“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Orações pelos mortos

domingo, 7 de julho de 2024

O mais importante é que os cristãos adquiriram, parece que muito cedo, o hábito de rezar pelos seus mortos. Em relação à Antiguidade esta atitude era uma novidade. Segundo uma fórmula feliz de Salomon Reinach, "os pagãos pediam aos mortos, enquanto os cristãos pedem pelos mortos" É claro que, como os fenômenos de crenças e mentalidades não aparecem subitamente, a intervenção dos vivos a favor dos seus mortos que sofrem no além encontra-se em certos meios pagãos, sobretudo ao nível popular. Tal foi o caso do orfismo:

Orfeu diz: Os homens... praticam ações sagradas para obter a salvação dos antepassados ímpios; tu, que tens poder sobre eles... tu liberta-los das grandes penas e da imensa tortura.

Estas práticas desenvolveram-se cerca da era cristã e mais uma vez se trata de um fenômeno de época, particularmente sensível no Egito, local de encontro por excelência das nações e das religiões. Diodoro da Sicília, que viajou para lá cerca de 50 a.C., ficou espantado com os costumes fúnebres dos egípcios: "No momento em que a caixa que contém o morto é colocada sobre a barca, os sobreviventes invocam os deuses dos infernos e suplicam-lhes que o admitam na morada reservada aos homens piedosos. A multidão acrescenta isto as suas aclamações acompanhadas de votos por que o defunto goze no Hades da vida eterna, em companhia dos bons."

Deve-se, sem dúvida, recolocar neste contexto a passagem do Segundo Livro dos Macabeus feito por um judeu de Alexandria durante o meio século que precedeu a viagem de Diodoro. Testemunha ele da ausência do hábito de rezar pelos mortos na época de Judas Macabeu (cerca de 170 a.C.), cujas inovações surpreendem, e da realidade desta prática entre certos judeus um século depois. Devemos, sem dúvida, ligar a crenças deste gênero o estranho costume de que fala S. Paulo em I Coríntios (XV, 29-30) onde afirma a realidade da ressurreição: "Se assim não fosse, o que ganhariam aqueles que se fazem batizar em vez dos mortos? Se os mortos não ressuscitam mesmo, porquê então fazerem-se batizar em vez deles?" Este batismo para os mortos não era o batismo cristão mas o batismo que recebiam os prosélitos gregos que se convertessem ao judaísmo.

O enorme processo epigráfico e litúrgico sobre as orações pelos mortos foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da crença cristã no Purgatório. Estas interpretações parecem-me abusivas. As graças que se suplica a Deus sejam concedidas aos mortos invocam essencialmente a bem-aventurança paradisíaca, em todo o caso um estado definido pela paz (pax) e pela luz (lux). É preciso esperar pelo fim do século V (ou princípio do século VI) para encontrar uma inscrição que fale da redenção da alma de um defunto. Trata-se de uma inscrição galo-romana de Briord, cujo epitáfio contém a fórmula pro redemptionem animae suae. Por outro lado, nestas inscrições e nestas preces, não se trata de um lugar de redenção ou de espera que não o tradicional segundo o Evangelho, o "seio de Abraão". Mas é essencial para a constituição do terreno onde se desenvolverá mais tarde a crença no Purgatório que os vivos se preocupem com a sorte dos dos mortos, que para além da sepultura mantenham com eles laços que não sejam os da invocação da proteção dos defuntos mas da utilidade das preces feitas em sua intenção.     

LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Tradução de Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Estampa, 1993, p.64-65. 

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