“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Passado e passados

sábado, 7 de abril de 2012


"Nada é mais antigo que o passado recente." Assim se pronunciou o grande Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo, jornalista e escritor brasileiro. A frase - contraditória à primeira vista - serve-nos de munição para aniquilarmos a terminologia mal forjada de uma corrente da historiografia: a dita "História do Tempo Presente." Não existe História do Tempo Presente, assim como não existe História do Futuro. O presente é um brevíssimo lapso temporal, fugidio e inacabado. O tempo no qual escrevia a frase anterior está já no passado, e o passado, como sabemos, é um dado imutável. Por mais que se tente, por mais queira modificá-lo, o máximo que se conseguirá é produzir versões diferentes do que ele foi. Versões essas que nada mais são que mentira, muitas vezes intoxicadas por ideologias e preconceitos.

Já em seus primórdios a História dedicava-se aos acontecimentos mais recentes, como atesta as obras de Heródoto (485? a.C. - 420 a.C.), Tucídides (entre 460-455 a.C. - c. 400 a.C.) e Políbio (c. 210/200 – c. 127 a.C.). Pensava-se que o passado mais remoto seria impossível de ser estudado. A tradição oral, os lapsos, as perdas e os esquecimentos tornariam-no irreconhecível. Ainda hoje há quem pense assim quando, na verdade, a análise dos fatos recentes pode ser ainda mais complicada. Ora, ao observarmos a atualidade somos estudiosos e ao mesmo tempo objeto, além de que o excesso de informação coloca-nos um grande desafio. Não usufruimos da distância temporal e emocional tão oportuna que temos, por exemplo, ao estudarmos a História da Antiguidade.

No meu quase um quarto de século de vida (completarei em 13/07), testemunhei grandes transformações. Sempre apreciei a atualidade internacional e sobretudo nestes últimos anos ela tem sido especialmente rica. Ainda não possuía consciência política quando caiu o muro de Berlim (1989) e a moribunda URSS (nata de 1991). A transição do antigo bloco comunista para o mundo capitalista e democrático (transição essa longe de sua conclusão) é guardada em minha memória sobretudo pela figura espalhafatosa de Bóris Yeltsin (1931-2007). Apesar de ser miúdo, lembro-me perfeitamente das imagens da Guerra do Golfo (1991), quando os EUA e as força de sua coligação derrotaram de forma avassaladora o Iraque do tresloucado Saddam Husseim (1937-2006), executado após a Guerra do Iraque (2003). Esta foi um bizarro ato da administração de Bush filho, justificado dentro do contexto da Guerra ao Terror, desencadeada após aos atentados terroristas em 2001, quando quase três mil vidas foram ceifadas em solo americano, e as torres gêmeas do World Trade Center foram abaixo, bem como uma parte do Pentágono, atingindo em cheio o orgulho ianque. No Brasil, os anos 90 foram marcados pelas primeiras eleições diretas da redemocratização, o impeachment de Collor, a estabilização e abertura da economia pelos presidentes Itamar Franco e, principalmente, Fernando Henrique Cardoso (1994-2002).

Em 2002 eu já estudava no internato, iniciando uma importante fase de minha vida. Naquele ano a seleção brasileira de futebol venceu a Copa do Mundo do Japão e da Coreia e sagrou-se pentacampeã. No segundo semestre o PSDB perdeu as elições no 2º turno e Lula, do PT, realizou seu sonho de se tornar presidente. Embora com o governo mergulhado em escândalos de corrupção, reelegeu-se em 2006, permanecendo no poder até 2010. Ele conseguiu ainda fazer a sucessora, a primeira mulher a governar o Brasil, no poder até hoje.

Desde a "era FHC" o país vem alcançando mais projeção internacional, embora as diretrizes do PT sejam um tanto atrapalhadas às vezes (como apoiar as ditaduras dos aiatolás, no Irão, e dos irmãos Castro, em Cuba). O país passou a acalentar pretensões de ter um assento permanente no obsoleto Conselho de Segurança da ONU. Ao lado de Rússia, Índia, China e agora África do Sul, forma o grupo dos países emergentes (BRICs).

Em todo o mundo, grandes problemas econômicos, políticos, sociais e ambientais continuaram a receber destaque. Novas doenças e pestes nos assombraram com alguma regularidade. Golpes de Estado, guerras civis, movimentos separatistas e emergência de novas nações em um espectro político para lá de confuso também pipocaram. Como se tudo isso não bastasse, uma crise econômica mundial estourou em 2008. Os culpados, o 1%, como acabaram denominados pelos movimentos de ocupação que surgiram para contestar o sistema. O 1% nada mais seria que os especuladores, aqueles que movimentam o capital financeiro sem produzir nada, arrastando economias de países inteiros para a crise devido aos seus malabarismos financeiros irresponsáveis. Nesse mundo atribulado, uma dose de esperança: Barack Hussein Obama II, o primeiro negro a se tornar presidente dos Estados Unidos da América. Tomou posse em 20/01/2009, e logo viria a se revelar uma decepção. Embora tenha vencido o nobel da paz no mesmo ano, umas das poucas coisas que fez nesse sentido foi retirar as tropas americanas do Iraque, onde a situação já era insustentável. Não fechou a infame prisão de Guantánamo e manteve a ocupação do Afeganistão. Foi pego de surpresa com a "Primavera árabe", um movimento popular que passou a exigir a renúncia dos ditadores no norte da África e no Médio Oriente.

Entre o início da crise e estes acontecimentos que acabei de descrever, conclui a licenciatura e o bacharelado, a seguir comecei a lecionar, tomei posse em um concurso e pedi exoneração pouco depois a fim de embarcar rumo ao mestrado na Universidade de Lisboa (2010). Ao chegar no aeroporto, ainda com poucas informações sobre o que me aguardava, um jornal esquecido em um assento deu-me as boas-vindas. A manchete dizia o seguinte: "O Primeiro-Ministro prevê um ano terrível para os portugueses". Considerando que os políticos por norma sempre tentam esconder ou minimizar uma catástrofe, vi que estava a entrar num mundo caótico. Poucos dias depois a República Portuguesa comemorava 100 anos de existência (05/10/2010), sem grandes razões para celebrar. Nos meses que se seguiram o governo finalmente cedeu e suplicou um pacote de ajuda financeira junto ao famigerado FMI, sendo obrigado a acatar uma série de exigências que quase sufocaria as vidas dos trabalhadores. A Espanha bate recordes de desemprego, e na Itália a situação não é das melhores (tem pedido "socorro" para que seus antigos e belos monumentos, como o Coliseu, possam ser preservados). Na Grécia a situação é gravíssima, sendo que há alguns dias um aposentado suicidou-se perto do Parlamento por recusar-se "a buscar comida no lixo." É a crise (quiçá o ocaso?) do Velho Mundo.

No presente, a comunidade internacional se incomoda com as pretensões nucleares do Irão e da Coreia do Norte (na 3ª geração de ditadores comunistas endeusados), além dos massacres sem interrupção na Síria. Um golpe de Estado e a instalação de uma junta militar no Mali revelou, mais uma vez, como boa parte do continente africano está longe de alcançar a maturidade institucional e democrática.

Assim segue o mundo, com velhos e novos problemas. Mas, no fundo, em essência a humanidade continua a mesma. Como dizia o Pregador (Salomão?): "Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: Veja: isto é novo, ela já existia nos tempos passados." Eclesiastes 1, 10.


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Imagem: A Persistência da Memória (1931), 24cm x 33 cm, de Salvador Dalí.

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