“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#Minorias Judeus

domingo, 24 de maio de 2015

Um rico judeu (com um chapéu pontudo - o Judenhut) empresta moedas de ouro a um cristão. Note a estigmatização do judeu, visível, por exemplo, em características como o seu proeminente e demoníaco nariz adunco, além da capa escarlate. O cristão é representado numa postura que denota comiseração. Saiba mais Aqui.

Representado como deicida, usurário e aliado do demônio, a sina do judeu era errar pelo mundo, sendo escorraçado, humilhado e dominado. No Baixo Império Romano (235-476), era forte a crença de que o retorno de Cristo dependia da conversão dos judeus; assim, as legislações do período fixaram restrições aos judeus e ao judaísmo. Além disso, data dessa época as acusações de devassidão contra os judeus. João Crisóstomo (c. 347-407) havia denunciado as práticas "obscenas" dos judeus e equiparando as sinagogas a bordéis. 

As restrições legais chegaram a ponto de vetar aos judeus a posse de possuir escravos cristãos ou de converter escravos pagãos à sua crença. Isso praticamente alijou-os da agricultura. Desta maneira, na Alta Idade Média (séculos V-X) os judeus foram forçados a exercer o comércio. Apesar de tudo, em boa parte do Ocidente bárbaro, nessa época, os judeus eram valorizados como mercadores, médicos, diplomatas e soldados. Muitos governantes bárbaros parecem ter tratado os judeus como um dentre povos com suas leis específicas que formavam seus domínios. Os reis carolíngios, em particular, incentivaram a imigração e a multiplicação das comunidades judaicas. 

Posteriormente, na Baixa Idade Média (séculos X-XV), a sorte dos judeus mudou drasticamente. Com a passagem do milênio, a Cristandade entrou numa fase expansionista e, em sua nova disposição de entusiasmo religioso, buscou cristianizar o mundo, internamente pela reforma e externamente através das Cruzadas. Exércitos não-oficiais de pobres e grupos independentes de cavaleiros passaram a mergulhar suas espadas em sangue "infiel" sem ter que esperar chegar à Terra Santa. Como os pogroms se multiplicaram nessa época, viajar para se dedicar ao comércio tornou-se impensável. Além disso, as guildas cristãs excluíram os judeus do comércio e do artesanato. 

O Feudalismo (fins do século X - século XIII) afastou os judeus definitivamente do trabalho da terra, ao determinar que os juramentos de servidão e vassalagem fossem feitos dentro de fórmulas cristãs. Para completar, nessa época ocorreu a monetarização da economia, aumentando a busca pelo capital financeiro. Restou, portanto, aos "filhos de Abraão" a função economicamente necessária e teologicamente "antinatural" - a atividade de empréstimo de dinheiro a juros (usura). Tal atividade podia ser desenvolvida na segurança (em termos) dos seus guetos.

O pecado da usura, previsto pela Bíblia, era considerado contrário às leis da natureza e de Deus. Os líderes judaicos e os rabinos permitiram a prática porque a exclusão dos judeus da agricultura, do comércio e do artesanato não lhes deixou outra opção. Por sua vez, o clero viu nessa atividade um ato demoníaco. Este problema, somado às diferenças religiosas, às restrições legais e à discriminação determinada pela Igreja acabaram por marginalizar e estigmatizar o grupo.

Desta forma, a partir do século XI desenvolveram-se vários mitos, a começar pela crescente associação dos judeus ao diabo. No século XII, surgiu a mais notória e mais danosa das acusações contra os judeus - os assassinatos rituais. Em 1144, depois que um menino, Guilherme de Norwich, desapareceu e depois foi encontrado morto, um judeu convertido disse que os judeus eram obrigados a crucificar uma criança cristã anualmente, na Páscoa judaica. Histórias de assassinatos de crianças cristãs por judeus tornaram-se, então, uma ocorrência sistemática. Apesar de não haver julgamento, as histórias tinham credibilidade, tornando-se parte do folclore popular e sendo, geralmente, acompanhadas de violência contra os judeus. Aproximadamente na mesma época, o elemento do sangue foi introduzido: a ideia de que o sangue de crianças cristãs era necessário para as cerimônias judaicas. 

A profanação das hóstias, mito disseminado após o estabelecimento da doutrina da transubstanciação pelo Quarto Concílio Lateranense de 1215, frequentemente era um sacrilégio forjado por cristãos para fomentar o conflito. É interessante notar que esse mesmo concílio impôs roupas distintivas aos judeus, ampliando a segregação contra o grupo e o equiparando às prostitutas, mouros, leprosos e hereges arrependidos. O quadro de discriminação se completava com a associação do shabat (descanso semanal judaico) com o Sabbat (celebração satânica e associada às bruxas) e a eterna aliança do diabo com os judeus.

Ninguém sabe o número de bruxas que foram queimadas na Europa, entre os séculos XIV e XVII, mas seguramente é uma cifra muito elevada. Nessa mesma época, houve uma evolução do Diabo cristão, que de princípio moral do Mal tornou-se um personagem de forte individualidade, cornudo e peludo, que infesta a Terra. A transformação ocorreu na mesma época em que se cristalizou e se difundiu através da Cristandade o poderoso conceito do judeu infame e malfazejo.

Examinemos as legendas que, na mesma época, circularam sobre os judeus. Tratam-se de legendas que despontavam aqui e ali nos séculos anteriores, mas que nessa época adquiriram uma difusão universal. Ora, elas reuniam simultaneamente em suas pessoas os novos atributos do Diabo (cornudo, com garras, rabo, barba de bode e exalando um forte odor) e os da bruxa (impureza, fraqueza e tentação). Os judeus são cornudos, representados com uma cauda, uma barba de bode e os odores mefíticos que se lhes atribui (o faetor judaicus) são tão violentos que persistiram ao longo dos séculos. Desde ponto de vista, os judeus são hipervirilizados, mas, ao mesmo tempo, nascem desfigurados e são fracos e doentios (por exemplo, tanto homens quanto mulheres padeceriam com menstruações). Às vezes, os males de que sofrem os judeus são diferentes segundo suas tribos.   

Ainda que as autoridades civis e eclesiásticas buscassem denunciar tais difamações, algumas dessas crenças absurdas tiveram uma "longa duração", sendo que alguns pregadores "apocalípticos" do período contribuíram para acirrar o ódio antijudaico (leia: Os "Flagelos" dos Judeus). Dentre os mitos duradouros, destaca-se, por exemplo, o do envenenamento dos poços, bastante difundido durante a Peste Negra do século XIV. Tal mito se difundiu em obras antissemitas do século XX, como Os Protocolos dos Sábios de Sião. Já a segregação social imposta pela Igreja e autoridades civis foi retomada pelos nazistas, na Lei para a Proteção do Sangue e da Honra Alemães, de 15 de setembro de 1935. 

Bibliografia consultada:
POLIAKOV, Léon. De Cristo aos Judeus de Corte. Tradução de Jair Korn e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva: 1979.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação - as minorias na Idade Média. Tradução de Marco Antônio Esteves da Rocha e Francisco José Silva Gomes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

Saiba mais sobre A demonização e a perseguição da Igreja contra os judeus

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