“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos O Santo Medieval

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Relicário de São Segismundo, rei dos burgúndios entre 516 e 524. Após renunciar ao arianismo, Segismundo teria fundado a abadia de Saint-Maurice de d'Agaune, no Valais.

1. As vidas de santos e as coletâneas de milagres visavam adaptar os servidores de Deus a modelos que correspondiam a categorias reconhecidas da perfeição cristã — mártires, virgens, confessores, etc. — e, para além disso, à figura de Cristo. Cada santo ou santa dignos desse nome procurou em vida, se não identificar-se com a pessoa do filho de Deus, pelo menos, aproximar-se ao máximo dessa norma absoluta. Não é, pois, de admirar, sob este ponto de vista, que se assemelhem todos e que os milagres que se lhes atribui façam pensar nos que são descritos nos textos evangélicos, desde a multiplicação dos pães até à ressurreição dos mortos.

2. Definir o culto dos santos em termos de sobrevivência em relação ao culto a semideuses ou gênios da natureza leva, fatalmente, a transformá-lo em superstição, conceito vago que, em qualquer caso, não bastaria para explicar o lugar que a devoção aos servos de Deus ocupou no universo religioso medieval. Além disso, isso acaba por menosprezar uma evolução muito profunda que marcou a cristianização no domínio das relações entre o homem e a natureza. Destruindo os bosques sagrados e substituindo o culto das fontes e das nascentes pelo culto dos santos, a Igreja, lançou-se, desde os finais da Antiguidade, num empreendimento de grande fôlego cujo objetivo era antropomorfizar o universo e submeter ao homem o mundo da natureza. 

3. O culto dos santos não foi inventado na Idade Média. Tudo surgiu com o culto dos mártires que, durante algum tempo, foram os únicos santos venerados pelos cristãos e conservaram no seio da Igreja um considerável prestígio, mesmo quando outros modelos começavam a surgir. Por terem morrido como seres humanos, seguindo Cristo e empenhados na fidelidade à sua mensagem, os mártires tiveram depois acesso à glória do paraíso e à vida eterna. O santo é um homem através do qual se estabelece um contato entre o céu e a Terra. Assim, longe de constituir a moeda de troca da nova religião ou uma concessão da elite cristã às massas pagãs para fomentar a sua conversão, o culto dos mártires enraizou-se naquilo que o cristianismo tinha de mais autêntico e original em relação às outras religiões com as quais entrava em concorrência.  

4. Segundo a hipótese do historiador inglês Peter Brown acerca da origem do culto dos mártires, esse culto seria organizado, primeiro, no plano privado, para, numa segunda fase, vir a ser adotado pelos responsáveis das igrejas locais, preocupados com essas devoções particulares que iam proliferando em torno das sepulturas e que podiam pôr em perigo a unidade da comunidade cristã. Sem dúvida, os bispos desempenharam um grande papel na propagação do culto dos mártires, ao qual atribuíram uma função essencialmente eclesiástica, colocando-o sob o seu controle. Ao tornar-se patronus celeste da catedral e da cidade, o santo reforçava o prestígio do seu representante e, em breve, seu sucessor: o bispo.      

5. Para além disso, as homenagens cada vez maiores de que as relíquias foram objeto, por ocasião das festas do calendário e das transladações, ofereceram à comunidade urbana a oportunidade de mostrar a sua unidade e de integrar os grupos marginais, camponeses ou bárbaros. Pela via indireta das procissões, teciam-se novos laços entre a cidade e os suburbia, onde se encontravam os cemitérios, e com os martyria, pequenos santuários que albergavam as relíquias dos mártires. Até finais da Idade Média, os ricos, por sua vez, tinham por obrigação construir igrejas que recebiam as relíquias dos servos de Deus, que passaram das sepulturas para os altares.

6. As influências ascéticas vindas do Egito e da Síria penetraram no Ocidente, na segunda metade do século IV e aí obtiveram um sucesso que se refletiu na mais importante obra hagiográfica desse período, a Vita Martini (a vida de S. Martinho de Tours, morto em 397), escrita por Sulpício Severo, nos inícios do século V. Todavia, enquanto o santo da Antiguidade tardia era um adepto da vita passiva que buscava a perfeição na renúncia ao mundo, o Ocidente da alta Idade Média caracterizou-se, sobretudo, por figuras de chefes religiosos e de fundadores profundamente empenhados na vida ativa. O santo tornou-se, então, um recurso para os deserdados e para as vítimas de injustiças.

7. Para caracterizar o período que medeia entre os finais do século VI e os finais do século VIII, utilizou-se por vezes o termo «hagiocracia», tantos foram os santos dessa época que estiveram ligados, por vezes muito estreitamente, ao poder, como Santo Elói, em França, ou, em Roma, S. Gregório Magno, que ocupou o lugar da vacilante autoridade imperial e se encarregou da defesa e administração das cidades. A crença, que então se afirmou, de que um santo só podia ser nobre e de que um nobre teria maior probabilidade de vir a ser santo do que qualquer outro homem, não era, pelo menos no início, uma superstrutura ideológica imposta pelas classes dominantes ou pela Igreja; tinha raízes na convicção, comum ao cristianismo da Antiguidade tardia e ao paganismo germânico e partilhada tanto pelas classes dominantes como pelas classes dominadas, de que a perfeição moral e espiritual dificilmente se podia desenvolver fora de uma linhagem ilustre. 

8. Pela sagração, o rei distinguia-se da aristocracia leiga e colocava-se ao lado dos oratores, transformando-se numa espécie de «bispo externo» cuja ação a Igreja se esforçava por orientar e moralizar. Em torno da função real desenvolveu-se, tanto em Inglaterra como no continente, toda uma ideologia do rex justus, muito influenciada pelo Velho Testamento. A expressão mais acabada dessa ideologia consta na Vita do capeto Roberto o Pio (morto em 1031), escrita pelo monge Helgand de Fleury que realçou o aspecto litúrgico do rei sacerdote. Embora não receba a qualificação de santo, Roberto é apresentado nesse texto como justamente famoso e intercessor privilegiado nas relações dos homens com Deus, que lhe concedera o privilégio de curar milagrosamente as escrófulas apenas pelo toque das suas reais mãos. Assim começou na França a tradição dos reis taumaturgos, tão bem analisada por M. Bloch. 

9. As personagens que mais atraíram a atenção dos seus contemporâneos foram os reformadores das ordens monásticas, como Gérard de Brogne (morto em 959), que restaurou o mosteiro com o mesmo nome, no Hainaut, e, sobretudo, os grandes abades de Cluny, Santo Odilon (morto em 1048) e Santo Hugo (morto em 1108), sob cuja direção a congregação da Borgonha atingiu o seu apogeu. Um dos principais factores do extraordinário sucesso que o modelo monástico obteve nos primeiros tempos do feudalismo reside no fato de ele corresponder perfeitamente à ideia que os homens daquele tempo tinham da santidade: para eles, era algo que dizia respeito a «profissionais». Por isso, as massas, sentindo-se a priori desqualificadas na procura da santidade, descarregavam sobre eles a tarefa de garantirem essa função de mediadores entre o céu e a Terra, sem a qual, para os homens da época, nenhuma sociedade podia sobreviver.    

10. Se, no Ocidente, o número de santos aumentou sensivelmente, não foi apenas porque os homens e as mulheres dos séculos XII e XIII tinham mais anseios de perfeição do que os seus antecessores. A nova mentalidade pôs a tônica na necessidade de um empenho pessoal do indivíduo; por conseguinte, a santificação transformou-se numa aventura pessoal e numa necessidade interior, sentida de forma diferente de acordo com as pessoas e os lugares, mas que em todos os casos obedecia a um impulso amoroso. Assim, pregadores itinerantes como S. João Gualberto, na Itália (morto em 1073) ou Robert d’Arbrissel, na França (morto em 1116), defenderam a vida na renúncia e na ascese, dedicação ao serviço dos pobres e dos leprosos, reabilitação das prostitutas. Os pobres voluntários passavam a ser exaltados.    

11. Esta evolução para uma espiritualização crescente da noção de santidade acentuou-se com a evolução do processo de canonização que passou a conceder ao papa o direito exclusivo de decidir, em última instância, a tal propósito. Isso se consumou no início do século XIII. A alteração, por parte da Santa Sé, das causas que conduziam à santificação foi acompanhada pela instituição de um controle sobre as virtudes e os milagres dos servidores de Deus, que eram submetidos a um exame atento pela cúria depois de ouvido o testemunho de todos os que deles tinham tido conhecimento ou que tinham beneficiado com a sua intercessão, no quadro de um processo de canonização. A partir daí, haverá no Ocidente duas espécies de santos: aqueles que, tendo sido aprovados e reconhecidos pelo papa, poderão ser objeto de um culto litúrgico e os outros, restritos a uma veneração local.    

12. A partir da segunda metade do século XIII, o impulso místico impregnou a Germânia, Flandres e Itália, antes de se estender a toda a Cristandade. Nesse contexto, surgiram novas formas de santidade, à margem de uma instituição cada vez menos capaz de corresponder às aspirações religiosas dos fiéis. Por volta de 1300, um crescente profetismo visionário viu-se favorecido pelas grandes crises que se seguiram ao Grande Cisma de 1378. O aspecto mais notável desse movimento foi o papel exercido pelas mulheres, sobretudo leigas. Excluídas do ministério da palavra no seio da Igreja, apoderam-se dele, alegando uma eleição divina. Foi por ocasião do processo de canonização de Santa Clara de Montefalco, na Úmbria, que os fenômenos paramísticos e as visões foram, pela primeira vez, sujeitos a um exame especial pela Igreja de Roma. Se nada se concluiu foi, certamente, devido — para além de todos os motivos inerentes a cada caso particular — à desconfiança que os clérigos sentiam em relação a essas mulheres que, ao afirmarem que a união com Deus era possível na Terra, podiam vir a desapossá-los da sua função de intermediários necessários entre os homens e o Além. O aspecto profético da santidade feminina acentuou-se no século XIV: por exemplo, Santa Brígida da Suécia (morta em 1373), a partir de 1343, começou a ter e a comunicar revelações referentes à urgência do regresso do papado a Roma, à Reforma da Igreja e à conversão dos infiéis. Santa Catarina de Siena (1380) perseguiu, fervorosamente, os mesmos objetivos.  

13. A partir de finais do século XIV, mas sobretudo no século XV, houve uma reconquista da opinião pública por parte dos elementos mais dinâmicos do clero. Quando se examina a lista dos principais santos de finais da Idade Média, é de se surpreender o lugar que nela ocupam os grandes pregadores da época: Vincent Ferrier (morto em 1419), Bemardino de Siena (morto em 1444), Giovanni de Capestrano (morto em 1456), Giacomo delle Marche (morto em 1476). Esses religiosos distinguiam-se claramente do clero a que os fiéis estavam habituados: iam de cidade em cidade, viviam na maior pobreza, mas tinham tempo para se fazer conhecer pelos seus auditores. O desejo de conversão que animava esses santos ia para além da moral individual: conscientes de que viviam num mundo onde os costumes eram pouco influenciados pela mensagem cristã, esforçavam-se por introduzir o Evangelho na vida social.  

14. Para a maioria dos homens da Idade Média, sobretudo antes do século XIII, um santo era, acima de tudo, um morto ilustre cuja história não se conhece exatamente, mas de quem se sabe que, em vida, sofreu perseguições e tormentos por amor a Deus. Daí, a importância do seu corpo. Na Idade Média, a santidade era, sobretudo, uma linguagem do corpo, um discurso da «carne impassível» (P. Camporesi).

15. A partir do século XIII, o desejo de arranjar um patrono aumentou, estendendo-se às comunidades profanas e a mais pequena cidade ou a mais modesta confraria passaram a desejar ter um santo patrono próprio. A procura desenfreada de um patrono por parte de indivíduos e de grupos levou ao desenvolvimento de duas formas particulares de devoção: o culto cívico e o culto dinástico. Aquele era praticado, sobretudo, nas zonas em que as cidades usufruíam de uma autonomia política real, ao passo que este se manifestava nos países de tradição monárquica, onde a coesão nacional era forte. À medida que se ia desenvolvendo uma forte consciência nacional baseada no sentimento monárquico, o patrono da família real tendia a transformar-se no patrono de toda a nação. No fim da Idade Média, o culto dos santos se integrou tão profundamente na vida social que passou a ser um dos seus elementos essenciais, correndo o risco de se vulgarizar.   
  
Bibliografia consultada: VAUCHEZ, André. In: O Santo. LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 211-230.

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