nome procurou em vida, se não identificar-se com a pessoa do filho de Deus, pelo menos, aproximar-se ao máximo dessa norma absoluta. Não é, pois, de admirar, sob este ponto de vista, que se assemelhem todos e que os milagres que se lhes atribui façam pensar nos que são descritos nos textos evangélicos, desde a multiplicação dos pães até à ressurreição dos mortos.

2. Definir o culto dos santos em termos de sobrevivência em relação ao culto a semideuses ou gênios da natureza leva, fatalmente, a transformá-lo em superstição, conceito vago que, em qualquer caso, não bastaria para explicar o lugar que a devoção aos servos de Deus ocupou no universo religioso medieval. Além disso, isso acaba por menosprezar uma evolução muito profunda que marcou a cristianização no domínio das relações entre o homem e a natureza. Destruindo os bosques sagrados e substituindo o culto das fontes e das nascentes pelo culto dos santos, a Igreja, lançou-se, desde os finais da Antiguidade, num empreendimento de grande fôlego cujo objetivo era antropomorfizar o universo e submeter ao homem o mundo da natureza. 

3. O culto dos santos não foi inventado na Idade Média. Tudo surgiu com o culto dos mártires que, durante algum tempo, foram os únicos santos venerados pelos cristãos e conservaram no seio da Igreja um considerável prestígio, mesmo quando outros modelos começavam a surgir. Por terem morrido como seres humanos, seguindo Cristo e empenhados na fidelidade à sua mensagem, os mártires tiveram depois acesso à glória do paraíso e à vida eterna. O santo é um homem através do qual se estabelece um contato entre o céu e a Terra. Assim, longe de constituir a moeda de troca da nova religião ou uma concessão da elite cristã às massas pagãs para fomentar a sua conversão, o culto dos mártires enraizou-se naquilo que o cristianismo tinha de mais autêntico e original em relação às outras religiões com as quais entrava em concorrência.  

4. Segundo a hipótese do historiador inglês Peter Brown acerca da origem do culto dos mártires, esse culto seria organizado, primeiro, no plano privado, para, numa segunda fase, vir a ser adotado pelos responsáveis das igrejas locais, preocupados com essas devoções particulares que iam proliferando em torno das sepulturas e que podiam pôr em perigo a unidade da comunidade cristã. Sem dúvida, os bispos desempenharam um grande papel na propagação do culto dos mártires, ao qual atribuíram uma função essencialmente eclesiástica, colocando-o sob o seu controle. Ao tornar-se patronus celeste da catedral e da cidade, o santo reforçava o prestígio do seu representante e, em breve, seu sucessor: o bispo.      

5. Para além disso, as homenagens cada vez maiores de que as relíquias foram objeto, por ocasião das festas do calendário e das transladações, ofereceram à comunidade urbana a oportunidade de mostrar a sua unidade e de integrar os grupos marginais, camponeses ou bárbaros. Pela via indireta das procissões, teciam-se novos laços entre a cidade e os suburbia, onde se encontravam os cemitérios, e com os martyria, pequenos santuários que albergavam as relíquias dos mártires. Até finais da Idade Média, os ricos, por sua vez, tinham por obrigação construir igrejas que recebiam as relíquias dos servos de Deus, que passaram das sepulturas para os altares.

6. As influências ascéticas vindas do Egito e da Síria penetraram no Ocidente, na segunda metade do século IV e aí obtiveram um sucesso que se refletiu na mais importante obra hagiográfica desse período, a Vita Martini (a vida de S. Martinho de Tours, morto em 397), escrita por Sulpício Severo, nos inícios do século V. Todavia, enquanto o santo da Antiguidade tardia era um adepto da vita passiva que buscava a perfeição na renúncia ao mundo, o Ocidente da alta Idade Média caracterizou-se, sobretudo, por figuras de chefes religiosos e de fundadores profundamente empenhados na vida ativa. O santo tornou-se, então, um recurso para os deserdados e para as vítimas de injustiças.

7. Para caracterizar o período que medeia entre os finais do século VI e os finais do século VIII, utilizou-se por vezes o termo «hagiocracia», tantos foram os santos dessa época que estiveram ligados, por vezes muito estreitamente, ao poder, como Santo Elói, em França, ou, em Roma, S. Gregório Magno, que ocupou o lugar da vacilante autoridade imperial e se encarregou da defesa e administração das cidades. A crença, que então se afirmou, de que um santo só podia ser nobre e de que um nobre teria maior probabilidade de vir a ser santo do que qualquer outro homem, não era, pelo menos no início, uma superstrutura ideológica imposta pelas classes dominantes ou pela Igreja; tinha raízes na convicção, comum ao cristianismo da Antiguidade tardia e ao paganismo germânico e partilhada tanto pelas classes dominantes como pelas classes dominadas, de que a perfeição moral e espiritual dificilmente se podia desenvolver fora de uma linhagem ilustre. 

8. Pela sagração, o rei distinguia-se da aristocracia leiga e colocava-se ao lado dos oratores, transformando-se numa espécie de «bispo externo» cuja ação a Igreja se esforçava por orientar e moralizar. Em torno da função real desenvolveu-se, tanto em Inglaterra como no continente, toda uma ideologia do rex justus, muito influenciada pelo Velho Testamento. A expressão mais acabada dessa ideologia consta na Vita do capeto Roberto o Pio (morto em 1031), escrita pelo monge Helgand de Fleury que realçou o aspecto litúrgico do rei sacerdote. Embora não receba a qualificação de santo, Roberto é apresentado nesse texto como justamente famoso e intercessor privilegiado nas relações dos homens com Deus, que lhe concedera o privilégio de curar milagrosamente as escrófulas apenas pelo toque das suas reais mãos. Assim começou na França a tradição dos reis taumaturgos, tão bem analisada por M. Bloch. 

9. As personagens que mais atraíram a atenção dos seus contemporâneos foram os reformadores das ordens monásticas, como Gérard de Brogne (morto em 959), que restaurou o mosteiro com o mesmo nome, no Hainaut, e, sobretudo, os grandes abades de Cluny, Santo Odilon (morto em 1048) e Santo Hugo (morto em 1108), sob cuja direção a congregação da Borgonha atingiu o seu apogeu. Um dos principais factores do extraordinário sucesso que o modelo monástico obteve nos primeiros tempos do feudalismo reside no fato de ele corresponder perfeitamente à ideia que os homens daquele tempo tinham da santidade: para eles, era algo que dizia respeito a «profissionais». Por isso, as massas, sentindo-se a priori desqualificadas na procura da santidade, descarregavam sobre eles a tarefa de garantirem essa função de mediadores entre o céu e a Terra, sem a qual, para os homens da época, nenhuma sociedade podia sobreviver.    

10. Se, no Ocidente, o número de santos aumentou sensivelmente, não foi apenas porque os homens e as mulheres dos séculos XII e XIII tinham mais anseios de perfeição do que os seus antecessores. A nova mentalidade pôs a tônica na necessidade de um empenho pessoal do indivíduo; por conseguinte, a santificação transformou-se numa aventura pessoal e numa necessidade interior, sentida de forma diferente de acordo com as pessoas e os lugares, mas que em todos os casos obedecia a um impulso amoroso. Assim, pregadores itinerantes como S. João Gualberto, na Itália (morto em 1073) ou Robert d’Arbrissel, na França (morto em 1116), defenderam a vida na renúncia e na ascese, dedicação ao serviço dos pobres e dos leprosos, reabilitação das prostitutas. Os pobres voluntários passavam a ser exaltados.    

11. Esta evolução para uma espiritualização crescente da noção de santidade acentuou-se com a evolução do processo de canonização que passou a conceder ao papa o direito exclusivo de decidir, em última instância, a tal propósito. Isso se consumou no início do século XIII. A alteração, por parte da Santa Sé, das causas que conduziam à santificação foi acompanhada pela instituição de um controle sobre as virtudes e os milagres dos servidores de Deus, que eram submetidos a um exame atento pela cúria depois de ouvido o testemunho de todos os que deles tinham tido conhecimento ou que tinham beneficiado com a sua intercessão, no quadro de um processo de canonização. A partir daí, haverá no Ocidente duas espécies de santos: aqueles que, tendo sido aprovados e reconhecidos pelo papa, poderão ser objeto de um culto litúrgico e os outros, restritos a uma veneração local.    

12. A partir da segunda metade do século XIII, o impulso místico impregnou a Germânia, Flandres e Itália, antes de se estender a toda a Cristandade. Nesse contexto, surgiram novas formas de santidade, à margem de uma instituição cada vez menos capaz de corresponder às aspirações religiosas dos fiéis. Por volta de 1300, um crescente profetismo visionário viu-se favorecido pelas grandes crises que se seguiram ao Grande Cisma de 1378. O aspecto mais notável desse movimento foi o papel exercido pelas mulheres, sobretudo leigas. Excluídas do ministério da palavra no seio da Igreja, apoderam-se dele, alegando uma eleição divina. Foi por ocasião do processo de canonização de Santa Clara de Montefalco, na Úmbria, que os fenômenos paramísticos e as visões foram, pela primeira vez, sujeitos a um exame especial pela Igreja de Roma. Se nada se concluiu foi, certamente, devido — para além de todos os motivos inerentes a cada caso particular — à desconfiança que os clérigos sentiam em relação a essas mulheres que, ao afirmarem que a união com Deus era possível na Terra, podiam vir a desapossá-los da sua função de intermediários necessários entre os homens e o Além. O aspecto profético da santidade feminina acentuou-se no século XIV: por exemplo, Santa Brígida da Suécia (morta em 1373), a partir de 1343, começou a ter e a comunicar revelações referentes à urgência do regresso do papado a Roma, à Reforma da Igreja e à conversão dos infiéis. Santa Catarina de Siena (1380) perseguiu, fervorosamente, os mesmos objetivos.  

13. A partir de finais do século XIV, mas sobretudo no século XV, houve uma reconquista da opinião pública por parte dos elementos mais dinâmicos do clero. Quando se examina a lista dos principais santos de finais da Idade Média, é de se surpreender o lugar que nela ocupam os grandes pregadores da época: Vincent Ferrier (morto em 1419), Bemardino de Siena (morto em 1444), Giovanni de Capestrano (morto em 1456), Giacomo delle Marche (morto em 1476). Esses religiosos distinguiam-se claramente do clero a que os fiéis estavam habituados: iam de cidade em cidade, viviam na maior pobreza, mas tinham tempo para se fazer conhecer pelos seus auditores. O desejo de conversão que animava esses santos ia para além da moral individual: conscientes de que viviam num mundo onde os costumes eram pouco influenciados pela mensagem cristã, esforçavam-se por introduzir o Evangelho na vida social.  

14. Para a maioria dos homens da Idade Média, sobretudo antes do século XIII, um santo era, acima de tudo, um morto ilustre cuja história não se conhece exatamente, mas de quem se sabe que, em vida, sofreu perseguições e tormentos por amor a Deus. Daí, a importância do seu corpo. Na Idade Média, a santidade era, sobretudo, uma linguagem do corpo, um discurso da «carne impassível» (P. Camporesi).

15. A partir do século XIII, o desejo de arranjar um patrono aumentou, estendendo-se às comunidades profanas e a mais pequena cidade ou a mais modesta confraria passaram a desejar ter um santo patrono próprio. A procura desenfreada de um patrono por parte de indivíduos e de grupos levou ao desenvolvimento de duas formas particulares de devoção: o culto cívico e o culto dinástico. Aquele era praticado, sobretudo, nas zonas em que as cidades usufruíam de uma autonomia política real, ao passo que este se manifestava nos países de tradição monárquica, onde a coesão nacional era forte. À medida que se ia desenvolvendo uma forte consciência nacional baseada no sentimento monárquico, o patrono da família real tendia a transformar-se no patrono de toda a nação. No fim da Idade Média, o culto dos santos se integrou tão profundamente na vida social que passou a ser um dos seus elementos essenciais, correndo o risco de se vulgarizar.   
  
Bibliografia consultada: VAUCHEZ, André. In: O Santo. LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 211-230.

A Guerra dos Seis Dias (1967)

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Território controlado pelos israelenses, antes e depois da Guerra dos Seis Dias.

Entre o fim da Guerra de Suez (1956) e a Guerra dos Seis Dias (1967), escaramuças e uma beligerância total marcaram as relações entre Israel e os Estados árabes. Na Conferência do Cairo de 1964, a Liga Árabe declarou pela primeira vez que seu objetivo era destruir o Estado de Israel. Criou-se também a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que tinha um braço militar, o Exército de Libertação da Plestina. A organização guerrilheira palestina Al Fatah, existente desde 1958, incorporou-se à OLP, ainda que agisse de forma independente. 

Dentre os países árabes, apenas a Síria, governada desde 1961 por um regime nacionalista e pró-soviético, dava cobertura às ações da Fatah. Em abril de 1967, Israel abateu seis MIGs-21 nos céus de Damasco, num incidente que teve início numa zona desmilitarizada perto do lago Kinneret, mar da Galileia. 

Apesar da pressão dos sírios e dos jordanianos (que haviam assinado pactos de ajuda militar mútua em caso de guerra), o presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, não planejava a guerra contra Israel. Ele pretendia antes preservar sua liderança no mundo árabe. Nesse sentido, ele despachou grande quantidade de tropas para o deserto do Sinai e exigiu a retirada da Força de Emergência da ONU, que policiava o local desde o fim da guerra de 1956. Mais grave, bloqueou a navegação israelense no estreito de Tiran, no Golfo de Ácaba, ao enviar para lá barcos armados

Em 5 de junho de 1967, após receber o consentimento do governo estadunidense, o governo de Levi Eskhol desencadeou uma blitzkrieg contra o Egito. Naquela manhã, aviões da Força Aérea Israelense (FAI) destruíram no solo 309 dos 340 aviões de combate egípcios. Em resposta a ataques dentro de Israel, no primeiro dia de combate a FAI também destroçou quase a totalidade das forças aéreas dos sírios e dos jordanianos. No dia seguinte, as forças israelenses cruzaram a fronteira do Sinai. 

Em 7 de junho, paraquedistas israelenses conquistaram a cidade velha de Jerusalém, até então sob controle jordaniano. Ao sul, outros paraquedistas israelenses saltaram em Sharm el-Sheikh, acima do estreito de Tiran, e encontraram a fortaleza egípcia abandonada. Em 8 de junho, chegaram a Rumani, perto do canal de Suez. 

Não houve um plano prévio de captura da Cisjordânia ou das colinas de Golã (até então da Síria). De qualquer modo, a guerra se desenrolou, nas palavras do então chefe do Estado-Maior, Yitzhak Rabin, "como uma consequência de sua própria lógica interna". Assim, ao final da guerra relâmpago, Israel ocupava a Cisjordânia, Gaza, Jerusalém oriental, as colinas de Golã e a Península do Sinai. Morreram 980 soldados israelenses e 4.300 árabes. 

A Guerra dos Seis Dias foi um conflito que nenhuma das partes desejava e, por incrível que pareça, careceu de planejamento político e estratégico por parte de Israel. No dia 19 de junho, o gabinete israelense decidiu propor um acordo de paz com o Egito e a Síria, retirando suas tropas das áreas ocupadas desde que fossem garantidas a liberdade de navegação no estreito de Tiran e no canal de Suez; a desmilitarização do Sinai e das colinas de Golã e a não interferência no escoamento de água das nascentes do rio Jordão. A resposta da conferência de cúpula árabe, ocorrida em 28 de agosto em Cartum, no Sudão, foram os "três nãos": não ao reconhecimento de Israel; não à negociação e não à paz. Consequentemente, Israel fechou-se atrás das linhas conquistadas na guerra do deserto.  

Bibliografia consultada: CAMARGO, Cláudio. Guerras Árabe-Israelenses. In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006, p. 438-442.

#15Fatos A Mulher Medieval

domingo, 21 de outubro de 2018

Cristina de Pisano (1363 - c. 1430), a primeira mulher medieval a viver de sua pena, aparece ajoelhada num luxuoso tapete estampado, do quarto real. Ela oferece à rainha Isabel da Baviera (c. 1370 - 1435) um de seus livros. 
Livro da Rainha, Harley MS 4431, f. 3r.

1. No século XI, o esquema tripartido que dominava as concepções da sociedade cristã não concedia nenhum lugar específico às mulheres. Quer se trate de esposas, viúvas ou virgens, a personalidade jurídica e a ética cotidiana foram delineadas em função de um homem ou de um grupo de homens. Infelizmente, há poucos textos, poucas imagens da mulher e da família que nos transmitem a voz das principais interessadas. O eco dos prazeres e das dores cotidianas, das alegrias ou das discussões domésticas chega-nos, tingido de compreensão, de malícia ou de hostilidade evidente, com muito mais frequência dos homens do que das mulheres.

2. Na Idade Média, a relação de aliança pelo matrimônio tem, na sua origem, uma «paz». No final de um processo de rivalidade, por vezes mesmo de guerra declarada entre famílias, o matrimônio instaurava e selava a paz. Dar uma mulher à família com quem outra família se reconciliava, colocava a esposa no centro do entendimento. A esse penhor e instrumento de concórdia atribuía-se um papel que ultrapassava o seu destino e as suas aspirações pessoais. Nos meios aristocratas citadinos do séculos XIII e XIV, ódios antigos, vinganças intermináveis, concluíam-se igualmente com uma troca espetacular de mulheres, ao mesmo tempo que guerras, privadas ou não, eram ocasionalmente declaradas devido a uma união que falhou.

3. A passagem de uma mulher de uma linhagem para outra não envolvia apenas o seu transfert físico, mas também o de riquezas. A honra das famílias movia-se em dois planos. Para ser socialmente reconhecido — e seja qual for o meio social, a época ou o sistema jurídico em vigor —, o casamento exigia a existência de bens, por mais reduzidos que fossem, bens esses que eram dados por um grupo a um outro quando se preparava e depois se efetuava a entrega da mulher. A partir do século XII, o dote levado pela mulher aumentou e adquiriu um pouco mais de consistência em relação ao dote ou às doações e contribuições do marido. Nos séculos XIV e XV, a mulher casada, no Sul de França, em Itália e, finalmente, também em Espanha, era classificada pelo dote dado pela sua família; mais a norte, a doação feita pelo marido manteve-se até a época moderna. 

4. A única justificação para o casamento era a preocupação de procriar descendentes legítimos. Nesse sentido, todas as «boas linhagens» receavam que um sangue estranho se introduzisse nelas sem o seu conhecimento. Os filhos de um homem nascidos fora do casamento, certamente dificultavam o mecanismo das heranças, mas eram bem distinguidos. Os filhos adulterinos de uma mulher — tanto mais perigosos quanto mais a sua mãe soubesse ocultar o seu delito — nasceram de uma fraude e, quando sobrevivem, incorriam no duplo crime de terem nascido do pecado da carne e da traição da mãe em relação à família que passou a ser a sua. A fidelidade sexual das mulheres era o centro do mecanismo familiar: o corpo exigia uma vigilância sem falhas, para evitar atos fraudulentos que causariam danos a toda a linhagem.      

5. A Igreja atuou para dissuadir os homens de casarem com primas e insistiu — e, a partir do século XI, cada vez com mais firmeza — na necessidade de se obter o consenso dos jovens esposos e de não os fazer casar numa idade em que o seu consentimento não teria qualquer valor. Para a Igreja, a fundação de uma nova família precisava partir do respeito pela liberdade dos nubentes, que não eram as linhagens mas os futuros cônjuges. Esta mudança de perspectiva provocava, pelo menos em teoria, uma revolução notável: concedia à mulher o mesmo lugar que o marido no sacramento do matrimônio. Assim, o costume de se apoderar das mulheres pela violência, tão vulgar na Alta Idade Média, tornou-se mais raro nos séculos finais e dificilmente obtinha a aceitação social e religiosa. No entanto, o rapto — executado muitas vezes para forçar o acordo entre as famílias — ou o silêncio das mulheres, alerta-nos para uma interpretação demasiado otimista das condições em que as mulheres adquiriram voz nessa matéria. Em pleno Renascimento, existiam histórias sinistras de moças entregues a maridos ou encerradas em conventos contra a sua vontade. Mesmo os ritos, criados ou adaptados pela Igreja para garantir a liberdade do consentimento, eram frequentemente desviados para outros fins.

6. Entre os séculos XI e XIV, os ritos matrimonais concentraram-se em alguns momentos cruciais do processo que conduzia à formação do novo casal. Na Normandia, por exemplo, a tradicional entrega da noiva ao futuro marido, feita pelo pai ou pelo tutor, cerimônia que, durante toda a Alta Idade Média, era estritamente privada, reveste-se de ritos complementares e passou a ser efetuada, não na residência, mas no pórtico da igreja paroquial, onde o padre acolhia os futuros esposos que, na sua presença, davam o seu consentimento. O caráter público do local, a existência de testemunhas e a solenidade que era conferida pela presença do padre davam um certo peso à voz feminina. Voz que não se exprime porém, em toda a parte e em todos os meios, em condições tão favoráveis: por exemplo, em Itália, em pleno século XVI, os poderosos continuaram a celebrar essa cerimônia num ambiente familiar e apenas na presença do notário.

7. O grande desafio que as famílias tinham de aceitar, numa época em que a morte se abatia cruelmente e com muita frequência sobre as pessoas, é gerar herdeiros. O coração da casa medieval era o quarto: era lá que a mulher estava, trabalhava, concebia, dava à luz; e era lá que morria. Sabe-se ainda muito pouco acerca da vida biológica da mulher casada e dos efeitos que as funções que lhe eram atribuídas tinham sobre o seu corpo e o seu comportamento. As fontes são heterogêneas, dispersas e, muitas vezes, contraditórias. No entanto, de todas elas se podia inferir que o papel da mulher na reprodução do grupo era o que suscitava as mais frequentes discussões e censuras, as maiores precauções e os elogios mais entusiastas. 

8. Um homem que se aproxima dos 30 anos, ou seja, um adulto, via de regra se casava com uma adolescente. Esta é a situação assimétrica da Baixa Idade Média, uma situação que recorda, estranhamente, os costumes romanos da época clássica.  Raciocinando sobre as práticas do seu meio e da sua época, homens como L. B. Alberti, nos seus Livros da família, tomaram como modelo os fatos seguintes: o homem esperará até ter atingido a plenitude da idade para se casar; pelo contrário, a mulher casará jovem e «donzela», para não se perverter enquanto espera pelo casamento. Assim, entre os séculos XIII e XV, o casamento em idade avançada — que continuou a caracterizar a população da Europa ocidental, na Idade Moderna — parece ter sido a prática e a regra apenas da parte masculina.  

9. O tempo relativamente longo entre o casamento e o primeiro nascimento indica que as adolescentes não tinham certamente atingido uma maturidade fisiológica suficiente para engravidarem imediatamente, o que de resto não impedia os maridos de as iniciarem de imediato na vida conjugal. Depois do primeiro filho, porém, gravidez e nascimentos sucediam-se a um ritmo acelerado. Assim, em 1461, uma burguesa de 29 anos, de Arras, ficou viúva depois de ter dado à luz doze filhos em treze anos de casamento. Os períodos de gravidez ocupavam cerca de metade da vida das mulheres casadas, antes de atingirem os 40 anos. Consequentemente, durante metade da sua vida conjugal, o casal não deveria, teoricamente, ter relações por receio de poder causar lesões no feto. Se a mãe amamentava, o casal também devia abster-se, uma vez que o nascimento de outro filho podia abreviar a aleitação e, por conseguinte, a vida do irmão mais velho. Existiam tabus também em relação ao sexo quando a mulher estivesse menstruada e no período entre o Advento e a Quaresma. É difícil saber, todavia, até que ponto essas restrições eram respeitadas pelos casais.      

10. Desde a Alta Idade Média até ao século XII, todos os concílios reforçaram as proibições e os castigos que pesavam sobre os comportamentos destinados a prevenir ou a inviabilizar um nascimento. A partir do século XIII, o conhecimento dos tratados de medicina árabes e a moda de Ovídio provavelmente propagaram, em certos meios, as práticas contraceptivas; de qualquer modo, a sua discussão levou os teólogos a atenuar um pouco a rigidez das proibições. Há os que deixam de proibir a união de um casal estéril ou admitiam o coitus reservatus: qualquer casal pode, portanto, procurar o prazer e não ter apenas em vista a procriação. Outros deixam de confundir contracepção e infanticídio. Todavia, até finais da Idade Média, os pregadores insistem frequentemente no pecado mortal de uma união sexual «contra natura» (sodomia, por exemplo), que chocava com «a forma do matrimônio».     

11. As enormes descendências — dez, quinze filhos só existiam, de fato, em teoria. No ciclo cotidiano dos nascimentos e das mortes, as casas de finais da Idade Média albergavam, em média, pouco mais do que dois filhos vivos, tal como os recenseamentos revelavam; e os sobreviventes que o pai ou a mãe mencionam nos seus testamentos, raramente ultrapassam esse número. Na classe mercantil, pelo menos um quarto das crianças florentinas que foram entregues a amas morreram junto delas. Mas há pior: 45% dos filhos dessas famílias não atingiam os 20 anos. A mortalidade das mulheres também era alto. De três mulheres florentinas que morreram antes do marido, uma sucumbiu ao dar à luz um filho ou em consequência imediata do parto.   

12. A autoridade era a palavra-chave que dominava a visão masculina das relações entre os cônjuges e que foi a única a ser-nos diretamente transmitida. O homem, primeiro ser da criação, a imagem de Deus mais semelhante ao original, a natureza mais perfeita e mais forte, deveria dominar a mulher.  O homem teria uma autoridade «natural» sobre a mulher. Base teórica da reflexão de numerosos tratados a partir do século XIII, a fraqueza e a inferioridade da natureza feminina impuseram a elas, desde a Antiguidade, um domínio circunscrito - por exemplo, a casa e, dentro dela, espaços mais reservados, tais como a cozinha, a sala de trabalho e o quarto. Ainda que subordinadas, as mulheres eram engrenagens essenciais do bom funcionamento social; as que assumiam plenamente a sua função asseguravam a harmoniosa assimilação dos produtos da indústria masculina. Qualquer excesso nas suas despesas prejudicava todo o organismo social e o conjunto das trocas. A família era também um conjunto de pessoas sobre as quais a mulher devia velar, regulando os seus ritmos e as suas atividades. A mulher era a senhora da ordem doméstica, da paz familiar.

13. A insubordinação das mulheres não era apenas objeto da reprovação dos maridos; incorria igualmente na reprovação coletiva. As infracções à ordem normal das coisas, as inversões demasiado chocantes da autoridade natural, eram passíveis de um julgamento e de um castigo simbólico, imposto pela comunidade. A partir de inícios do século XIV, as primeiras menções de bimbalhadas rituais atestam esse controle público sobre as opções matrimoniais; o segundo casamento das viúvas ou, mais geralmente, os múltiplos casamentos do mesmo indivíduo atraíam a reprovação dos jovens em relação a casais mal casados ou intemperantes. Em toda a Europa, o ritual do passeio de burro punia a inversão demasiado evidente dos papéis conjugais: se a mulher dominava o marido, o maltratava ou o enganava, o marido, que faz as vezes dela, tinha de percorrer a área da aldeia montado ao contrário na ridícula cavalgadura e agarrando-se-lhe à cauda.

14. Se tivermos em conta toda a escala social, nem todas as mulheres estavam tão confinadas à casa e submetidas ao marido como o desejavam os maridos e os teóricos da «santa mobília». As camponesas trabalhavam duramente nos campos, as artesãs, nas lojas dos maridos que, por vezes, ficavam para elas após a morte deles. Mesmo dentro de casa, fosse ela senhorial ou burguesa, as mulheres e os filhos tinham sempre alguma coisa que fazer. Desde a mais tenra idade, as mulheres fiaram, teceram, coseram e bordaram sem descanso e quanto mais alta era a linhagem, quanto mais honra tivessem, menos tempo se lhes concedia para brincarem, rirem ou dançarem. 

15. Os romances medievais estão repletos de destinos sombrios de mulheres sós que têm de sobreviver nas situações mais aventurosas e que, de resto, são apresentadas como totalmente capazes de sair dos impasses. São mulheres sem família as que se colocam fora da ordem «natural» atribuída ao sexo feminino pela sociedade medieval. Por isso são muito mais vulneráveis e a sua reputação fica imediatamente manchada. Viúvas sós: mendigas que ganhavam o seu sustento fiando, criadas de servir, reclusas que viviam fora de uma comunidade religiosa, todas eram suspeitas de mau comportamento e facilmente acusadas de prostituição.
  
Bibliografia consultada: KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A Mulher e a Família. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 193-208. 

Antes da Invenção dos Despertadores

sábado, 20 de outubro de 2018

A pergunta que fica é: nessa época, quem acordava os "batedores de janela"?

República Velha de Maçons

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Benjamin Constant (1836-1891), maçom e adepto do positivismo, foi um dos articuladores do golpe republicano de 1889. Após ocupar o Ministério da Guerra do Governo Provisório, tornou-se ministro da Instrução Pública, promovendo importante reforma curricular.

A independência do Brasil foi obra de um grão-mestre maçom, D. Pedro I. A República, por sua vez, foi proclamada pelo marechal Deodoro da Fonseca, outro maçom. O ministério montado pelo primeiro presidente, diga-se de passagem, era completamente formado por maçons - Benjamin Constant (Guerra), Quintino Bocaiúva (Transportes), Aristides Lobo (Interior), Campos Sales (Justiça), Eduardo Wandenkolk (Marinha), Demétrio Ribeiro (Agricultura) e Rui Barbosa (Fazenda). 

A influência da sociedade secreta não parou por aí. No dia 24 de outubro de 1930, quando a Primeira República foi enterrada pela Revolução de 1930, era possível contabilizar três militares e dez advogados que haviam ocupado a presidência. Além de fazerem parte da tradição de políticos formados em Direito, entre os presidentes da República Oligárquica, nada menos que oito foram maçons. Foram eles: Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto, Prudente de Moraes, Campos Sales, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás, Delfim Moreira e Washington Luís.   

A maçonaria recebeu influência do Iluminismo francês. Os maçons compartilhavam a concepção política segundo a qual, uma vez no poder, deveria se promover a igualdade real e não apenas jurídica entre os homens, acrescentando aos direitos individuais um direito social. Ora, tal promessa, para ser posta em prática, exige interferência do governo. Consequentemente, houve um crescimento do Estado pela ampliação do ordenamento jurídico e pelo aumento da tributação. 

Adaptado de GARSCHAGEN, Bruno. Pare de Acreditar no Governo - Por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. Rio de Janeiro: Record, 2015, p. 155-156.

Exposição do Museu da Bíblia

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

"No princípio era o Verbo: 500 Anos da Reforma" é o tema da exposição organizada pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) que ficará em cartaz na Primeira Igreja Presbiteriana de Vitória, ES, em duas datas: 22 a 28 de outubro, e de 5 a 12 de novembro. A entrada é gratuita. 

Com peças do Museu da Bíblia, de Barueri, São Paulo, a mostra destaca a contribuição da Reforma Protestante para a tradução, impressão, e divulgação da Bíblia Sagrada. O visitante poderá conhecer o "tempo dos manuscritos", o "tempo dos impressos" e o "tempo dos digitais", além dos projetos de tradução das Escrituras em andamento. 

Serviços
Data: De 22 a 28 de outubro de 2018; de 5 a 12 de novembro de 2018.
Horário: Das 8h às 18h, exceto de 24 a 26 de outubro, e 8 e 9 de novembro, das 8h às 22h.

Local: Primeira Igreja Presbiteriana de Vitória, ES.

Informações: 0800 727 8888 ou (27) 3222-1003.


Com informações do jornal A Tribuna e da revista Comunhão.

#15Fatos O Mercador Medieval

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Mercadores tipicamente medievais numa iluminura de uma tradução do séc. XV de Ética, Política e Economia, de Aristóteles. 
Biblioteca Municipal de Rouen, França, Ms. 927, fol. 145. 

1. No início da Idade Média, a sociedade era predominantemente agrária e, portanto, o mercador era um elemento notável, mas secundário. Mais tarde, no entanto, ele transformou-se aos poucos numa figura de primeiro plano, no criador das novas relações que minavam os alicerces tradicionais do Feudalismo. Todavia, ocupar-nos-emos mais do mercador como tipo humano do que da atividade econômica dos mercadores. A mentalidade dos mercadores distinguia-se, em muitos aspectos e substancialmente, da dos cavaleiros, do clero e dos camponeses. A visão do mundo que, gradualmente, se foi formando na consciência da classe mercantil, à medida que ia evoluindo, opunha-se à visão do mundo dos outros estratos da sociedade feudal. 

2. Na Baixa Idade Média, os soberanos, os prelados, a aristocracia e, em parte, também estratos mais vastos da população precisavam de artigos e de mercadorias de vários gêneros que não podiam ser produzidos localmente e que tinham de ser importados de outros locais, por vezes distantes. Não se tratava apenas de vestuário e tecidos de luxo, louças valiosas e outras raridades, mas também produtos usuais que eram, muitas vezes, fornecidos pelos mercadores. Os mares da Europa meridional e setentrional, os grandes rios e, aqui e ali, mesmo as estradas herdadas dos romanos eram utilizados como vias comerciais. 

3. Os mercadores do primeiro período medieval não podiam ser totalmente privados do espírito belicoso. Tinham de se deslocar a países longínquos com as suas caravanas, vaguear por entre gentes e povos estranhos e deparavam com muitos e variados perigos, desde os salteadores até aos senhores locais, que se assemelhavam bastante aos bandidos. Esses senhores faziam de tudo para se apoderarem das suas riquezas, quer sobrecarregando-os com impostos, quer, mais simplesmente, roubando-lhes as mercadorias e os lucros. Os mercadores sofriam com as tempestades no mar e com as dificuldades do tráfico por via terrestre, dado o estado impraticável das estradas. Os lucros oriundos do comércio de mercadorias caras eram tão altos quanto os riscos envolvidos na atividade.   

4. O mercador precisava estudar cuidadosamente os costumes, ligados ao comércio, dos lugares onde chegava. Era importante, sobretudo, conhecer bem o direito comercial. Para ser bem sucedido, o mercador precisava saber línguas e, em especial, o latim e o francês porque eram as mais difundidas. Precisava de saber se orientar pelos astros e pela alternância do tempo e distinguir os pontos cardeais. O mercador devia manter um espírito de paz e ser sempre discreto; seguindo todos esses conselhos, poderia enriquecer. Essas foram as orientações de um pai norueguês a seu filho conforme registradas no Speculum regale, documento do primeiro terço do século XIII.   

5. O prestígio social dos mercadores era bastante modesto. Os que eram ricos, provocavam inveja. Além disso, a sua honestidade era posta em dúvida. Em geral, o mercador era um «pária» da sociedade medieval, na fase inicial do seu desenvolvimento. Qual era, exatamente, a justificação do seu lucro? Adquiria as mercadorias a um determinado preço e revendia-as a um preço mais elevado. Era aí que se ocultavam as possibilidades de fraude e de lucro injusto; os teólogos evocavam de bom grado as palavras: «o ofício de mercador não é grato a Deus», até porque, segundo os padres da Igreja, era difícil que, nas relações de compra e venda, não se insinuasse o pecado. Nas listas dos teólogos relativas aos ofícios classificados como «desonestos» ou «impuros», quase sempre figurava o comércio. Apesar disso, a Igreja reconhecia a necessidade do comércio.  

6. Os ricos que emprestavam dinheiro a juros eram particularmente desprezados; os mercadores eram os que recorriam mais frequentemente a esse sistema de multiplicação de capital. Em lugar das viagens comerciais a terras longínquas, associadas a não pequeno risco (ou paralelamente ao comércio), muitos ricos preferiam atuar como agiotas. E todos necessitavam, desde os soberanos aos nobres, aos pequenos comerciantes, aos artesãos, aos camponeses. Os autores cristãos tinham sempre condenado a usura, prevendo para os usurários as penas do inferno. Em 1179, a Igreja proibiu, oficialmente, aos cristãos a prática da usura. É essa proibição que explica, acima de tudo, o papel desempenhado pelos judeus na vida econômica do Ocidente. Apesar disso, muitos cristãos foram usurários.
  
7. Numa sociedade hierárquica, dividida em classes, dava-se valor, em primeiro lugar, à nobreza de origem e à coragem cavaleiresca que estava associada a essa nobreza. O cidadão, mesmo que fosse um rico mercador, era desprezado pelos nobres e não se esperava dele nenhuma virtude cavaleiresca. Para os cavalheiros e as damas nobres, não passava de um canalha, de um vilão. Todavia, os ricos das cidades, os mercadores e os usurários, tentavam ascender a uma posição elevada mercê da sua riqueza. Havia certos cidadãos que até conseguiam obter a dignidade de cavaleiros. Uma das características dos mercadores-aristocratas era a ambição de uma vida luxuosa.

8. A ética da acumulação entrava em conflito não só com a doutrina religiosa, mas também com as tendências fundamentais da aristocracia. Para esta, constituía uma virtude dispor ostensiva e abertamente da riqueza, dissipá-la publicamente. As despesas que não tinham em conta as receitas reais eram sinal de nobreza e generosidade. Por sua vez, o mercador não pode deixar de ser parcimonioso e econômico, tem de amealhar o dinheiro e gastar moderadamente os seus recursos na esperança do lucro. 

9. Os autores eclesiásticos dos séculos XI e XII, ao caracterizarem a sociedade, recorriam ao sistema trifuncional «rezadores-guerreiros-lavradores». Todavia, no século XIII, esse esquema arcaizante já estava em nítida contradição com a realidade social. Assim, o franciscano Bertoldo de Ratisbona (1220-1272) considerava as categorias e as classes como uma espécie de analogia da hierarquia celestial, que justificava e fundamentava a organização social. Aos nove coros angélicos descritos no passado pelo Pseudo-Dionísio, correspondem nove categorias, que abrangem os indivíduos que executam os vários serviços. No centro da atenção de Bertoldo estavam as profissões urbanas e, embora ele amaldiçoasse constantemente os «ambiciosos» e os ricos, justificou plenamente a existência do comércio e dos mercadores. Finalmente, em vez dos apelos à passividade ascética e ao afastamento do mundo, o pregador franciscano insistiu na necessidade de uma atividade socialmente útil como base da existência da sociedade.    

10. Godrich von Finchale (c. 1065-1170) foi um mercador inglês que, num curto espaço de tempo, passou de pequeno comerciante a mercador que percorria o Báltico e auferia enormes proventos com revenda de mercadorias raras. Depois de ter feito fortuna, renunciou ao comércio lucrativo, retirando-se para a vida religiosa para salvar a sua alma e, depois da sua morte, foi proclamado santo. Isso não constituiu uma excepção. Um século depois, foi proclamado santo o mercador Omobono de Cremona, que se ocupou do comércio até ao fim dos seus dias, mas que se tornou santo devido ao seu testamento. Em 1360, o mercador de Siena, Giovanni Colombini, depois de abandonar os negócios, fundou a ordem mendicante dos Jesuatos. Na primeira novela do Decameron, o senhor Ciappelletto da Prato, conhecido perjuro e blasfemo, no seu leito de morte, servindo-se de uma falsa confissão, enganou o frade e foi proclamado santo depois de morrer.      

11. Os «homens novos», que tinham sido bem sucedidos na atividade comercial e financeira, distinguiam-se não só pela sua energia, pelo seu espírito de iniciativa e pelo desembaraço, mas também pelo descaramento, o egoísmo e a desenvoltura em relação a todas as normas patriarcais da época. Mas só a posse da riqueza mobiliária não garantia estima e prestígio, na sociedade feudal. Eis um exemplo: um burguês de Ravensburg, em carta, tentou «tratar por tu» um cavaleiro, à semelhança do que este fazia com ele, e foi colocado no seu lugar pelo correspondente, que lhe recordou a sua nobreza e o fato de ele não passar de um «burguês», um mercador. Por isso, devia ir até à cervejaria informar-se das cargas que chegavam de Alexandria e de Barcelona, mas era melhor não tentar provar a sua origem! Se, em Itália, a fronteira entre a nobreza e a aristocracia mercantil não tinha ainda desaparecido, começava, pelo menos, a se dissipar. Na Germânia, contudo, a situação não era a mesma.    

12. O poder monárquico precisava considerar a classe mercantil e empresarial de cujo apoio financeiro e político necessitava. Alguns dos mercadores mais ricos eram íntimos da corte. O banqueiro Jacques Coeur, «o primeiro magnata financeiro da Europa» (1395-1456), que investiu os seus capitais em todas as possíveis empresas lucrativas e tinha interesses em toda a Europa, tornou-se ministro e tesoureiro do rei Carlos VII da França, participando não só na realização das reformas do Estado, mas também na política militar e diplomática francesa.  De forma semelhante, Buonaccorso Pitti (1354-1430), comerciante de nível incomparavelmente mais modesto e do que Jacques Coeur, tomou parte ativa nos assuntos públicos de Florença e, tratando a alta aristocracia de igual para igual, participou nas guerras e nas intrigas políticas, imiscuindo-se na luta partidária da sua cidade natal.

13. Em nenhum outro local da Europa a classe mercantil atingiu tanto poder econômico e político como nas cidades italianas. Em nenhum outro local uma camada tão vasta de população esteve ligada à atividade mercantil. Um viajante que passou por Veneza pouco antes da grande epidemia de peste de 1348, chegou a esta conclusão: «são todos mercadores». Acerca dos genoveses, dizia-se o seguinte: «genoveses, logo, mercadores». São opiniões apropriadas, na medida em que a grande classe mercantil dava o tom a toda a vida econômica, social e política nessas cidades italianas. Em Itália, a profissão de mercador estava moralmente reabilitada e Jacopo da Varazze, bispo de Gênova e autor da famosa Legenda aurea, comparava o mercador a Cristo em pessoa: também Cristo dera aos homens a possibilidade de trocarem as coisas transitórias e terrestres pelas coisas eternas.  

14. A partir do século XIII, numerosos mercadores empreenderam longas e perigosas viagens por mar. Basta recordar o célebre Marco Polo. Em 1291, os irmãos genoveses Vivaldi empreenderam uma viagem surpreendente. Eles zarparam para Ocidente, para lá de Gibraltar, com o objetivo de descobrirem a Índia das riquezas fabulosas, águas ocidentais do Atlântico ou depois de circum-navegarem a África, sem que houvesse antecessores ou pontos de orientação que lhes pudessem servir de guia. A Índia, a China, os países da África e o Próximo Oriente atraíam estes corajosos navegadores e viajantes que associavam a caça ao lucro à curiosidade e ao espírito de aventura. O mercador transformava-se, facilmente, em corsário, uma vez que viajava armado. 

15. O mercador precisava estar preparado para enfrentar o perigo, que constituía um aspecto imprescindível da sua profissão, e, por conseguinte, a consciência do risco, da ameaça, nunca o abandonava. O perigo escondia-se nas viagens de longo curso, sobretudo as que eram feitas por mar: os naufrágios, os assaltos dos piratas ou dos mercadores rivais. Mas o perigo também vinha das perturbações do mercado e das pessoas com quem o mercador estabelecia relações de vários gêneros. É por isso que, nos apontamentos e nas instruções saídos da pena dos mercadores-escritores, há insistentes avisos em relação às partes contrárias, aos concidadãos, aos amigos e até aos parentes. Aconselha-se o mercador a estar sempre alerta. Gradualmente, no entanto, o mercador passou de empresário que peregrinava por terra ou por mar e se sujeitava a todos os perigos, a mercador que permanecia na sua empresa e que fazia os seus negócios, sobretudo por intermédio de agentes ou por correspondência.    
  
Bibliografia consultada: GUREVIC, Aron Ja. O Mercador. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 165-178.