“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Fuga da Beleza

quinta-feira, 23 de maio de 2019

"Uma das obras mais ternas de Mozart é a ópera cômica O Rapto do Serralho. Ela nos conta a história de Konstanze, mulher que fora raptada e separada de Belmonte, seu noivo, e agora é levada para o harém do paxá Selim. Após várias intrigas, Belmonte a resgata, sendo para tanto auxiliado pela clemência do paxá, que respeita a castidade de Konstanze e se recusa a possuí-la à força. Esse roteiro implausível permite que Mozart expresse a convicção iluminista de que a caridade é uma virtude universal, sendo tão real no império muçulmano dos turcos quanto no império cristão do esclarecido José II (este mesmo um homem pouco cristão). O amor fiel de Belmonte e Konstanze  inspira a clemência do paxá. E, ainda que a visão inocente de Mozart careça de muitos fundamentos históricos, sua crença na realidade do amor desinteressado é expressa a todo momento e sustentada pela música. O Rapto do Serralho defende uma ideia moral, e suas melodias partilham da beleza dessa ideia e apresentam convincentemente àquele que as escuta. 

Na montagem de O Rapto do Serralho realizada em 2004 na Komische Oper, em Berlim [foto acima], o produtor Calixto Bieito decidiu ambientar a ópera num bordel berlinense, fazendo de Selim seu cafetão e de Konstanze uma de suas prostitutas. Sobre o palco, casais copulavam até mesmo durante as músicas mais delicadas, e toda desculpa para a violência, carente ou não de clímax sexual, era aproveitada. Em determinado momento, uma prostituta passou a ser torturada gratuitamente, tendo seus mamilos cortados de maneira cruel e realista antes de seu assassinato. A letra e as músicas falavam de amor e compaixão, mas sua mensagem era suprimida pelas cenas de homicídio e de sexo narcisista que, estrondosamente orquestradas, tomavam conta do palco. 

Esse é um dos exemplos de um fenômeno que temos visto em todo aspecto da cultura contemporânea. Os artistas, os diretores e os músicos, tal como todos aqueles que se veem ligados às artes, não estão somente fugindo da beleza: eles também desejam maculá-la em atos de iconoclastia estética. Sempre que a beleza se encontra à espreita, o desejo de suprimir seu encanto pode intervir, a fim de que sua voz distante não seja ouvida por trás das cenas de dessacralização. A beleza, afinal, nos exorta a algo: ela nos convida a renunciar ao nosso narcisismo e a contemplar com reverência o mundo."     

SCRUTON, Roger. Beleza. Tradução de Hugo Langone. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 182-184.

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