“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos Os Cristãos Primitivos

domingo, 12 de maio de 2019

Festa de Amor Ágape ("Amor de Deus"), catacumba de Marcelino e Pedro, Roma.

1. A comunidade dos seguidores de Jesus de Nazaré multiplicou-se em tempo recorde a partir da Galileia. Já no século I, o movimento alcançou a Síria litorânea, penetrou na Ásia Menor, espalhou-se no delta do rio Nilo e, finalmente, no Mediterrâneo ocidental. Ao longo do século II, formou base em Edessa, chegou à Capadócia e à Armênia, atravessou a África do Norte, avançou pelo interior do Egito e alcançou a Gália e a Espanha. 

2. O que explica tal expansão? Para alguns, o fascínio exercido pelo testemunho dos primeiros mártires. No entanto, nem de longe o martírio teve o impacto histórico sobre a evolução do cristianismo que lhe foi atribuído pela literatura posterior. 
  
3. Para outros, a santidade e as virtudes heroicas dos primeiros cristãos explica a extraordinária expansão do movimento. Todavia, esse ponto também deve ter sido superestimado. A traição de Judas Iscariotes mostra a complexidade e a imprevisibilidade do comportamento humano. No início do século II, Paulo e Hermas declararam que não eram "santos".    

4. O impulso evangelizador dos cristãos seria então a explicação? Ora, o primeiro "missionário" cristão documentado foi Gregório, o Taumaturgo, evangelizador "profissional" entre camponeses no Ponto Euxino (c. 380). Para Celso (anos 170), os cristãos eram tímidos. Assim, provavelmente a evangelização no foi o principal fator que explica a expansão do cristianismo pela bacia do Mediterrâneo na Antiguidade Tardia.   

5. O que explica o primeiro e decisivo impulso do cristianismo na sociedade foi a formação de uma rede associativa que cobria uma área social completamente negligenciada pela administração romana. Antes do advento do cristianismo, pobres, viúvas, órfãos e doentes tinham poucas chances de contar com a solidariedade da comunidade na qual viviam.     

6. Os cristãos conviviam com categorias sociais como soldados, gladiadores e escravos em geral. Ora, esses três grupos - soldados, gladiadores e escravos - estavam expostos ao suicídio. O suicídio de militares foi silenciado como segredo de Estado, mas deve ter sido frequente - aqueles que tentavam tirar a própria vida nessa carreira eram expulsos do exército. Os gladiadores normalmente eram escravos e, em tal condição, representariam um prejuízo aos seus donos caso buscassem o suicídio. É desnecessário dizer o quão difícil era a vida dos escravos e, nesse sentido, o suicídio lhes representava um último recurso.       

7. Um romano, para ser bom, precisava possuir um patrimônio e, de certa forma, ser um benfeitor. Mas, para pelo menos 80% da população do Império Romano, a vida era quase sempre inferior a 25 anos e apenas 4% dos homens alcançavam os 50 anos. Foi justamente essa vasta massa de pobres que foi atraída pela pregação dos cristãos.   

8. Aproveitando o direito à associação autônoma (collegium) conferida pela lei a homens que exercessem a mesma profissão ou venerassem o mesmo deus, os cristãos enquadravam-se de alguma forma na legislação romana. As autoridades romanas desconfiavam, mas não reprimiam legalmente essas agremiações.  

9. As mulheres não tinham acesso a esses clubes, os collegia. Segundo Cipriano (séc. III), a sepultura e o banquete eram os dois objetivos básicos da confraria. Os collegia "eram corpos fundamentalmente democráticos no seio de uma sociedade patriarcal e piramidal." Os cristãos inovaram em seus collegia ao organizarem e até encorajarem a criação de confrarias femininas. Outra novidade é que os banquetes cristãos eram simples e fraternos, realizados aos domingos.         

10. A aristocracia romana não tolerava a ascensão social do liberto, cuja única vantagem de sua condição era certa independência financeira. Entre os libertos cristãos, a vida decorria mais modestamente; eles passavam a morar num dos bairros onde atuavam as comunidades cristãs, nos terrenos baixos e malcheirosos próximos do Tibre.  

11. No mundo romano, ninguém contestava a escravidão. Para o apóstolo Paulo, a boa conduta consistia em se comportar como "bom senhor" ou "bom escravo". Não é possível mudar uma sociedade tão solidamente ancorada nas mentalidades. Autores como Clemente, Tertuliano e Minúcio Félix de certa forma democratizaram as ideias estoicas, e assim o pobre foi encontrando gradualmente um lugar na moral cristã. 

12. O êxito do cristianismo ao longo do século II muito teve a ver com a luta pela cidadania. Em Roma, o bispo cristão era o hospedeiro por excelência. Em certos comunidades existia um serviço regular de alimentação e hospedagem para necessitados, viúvas e órfãos, bem como uma caixa de ajuda mútua para casos de urgência. O enterro era outro serviço bem organizado. Existia um serviço de visita aos presos, vítimas de perseguição, e em certos casos um amparo psicológico para suicidas. Esse foi o segredo do sucesso do cristianismo. 

13. As "sinagogas dissidentes" dos cristãos abriam as portas para todos. Mantinham grande coesão interna, baseando-se sobretudo nos quadros familiares. Os Atos de Pedro e os Atos de Paulo, documentos de fins do século II, são reveladores nesse sentido.     

14. Em meados do século IV, o imperador Juliano ordenou que as autoridades locais criassem centros de assistência social e hospedagem como forma de deter a "avassaladora penetração do cristianismo em meios populares". As comunidades cristãs davam um sentimento de pertença, de dignidade e de identidade social às pessoas sem cidadania romana, os "estrangeiros" ou paroikoi.   
  
15. Os cristãos exerciam sua caridade em relação a todos, e especialmente as viúvas, que eram numerosas na sociedade romana. Eles também promoviam a "redenção dos cativos", que consistia em pagar o resgate de pessoas capturadas e que seriam reduzidas à escravidão. A caridade cristã também era perceptível por ocasião de epidemias e ondas de fome.    
  
Bibliografia consultada: HOORNAERT, Eduardo. As comunidades cristãs dos primeiros séculos. In: PINSKY, Carla B. & PINSKY, Jaime (orgs.). História da Cidadania. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 81-95.

0 comentários:

Enviar um comentário