“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos O Artista Medieval

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Altar da Igreja de Santo Ambrósio de Milão, século IX. A assinatura do autor, Vuolvinus, a auto-representação e a quase igualdade com a pessoa que encomendou a obra, são fatos significativos que revelam a elevada categoria social do ourives e a ideia que dele se podia ter. 

1. A Idade Média, mais do que qualquer outra época, nos parece marcada pelas suas brancas roupagens de igrejas repletas de esculturas, mosaicos ou vitrais multicolores, ourivesarias cintilantes, livros coloridos com iluminuras, marfins esculpidos, enormes portas de bronze, esmaltes, pinturas murais, tapeçarias, bordados, tecidos de variadas cores e com desenhos singulares e quadros pintados em fundo de ouro. Mas, em toda essa fascinante profusão e variedade de produtos artísticos, podemos reunir um número restrito de artistas e, ainda por cima, nomes isolados, ligados a uma única obra. Não sabemos quem projetou os mosaicos de S. Vital, quem pintou os frescos de Castelseprio, quem esculpiu os capitéis de Cluny e muito menos quem erigiu a catedral de Chartres.

2. A crise do mundo antigo comportou graves perturbações na estrutura do mundo artístico e na posição dos seus componentes. Desapareceram ricos e requintados colecionadores, a produção diminuiu ao ponto de cessar em centros artísticos que tinham sido importantes e, em outros, continuou mas em escala bastante reduzida. Modificaram-se os comitentes e as tipologias e a função e concepção de obra de arte alteraram-se. As imagens suscitavam graves suspeitas e hostilidades, na medida em que estavam tradicionalmente associadas ao mundo e à cultura dos gentios e, por isso, eram possíveis veículos de idolatria. Foram cada vez mais colocadas ao serviço da Igreja, da sua missão e dos programas de redenção e salvação e puderam até ser consideradas como um substituto da leitura para os iletrados. No ano 600, o papa Gregório escreveu o seguinte ao bispo de Marselha: «... de fato, o que a escrita é para os que sabem ler, é a pintura para os analfabetos que a contemplam, porque nela podem ler aqueles que não sabem as letras e, por isso, a pintura serve, principalmente, de lição para as pessoas».  

3. De modo geral, durante muito tempo na Idade Média, o sinal de inferioridade que marcava quem praticava os trabalhos manuais, ao contrário de quem exercia atividades intelectuais, continuou a ser um fator discriminatório.  Nos textos medievais não encontramos um termo para designar aqueles a quem hoje chamamos artistas; geralmente é o vocábulo artífices que serve para designar os artesãos e, com eles, os artistas. O antigo método pedagógico que privilegiava as artes liberais em detrimento das atividades manuais, consideradas servis, marcou por séculos a condição do artista, que era um trabalhador manual. Essa visão predominou pelo menos até ao século XII, quando a estrutura cultural, agitada pelo impetuoso crescimento das cidades e pelas modificações sociais e mentais que esse crescimento implicava, entrou em crise.

4. No interior do campo artístico existiam distinções hierárquicas muito acentuadas: o arquiteto, em cuja obra se reconhecia uma componente projetual (portanto, mental) e organizativa, era especialmente apreciado. Mas a ideia que, na Idade Média, se tinha do arquiteto era muito variada. Além dos arquitetos, a posição dos ourives, que trabalhavam as matérias mais preciosas, e dos mestres vidreiros, peritos numa técnica difícil, era elevada. Durante séculos, a ourivesaria foi uma das grandes técnicas-piloto da arte medieval, técnica que os maiores artífices experimentavam, em que eram executadas as obras mais novas e significativas e em que se tentavam as experiências mais modernas.

5. Nas fontes, há rasgados elogios a certos pintores que eram procurados, em Itália, pelo seu talento, como Johannes, que Otão III chamou à Aquitânia, ou o lombardo Nivardus, pintor de muito talento, chamado a trabalhar no mosteiro de Fleury (Saint-Benoít-sur-Loire) pelo abade Gauzlinus, filho ilegítimo de Hugo Capeto e generoso comitente. Aliás, os limites entre as técnicas não eram intransponíveis e as fontes aludem, com extrema frequência, a artistas polivalentes, capazes de atuarem em vários domínios.  

6. Após a Antiguidade Clássica, uma das primeiras biografias de artistas é a de Santo Elói (588-660), o famoso ourives e moedeiro do Limoges (França) que se tornou personagem importantíssima da corte merovíngia. Depois, tornou-se bispo de Noyon e canonizado. Ao biógrafo não interessava de um modo especial a atividade artística de Elói, que era apenas um dos aspectos da sua personalidade, a par de outros não menos — e para o biógrafo, mais — importantes. Por conseguinte, mais do que a biografia de um artista, é a biografia de um santo que, entre outras coisas, foi também um artista.  

7. Em 1148, o abade Wibaldus de Stavelot escreveu a um ourives cujo nome começava por G e que, provavelmente, seria o famoso Godefroy de Huy, também chamado Godefroy de Claire. Escreveu o bispo: «Os homens da tua arte têm, por vezes, o hábito de não cumprir as promessas porque aceitam mais trabalhos do que os que podem executar. A ganância é a mãe de todos os males, mas o teu nobre engenho e as tuas mãos diligentes e hábeis escapam a qualquer suspeita de falsidade. Que a fé acompanhe a tua arte e que a tua obra seja acompanhada pela verdade [...]. Qual é o objetivo desta carta? Simplesmente pedir-te que te dediques exclusivamente aos trabalhos que te encomendamos e recuses qualquer outra tarefa que possa prejudicá-los, até estarem concluídos." A resposta revela as dificuldades econômicas e a situação precária do artífice e, ao mesmo tempo, a sua requintada cultura literária, a ironia e os artifícios retóricos a que recorre para responder aos pedidos do poderoso abade. 

8. São conhecidos também os nomes e as imagens de um certo número de miniaturistas do período românico. Alguns deles deixaram a sua assinatura e, por vezes — ainda que raramente —, a sua imagem nos textos; de outros, falam-nos testemunhos contemporâneos. Mas o lugar mais importante e de maior prestígio social no interior de um «scriptorium» é o do «scriptor», o copista. Existem muitos nomes e muitas imagens de copistas; o seu trabalho é considerado mais elevado e intelectual do que o trabalho manual do pintor: copistas das palavras divinas, dos escritos dos santos, sobre eles se reflete a luz do Verbo. Podia acontecer que o «scriptor» fosse também miniaturista ou que o miniaturista utilizasse também outras técnicas.   

9. Em inícios do século XII, uma nova atitude em relação ao artista surge em Itália. Em Pisa e em Modena, existem inscrições extremamente elogiosas colocadas nas paredes das novas catedrais e celebrando os artistas que nelas trabalharam. O aparecimento das assinaturas dos artistas está relacionado com as grandes iniciativas artísticas e edificantes das comunas: o fato de se ter conseguido os melhores artífices e de se ter realizado, graças a eles, as mais extraordinárias construções é um orgulho para a coletividade e aumenta o prestígio das cidades. O artista vê aumentar o seu prestígio social e melhorar o seu próprio papel, devido às suas relações com esse novo comitente coletivo. As inscrições com os nomes dos artistas abundam, no decorrer do século XIII, especialmente em Itália, mas também em França e na Alemanha, embora com relevância e características diferentes.       

10. No século XII, em Itália, a par da figura do arquiteto, emergiu a figura do escultor. Wiligelmo foi escultor e Niccolò também. No portal do Zodíaco da abadia de S. Michele delia Chiusa, Niccolò dirige-se ao público, convidando-o a admirar o emaranhado de plantas por ele esculpido e onde se escondem feras e monstros e a compreender o significado da sua obra, observando as imagens e lendo as inscrições. Uma inscrição existente na catedral de Ferrara confirma o talento de Niccolò e augura-lhe glória eterna.      

11. Na França, durante o século XIII, a figura do arquiteto adquire grande importância. O seu papel num grande estaleiro era diferente do do canteiro ou do pedreiro, já que era ele quem projetava e coordenava as atividades dos vários grupos de operários e dos vários artistas: escultores, pintores, mestres vidreiros, ourives, ferreiros, carpinteiros, etc. A partir dos primeiros decênios do século XIII, conhecemos muitos dos arquitetos que dirigiram os trabalhos das grandes construções góticas: por exemplo, Robert de Luzarches e, depois, Thomas de Courmont, em Amiens, Jean e Pierre Deschamps, em Clermont-Ferrand.    

12. As características novas e espetaculares da arquitetura gótica francesa exerceram grande atração e os arquitetos franceses eram procurados em toda a Europa. Guillaume de Sens iniciou bastante precocemente (1178) a construção, no novo estilo, do coro da catedral de Cantuária, Etienne de Bonneuil é chamado à Suécia, em 1287, para trabalhar na catedral de Upsala e, por volta de 1270, a reconstrução, em «opere francigeno», segundo as regras do estilo gótico, da igreja de Wimpfen im Tal, na Floresta Negra, foi confiada a um «peritissimo architectoriae artis latomo» ido de Paris. Finalmente, em meados do século, Villard de Nohhecourt seguiu para a Hungria.  

13. A libertação parcial dos artistas da situação subalterna em que a sua relação com as artes mecânicas os colocava, teve em a Divina Comédia um dos seus momentos mais privilegiados e encontrou na cultura florentina o espaço no qual esse acontecimento pôde verificar-se. Por um lado, há o peso das palavras de Dante; por outro, o peso da arte profundamente inovadora de Giotto, em redor do qual depressa se criou uma rede de cumplicidades e de admiração. 

14. Numa das novelas do Decameron que tem Giotto como protagonista, Boccacio afirma que «tendo ele essa arte que volta à luz do dia, que durante muitos séculos, pelos erros de alguns que sabem mais deleitar os olhos dos ignorantes do que deliciarem a inteligência dos sábios, tinha estado sepultada, pode merecidamente dizer-se que é uma das glórias do esplendor florentino» e Petrarca, que, em 1370, deixou em testamento um quadro de Giotto ao senhor de Pádua, observa que a beleza desse quadro, não compreendida pelos ignorantes, maravilhava os mestres. 

15. A discriminação entre doutos e ignorantes fez com que as artes figurativas se aproximassem da dignidade das artes liberais, depois de um longo esforço de autolegitimação que os artistas tinham levado por diante, realçando, nas suas assinaturas, o caráter erudito, não mecânico, mas intelectual, da sua forma de trabalhar.     
  
Bibliografia consultada: CASTELNUOVO, Enrico. O Artista. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 145-162. 

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