“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Os Citadinos e as Cidades Medievais

domingo, 30 de setembro de 2018

Portal de Viru, Tallinn, Estônia. Tallinn é considerada a cidade medieval mais bem preservada da Europa.

1. Por volta de 1250, a rede urbana da Europa pré-industrial, salvo alguns pormenores, já estava traçada. Os resultados eram ainda modestos: um monstro — Paris —, com mais de duzentos mil habitantes; uma boa meia dúzia de metrópoles — italianas, com exceção de Gand —, com mais de cinquenta mil almas; sessenta ou setenta cidades com mais de dez mil habitantes e uma centena com mais de mil, todas diferentemente distribuídas em nebulosas mais ou menos espessas. Nas zonas em vias de desenvolvimento, um homem em três ou quatro, habitava na cidade; nas outras, apenas um em dez.  

2. A influência das cidades ultrapassou, estranhamente, a sua consistência demográfica: nelas se criaram escolas, se instalaram os mendigos, os príncipes fazem delas as suas capitais, o artesanato diversificou-se e o seu mercado alargou cada vez mais os seus horizontes. A cidade era, então, o centro do desenvolvimento de uma sociedade complexa que se adaptou ao sistema senhorial e à sua ideologia, mas que criou as suas próprias hierarquias. Mas a cidade não era considerada como algo isolado, e entre os citadinos ("camponeses encerrados entre muros", como afirmavam os nobres alemães) e os camponeses subsistia apenas uma diferença de cultura.  

3. Não é verdade que o «ar da cidade liberta», como pretende o velho ditado alemão tornado, desde há pouco tempo, verdade universal. Em 1200, Lille não aceitava nem bastardos nem foragidos. Bolonha e Assis impunham taxas mais pesadas aos que não eram livres e, por toda a parte, o senhor dispunha de um ano para recuperar o seu homem e, num grande número de burgos rurais, as condições pessoais não diferiam muito das da cidade. A partir de finais do século XII, contudo, os costumes opressivos ou humilhantes reduziram-se, aqui e ali, a vestígios; havia um direito citadino que se sobrepunha às jurisdições que lhe faziam concorrência e, mesmo nos casos em que o exercício da justiça permanecia inteiramente nas mãos dos senhores, a jurisprudência dos tribunais, constituídos pelos habitantes mais influentes, tendia para a unificação da condição de pessoas e bens.   

4. O simples fato de se residir durante muito tempo na cidade concretizava — mesmo para além dos sonhos de um trabalho seguro e de ascensão social — uma esperança fundamental: acima de tudo, viver com relativa segurança, ao abrigo das muralhas que sustinham as pessoas a cavalo e os salteadores; depois, não morrer de fome, dado que a cidade possuía reservas, capitais, uma força suficiente para levar a porto seguro os seus carregamentos de trigo; finalmente, a esperança de sobreviver nos períodos de desemprego e de miséria, graças à distribuição de rações, às migalhas da rapina, do poder e da caridade, as três irmãs que as muralhas citadinas tornaram mais fortes.       

5. Se se era pobre, habitar numa cidade medieval significava, em primeiro lugar, habitar com mais dois ou três um quarto no sótão. O artesão, naturalmente, morava em casa própria, onde possuía o seu forno, a sua cave e o seu celeiro, mas os servos e os aprendizes também lá moravam. Todo sofriam os inconvenientes de se estar fechado entre muros; ter, por vezes, falta de água potável, quando os poços estavam inquinados; viver no meio da imundície porque, durante os anos difíceis, muitas portas foram muradas e os lixos acumulados provocavam infecções e doenças endêmicas. Além disso, nesses espaços de encontro e de multidões, o contágio também podia ser mental: durante meses e anos, em situações de cerco, de guerra ou de peste, a cidade fechava-se sobre si própria e ficava sujeita aos boatos, à angústia, que se propagavam tão rapidamente como as doenças.      

6. A população, enquanto massa, era formada por células restritas, por núcleos familiares de fraca densidade. A família citadina era mais reduzida do que a família rural; a sua própria estrutura tornava-a frágil, pelo menos nas camadas médias e inferiores. A idade média do casamento das moças situava-se entre os 16/18 anos (Florença e Siena, 1450) e entre os 20/21 (Dijon, 1450). Também sabemos que os homens se casavam muito tarde: com mais de 30 anos, na Toscânia, com cerca de 25 anos, em Tours e em Dijon, numa época em que o nível de vida e as esperanças de promoção social tornavam a instalação mais fácil do que um ou dois séculos antes. A grande diferença de idade entre os cônjuges fez da figura da viúva muito mais comum na cidade do que no campo. A família citadina parece, assim, mais flexível, mais frágil e também menos duradoura do que a família campesina.     

7. A cidade, pela sua economia, pelo seu ambiente, pela sua ética, exerceu uma função destruidora dos laços familiares; as epidemias abundavam, a solidariedade enfraquecia, os danos morais ameaçavam toda a gente, a autoridade do chefe de família era posta em perigo. O citadino, frequentemente sem antepassados e desprovido de bens, não podia contar muito com os seus «amigos carnais». Os proletários, obviamente, era mais numerosos do que os empresários e os aristocratas se contavam pelos dedos de uma mão. As funções citadinas podiam ser múltiplas (e cada vez mais se diversificaram), mas o que imperava era a mentalidade mercantil, que moldava as sensibilidades e os comportamentos.   

8. Todos os cidadãos, quer quisessem quer não, tinham cuidado em administrar bem o seu dinheiro e estavam atentos aos movimentos do capital e a todos os factos respeitantes aos mercados de abastecimento ou de vendas. Por conseguinte, o camponês desenraizado, recém-instalado no interior das muralhas, descobria um mundo com horizontes longínquos e depressa se via obrigado a refletir sobre o valor do trabalho e do tempo. No mercado ou no seu lugar de recrutamento — centros da nova economia —, constatava que os preços mudavam constantemente, como as modas e as condições.

9. As distâncias entre ricos e pobres podiam, por vezes, reduzir-se, como aconteceu entre 1350 e 1450. Todavia, continuaram a ser enormes, mesmo quando o motor que faz oscilar homens e condições abrandava.  A atividade urbana multiplicou os casos de consciência em relação ao valor do trabalho, do lucro, do empréstimo, da riqueza e da pobreza. Ao mesmo tempo, a obrigação de um celibato muito prolongado para os jovens, a proximidade de mulheres disponíveis e a presença de um grande número de clérigos, recolocaram em discussão uma moral sexual inadaptada às novas condições de vida. Os principais centros de intelectuais transformaram-se, pouco a pouco, em universidades tradicionais.  

10. A história das cidades ocidentais está repleta de episódios de violência, de pavores ou de revoluções, resultantes de um caso de honra familiar, da participação nos conselhos ou das condições de trabalho. Essas lutas puseram em confronto «magnates» e «populares»; em Itália opuseram verdadeiros partidos dominados por clãs e, nas cidades flamengas, transformaram-se em verdadeiras lutas de classe, semeadas de massacres, exílios e destruições. Muitos citadinos, ainda que tivessem vivido longos e difíceis períodos de tensão, escaparam aos horrores da rebelião e da repressão; no entanto, todos tiveram de enfrentar, quase cotidianamente, uma atmosfera de violência.    

11. A embriaguez era uma desculpa frequente para a violência, mas não explica tudo, assim como não explicam as armas que todos usavam, apesar das ordens municipais. Não se dava muito crédito à justiça, que era mais temida do que apreciada e se revelava ineficaz e cara. O indivíduo defraudado recorria, portanto, à violência imediata. Para salvaguardar a sua honra; e era em nome da honra que os jovens castigavam as raparigas que, na sua opinião, os ofenderam. Nas sociedades urbanas, a honra — como a violência — é um fator largamente difundido (os poderosos são denominados «honoráveis»). Não há reputação sem honra e não há honra sem autoridade.   

12. Os que eram vizinhos no campo normalmente também eram vizinhos na cidade.  Na cidade, frequentemente plurinuclear, os antigos grupos conservavam a sua individualidade e, por vezes, também os seus costumes e os seus privilégios. Assim, para o citadino que era novo na cidade, o bairro era um espaço familiar que controlava facilmente e cujos pontos de referência eram outros tantos locais de convívio informal; a taberna, onde os homens se reuniam, o cemitério, onde crianças e adolescentes brincavam e dançavam, os descampados, verdadeiras praças de aldeia, dentre outros espaços. Até o século XIV, eram os vizinhos que guardavam o corpo do defunto e tinham a tarefa de o acompanhar ao cemitério municipal. Nas festas, sobretudo familiares, a coesão era regularmente reforçada e os vizinhos constituíam a parte privilegiada quando os eventos eram grandiosos. 

13. No entanto — e isto é fundamental —, o bairro não era tudo; era impossível passar a vida no meio dos vizinhos, mesmo que fossem amigos. As necessidades diárias obrigavam o citadino, por menos meios de que dispunha, a frequentar as ruas do comércio de luxo, a comprar um belo pedaço de carne no açougue, a provar um vinho de preço numa taberna famosa. As obrigações profissionais, entretanto, eram as que obrigavam mais a circular constantemente pela cidade. O local de trabalho e a vida familiar não eram inseparáveis. Os mais necessitados, iam quase todas as manhãs até à praça onde se efetuavam as contratações e viam-se condenados a andar de um emprego temporário para outro, sem nunca poderem conseguir uma posição estável.  

14. A cidade é um local privilegiado para os consumos alimentares, tanto em quantidade, como em qualidade e variedade. A partir do século XIV, o pão só representava uma parte, cada vez mais reduzida (cerca de 30%) das despesas em alimentação. Os citadinos eram decisivamente carnívoros, tanto por necessidade como por gosto. De qualquer modo, os níveis socioalimentares continuaram a ser múltiplos e o burguês dedicava um enorme cuidado à sua mesa; estava em causa a honra da família.  

15. A cidade era uma extraordinária escola de comportamento. A educação familiar era, evidentemente, fundamental. O citadino aprendia a comer com moderação, sem fazer demasiado ruído, a servir-se, a entrar numa igreja, a aproximar-se do altar, a dirigir-se a um estranho de acordo com a sua condição, a dar o tom devido à voz quando rezava, a não exteriorizar demasiado a sua dor e a não se comportar de uma forma inconveniente diante de uma imagem sagrada, no mercado ou na praça pública. Aprendia, sobretudo, a manifestar amizade ou amor e a mostrar-se cortês, já que existiam delicadezas citadinas diferentes da delicadeza da corte.   
  
Bibliografia consultada: ROSSIAUD, Jacques. O citadino e a vida na cidade. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 99-121. 

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