“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Personificação dos Continentes

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Afresco dos quatro continentes, seção sobre a Ásia. Teto do salão da Escadaria na Residência de Würzburg, 1752-3, de Giambattista Tiepolo.

Durante o século XVII, a tradição de associar mapas do mundo (continentes ou regiões) a imagens das cidades mais importantes e dos povos mais "típicos", em geral representadas em pares nas margens, enraizou-se no trabalho dos principais cartógrafos neerlandeses (Jodocus Hondius, Pieter van den Keere, Vischer, Willem Blaue e Frederik de Wit, seguindo Braun e Hogenberg). Os volumes sobre vestuário aproveitavam, ao mesmo tempo que também criavam, muitas das imagens usadas em mapas, atlas e panoramas de cidades do mundo. No longo prazo, surgiram gêneros de livros que unem quase perfeitamente a representação de cidades e a imagem de povos específicos. Destaca-se o livro publicado por Carel Allard por volta de 1695, Orbis habitabilis oppida et vestitus.

Entre 1570 e 1790 foram executadas muitas obras de arte (desenhos, gravuras, pinturas e esculturas) que se serviram de personificação dos continentes. Sabine Poeschel compilou 112 exemplos, com a grande maioria tendo sido criada na Itália. Na impossibilidade de analisar todos esses trabalhos, destaco o significado simbólico da obra-prima de Giambattista Tiepolo, o afresco pintado em 1752-3 no teto do Salão da Escadaria na Residenz de Würzburg (ver detalhe acima), considerado a mais vasta e uma das mais imponentes pinturas da Europa.

Nessa composição, a posição subalterna da Ásia, da África e da América perante a Europa é claramente indicada pela escolha de posições em relação às escadas e pela representação das figuras: a Europa é o único continente coroado, e as figuras restantes olham diretamente o espectador. Os elementos iconográficos estabelecidos são usados na composição: a Europa, com vestes ricas mas com cores e ornamentos sóbrios, é representada com os símbolos da sua origem (o mito da violação por Zeus), da natureza domesticada (o cavalo), da verdadeira religião (o templo, a mitra e a cruz, e a crossa do príncipe-bispo), das artes liberais (música, geografia, arquitetura, pintura e escultura) e da capacidade bélica (um canhão e um oficial).

Entretanto, a África quase nua monta um camelo, com um macaco, um avestruz e um pelicano representados no mesmo friso, completado pela figura do Nilo, ao lado de várias cenas que exibem mercadores orientais e europeus, e homens locais fumando cachimbo. A Ásia, de turbante, está sentada num elefante, cercada por um grupo de escravos, um criado com um turíbulo, caça a tigres e leões, e temos uma seção que indica a falsa religião, representada por um obelisco e um ídolo. Segundo alguns especialistas, na cena asiática, o escravo com a grilheta no pulso direito está agarrando o pulso esquerdo, o que pode significar que está acorrentando a si próprio - uma inovação iconográfica que vai ao encontro da ideia europeia de despotismo e falta de liberdade oriental. Isso também é sublinhado pelas mãos em posição de súplica ao lado do escravo manietado.

A América, nua, com um toucado de penas, está sentada num crocodilo, num cenário amplo com músicos, frutos e um criado com um pote de chocolate, e é contrastada com uma caça a um aligátor e com uma cena de canibalismo observada de modo um tanto bizarro pelo autor europeu com o seu quê de deturpado.

É marcante a oposição entre a Europa e os continentes exóticos, representados com vida selvagem, caça e canibalismo, mas também repletos de elementos comerciais (barris, fardos, troncos), para-sóis, turbantes, chapéus cônicos e estranhos toucados, que criam uma atmosfera orientalizada no friso, mesmo na África e na América.  

Adaptado de BETHENCOURT, Francisco. Racismos - das Cruzadas ao Século XX. Tradução de Luís Oliveira Santos e João Quina Edições. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 114-116.

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