“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Os Intelectuais da Idade Média

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Cristina de Pisano (1363 - c. 1430) instrui quatro homens. Cristina, uma poetisa e filósofa italiana que viveu na França na primeira metade do século XV, ficou famosa por criticar a misoginia que predominava no meio literário de sua época. 
Fonte: Livro da Rainha, c. 1410 - c. 1414, Harley MS 4431, f. 259v.   

1. O "intelectual" medieval era um tipo de homem que «trabalhava com a palavra e com a mente», não vivia de rendimentos da terra nem era obrigado a «trabalhar com as mãos» e, de uma forma ou de outra, tinha consciência da sua «diversidade» em relação às outras categorias humanas. «Intelectual» significa algo que se considera mais precioso e elevado do que o seu contrário e designa uma qualidade indiscutivelmente positiva. O homem medieval, no entanto, utilizava outros termos para designar aqueles a quem chamamos intelectuais ("mestre", "professor", "erudito" e "douto"). "Letrado" era a categoria mais vasta e também a menos precisa; quase sempre era um clérigo, sobretudo nos primeiros séculos após o ano mil.     

2. Na Europa do século XI, os centros urbanos eram ainda pouco numerosos e pouco poderosos. Por conseguinte, a iniciativa cultural partia das abadias e das poucas catedrais capazes de organizar e ministrar o ensino. Mais tarde, de meados do século XII até ao século XIII, o ambiente no qual atuavam os intelectuais era muito diferente de centro para centro, em virtude das relações que a escola devia manter com os vários poderes políticos (em Paris, o rei de França, em Bolonha, o imperador e, em todo o lado, o papado), ao passo que o percurso doutrinal teve um desenvolvimento mais homogêneo e revelou uma tendência mais uniforme nas várias universidades. As várias disciplinas estavam organizadas segundo a antiga estrutura das sete artes liberais: o Trivium (gramática, lógica e retórica) e o Quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia). Esta «via para o saber» era considerada um preâmbulo à expressão máxima do conhecimento humano, a teologia.   

3. Na primeira metade do século XII, há uma figura que possui todos os requisitos do intelectual «forte»: Abelardo. Em todos os domínios e momentos do seu ensino, o que mais o seduzia era o método da investigação e não o assunto a investigar, era o percurso teórico da análise e não o tema. A sua enorme confiança no método de pesquisa (que era racional e, em teologia, analógico) distinguiu-o tanto como a consciência de não poder alcançar a verdade, «mas apenas a sua sombra, a verosimilhança»: «em tudo o que exponho, não pretendo revelar a verdade, mas apenas a minha opinião». 

Na segunda metade do século XII, houve uma grande modificação: a biblioteca do homem culto ampliou-se com o «regresso de Aristóteles» (por intermédio das traduções, primeiro, do árabe e, depois, do grego) e começaram a surgir os textos da ciência e da filosofia muçulmanas. 

4. Sabemos muitos sobre as universidades dos séculos XIII e XIV, mas não tanto como gostaríamos. Eram centros de trabalho ambivalentes e repletos de contradições. Boaventura (1221-1274) e de Tomás de Aquino (1225-1274) foram prudentes, mas nos seus textos está implícito o sentido que separa as duas atividades humanas (manual e intelectual). Na realidade, sabemos que se tratava de dois grupos de homens: os que trabalhavam e os que estudavam. No manuscrito medieval Carmina Burana, os estudantes deixam toda a sutileza de lado: «O iletrado é um bruto e à arte é surdo e mudo».     

5.  Em 1255, as obras de Aristóteles entraram oficialmente na faculdade das Artes de Paris. Pouco depois, o estudo dos comentários do árabe Averrois introduziu na temática da filosofia cristã um processo novo e, para a maioria, suspeito. Isso acontecia devido, principalmente, a dois motivos: a transformação das Artes, faculdade preparatória onde se ensinava o método dialético (necessário para os estudos superiores de filosofia e de direito), em faculdade realmente autônoma destinada à pesquisa filosófica, e, sobretudo, cada vez mais consciente da sua independência científica; e o caráter do sistema averroísta, que parecia estranho à tradição cristã de descendência agostiniana. Baseada na Ética a Nicômaco, nasceu uma figura de homem, na qual o filósofo era o verdadeiro nobre: «de acordo com a perfeição da natureza humana, os filósofos, que contemplam a verdade, são mais nobres do que reis e príncipes».  

6.  Um dos mais famosos intelectuais do século XIV, Guilherme de Ockham, obteve o grau de bacharel no convento franciscano de Oxford. Como bacharel, elaborou um comentário às Sentenças de Pedro Lombardo. Em 1324, quando foi convocado à sede pontifícia de Avignon para se desculpar de certas teses contidas nesse comentário, já era autor de grandes obras lógicas que consolidavam e ordenavam a doutrina nominalista surgida no século XIII. Os textos políticos foram escritos após a fuga de Avignon, no séquito do imperador Luís o Bávaro. Nesses textos, predomina a ideia da Igreja como «congregação de fiéis», privada de poder e de riqueza e preocupada apenas com os valores evangélicos; são páginas que podem, sem dúvida, ser interpretadas como uma reivindicação da autonomia do império. 

7. John Wycliff foi um intelectual que optou, como Ockham, por um compromisso político dos mais incômodos. Professor de lógica e teologia em Oxford, entrou ao serviço da Coroa inglesa e mudou de gênero literário, com as duas grandes obras sobre o poder (divino e civil). Nelas ele defendeu a autonomia do poder civil em relação ao eclesiástico, tomando efetivamente partido pelo seu soberano. Pouco depois, começou sua obra de reformador, divulgando teses sobre a pobreza de Cristo e de Sua Igreja. Para Wycliff e para Jan Huss, um pré-reformador da Boêmia, um aspecto não marginal da atividade intelectual foi a utilização da língua nacional (no caso de Huss, o checo), que se tornou sinal de consciência de uma oposição social (contra os ricos), política (contra os alemães) e religiosa (contra a Igreja romana). Assim se concluiu verdadeiramente o percurso do intelectual que, no clima turbulento de finais da Idade Média, optou pelo empenhamento político e alinhou ao lado da divergência e da reforma contra a tradição: Wycliff e Huss decidiram abandonar o latim, a língua que os definia e distinguia como intelectuais.   

8. Por força das circunstâncias e, antes do mais, pela coincidência da Igreja com a sociedade cristã, o intelectual da Idade Média tinha achado, muitas vezes, natural e obrigatório o empenhamento numa atividade de dimensão coletiva, mas a destruição de muitos ideais, a decadência do medievalismo e a crise de confiança na eficácia da razão como instrumento prático e político alteraram, a pouco e pouco, o clima. É muito difícil traçar um perfil comum e uniforme do intelectual humanista e apontar uma característica predominante, existente na maioria: a passagem do intelectual «medieval» para o intelectual «novo» parece marcada pela destruição da tipologia do intelectual.

9. Nas universidades formou-se gradualmente uma categoria (quase uma casta hereditária) de grandes professores que, nos centros universitários mais prestigiados, acrescentavam ao salário pago pelas cidades o que recebiam dos estudantes e os juros dos empréstimos feitos aos alunos necessitados, atingindo, em vários casos, uma ótima situação econômica. Por outro lado, a população estudantil preparava-se para se transformar numa elite socioeconômica. Desde o nascimento das universidades, a luta dos magistri teve uma dupla orientação: para baixo, contra os rustici, a plebe e para cima, ou seja, para a classe dos proprietários de terras, ou melhor, os nobres. No primeiro caso, a arma fora o desprezo verbal; no segundo, a criação da identidade entre virtude e nobreza.     

10. A partir de finais do século XIV, a situação tornou-se mais agitada e problemática. O panorama da cidadela intelectual torna-se mais variado: começava a surgir uma nova classe de intelectuais, formada pelos juristas e notários italianos e por novas figuras de artistas. As universidades italianas da região do Pó transformaram-se em centros de difusão da nova cultura humanística: o romano Lorenzo Valla, que viveu no meio florentino, realizou em Pisa e em Pavia as suas obras mais significativas.      

11. A par dos intelectuais leigos, como Salutati e Valla, existia uma «área eclesiástica» de humanistas ilustres: Enea Silvio Piccolomini, secretário do papa Calisto III, bispo de Trieste e de Siena, cardeal e, posteriormente, papa; Marsílio Ficino, sacerdote aos quarenta anos; Angelo Poliziano, que Lourenço o Magnífico propôs para o cardinalato. Na realidade, a relação entre a Igreja e a cultura humanística era mais estreita e complexa do que se pode pensar à primeira vista: a instituição eclesiástica era considerada por muitos intelectuais como a organização mais poderosa e, paradoxalmente, como o protetor mais tolerante (sobretudo no que dizia respeito à vida privada).    

12. Com a destruição do contexto de intelectual nos finais do século XIV, outros meios se tornaram centros de cultura, substituindo-se às universidades: o círculo, a academia, mais tarde, a biblioteca, mas, acima de tudo, a corte. Com a centralização do poder na corte, o intelectual perdeu a ligação com a vida política e com o meio social mais vasto. Assim, não foi por acaso que o latim, já substituído pela língua vulgar, voltou a ser a língua literária, bem diferenciada da língua utilizada diariamente.   

13. Cidade ou campo? Empenhamento na vida política e no trabalho ou estudo solitário, otium resguardado e sereno? Tal é a oposição nítida que, nos séculos medievais, distinguiu os intelectuais não tanto em relação aos contextos históricos e de atividade quanto aos modelos de cultura. Nesse sentido, Petrarca considerava as cidades uma Babilônia; a opção urbana era, por sua vez, justificada por motivos religiosos mas coerentes com a evolução real, por S. Boaventura, no século XIII. Para Eiximenis, franciscano que viveu em Valência, no século XIV, a cidade era um ótimo lugar onde o homem poderia se libertar da ignorância. 

14. Na atitude do intelectual a propósito de um outro tema bastante vivo e discutido, o casamento e a família, constatamos, pelo contrário, uma continuidade na tradição. No século XII, foi divulgado um verdadeiro dossiê antimatrimonial, que retomou os argumentos de S. Jerônimo (Contra Gioviniano): sobre esse dossiê, possuímos uma interessante documentação nas páginas de uma intelectual, Heloísa, amante e, depois, mulher do filósofo Abelardo. Mesmo Siger de Brabante, o «averroísta» das Artes, sustentava que «o filósofo deve tender para a condição que menos o estorve na procura da verdade». Parece que o casamento comporta «demasiadas ocupações mundanas» e, por isso, é totalmente desaconselhável para quem procura «o prazer intelectual».   

15. Para nós, a figura do intelectual medieval é, muitas vezes, como que ofuscada e empobrecida pela relação que mantinha com as suas auctoritates. Todavia, não nos esqueçamos que o significado dominante e impositivo do termo «autoridade» foi emergindo no mundo moderno: para os medievais, as auctoritates eram os autores, os textos, a biblioteca com que trabalhavam. Uma biblioteca dupla, de santos e de filósofos. E esta, como notava argutamente um estudioso do século XII, era constituída por autores que «em vida, nunca tinham estado de acordo uns com os outros e, por isso, era inútil tentar encontrar neles as mesmas posições». Por um lado, existe a enorme produção de comentários e glosas a Platão, a Aristóteles, aos evangelistas e até a pensadores modernos que surgiram, de repente, como «autoridades» (Pedro Lombardo, por exemplo). Mas, por outro lado, há a variedade dos comentários, a multiplicidade de tomadas de posição, os debates acesos, as oposições cerradas, que nos revelam um trabalho muitas vezes pessoal e, por vezes, corajoso.    
  
Bibliografia consultada: BROCCHIERI, Mariateresa Fumagalli Beonio. O Intelectual. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 125-141. 

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