“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Outra Face de Gandhi

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Gandhi, num dos seus passeios matinais, em maio de 1946.

Há exatos 70 anos, Gandhi era assassinado a tiros por Nathuram Godse, um hindu radical. Ao lado de Buda, Gandhi é até hoje o indiano mais conhecido no mundo. Entretanto, poucos conhecem o homem por trás do mito.

Mohandas K. Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869, na cidade de Porbandar. Em sua infância, não se interessou pelo estudo, mas depois cursou Direito, em Londres. Na capital do Império Britânico, contudo, seu maior progresso foi na religião - ele tornou-se membro associado da teosofia, leu a Bíblia e também leu sobre o ateísmo, Maomé e Buda.

Casado aos 13 anos, Gandhi tornou-se um crítico do casamento infantil. Na fase adulta, ele voltou-se contra o casamento em si, tornando-se indiferente aos seus próprios filhos, símbolos vivos de sua natureza carnal. Na fase final de sua vida, apesar de celibatário, Gandhi chocou até mesmo seus seguidores ao aceitar massagens diárias aplicadas por mulheres nuas, com as quais tomava banho e compartilhava a sua cama.

Gandhi era cruel com sua esposa, Kasturba, e confessou desejar a sua morte: não seria possível dedicar-se a uma mulher em particular e, simultaneamente, à humanidade. De resto, o draconiano regime doméstico imposto por "Bapu" (como Gandhi era conhecido) chegou ao ponto de sacrificar a educação de seus filhos por entender que isso visava ao seu próprio bem espiritual.

Na Índia, Gandhi não se firmou na advocacia. Foi então contratado por uma empresa com negócios estabelecidos na África do Sul, onde sentiu na pele os efeitos do racismo dos bôeres. Estes tratavam de forma humilhante - e mesmo degradante - os indianos.

Em reação, Gandhi desenvolveu a Satyagraha, constituída pela não cooperação, desobediência civil, pronta disposição de sofrer voluntariamente as consequências dessas ações e o jejum como último recurso. Apesar de defender os indianos na África, Gandhi era tão purista racial quanto os bôeres - além de não se juntar aos ativistas das comunidades negras, para ele os brancos na África do Sul deveriam ser a raça predominante.

Na Índia, ao promover o boicote a tecidos estrangeiros, Gandhi preferiu que eles fossem queimados a serem doados aos pobres. Ele ainda negou o genocídio armênio, cometido pelos turcos durante a Primeira Guerra Mundial, e referiu-se a Hitler, no fim de 1940, como "Caro Amigo". Quando as bombas atômicas foram lançadas contra o Japão, em agosto de 1945, ele se calou.

As contradições em torno dessa celebridade do século XX não param aí. Gandhi foi um grande líder, mas não um estadista. Por sua culpa, os muçulmanos, temerosos pela hinduização das políticas na Índia, desejaram tanto o Paquistão que aceitaram de bom grado o desmembramento do país. Ao rejeitar o modelo constitucional ocidental e insistir num modelo de aldeia, Gandhi ainda provocou uma divisão entre os nacionalistas.

O vegetarianismo, a experiência da dieta e o jejum eram, no mínimo, tão importantes para Gandhi quanto a não violência. Tudo isso, bem como sua intolerância ao fumo e seu desapego aos bens materiais, são ideias bem atuais no início do século XXI. 

O assassinato do "Mahatma" completou seu processo de "endeusamento". Como alguém que buscava a verdade, no entanto, ele próprio iria preferir que seus "fãs" estudassem a sua biografia, ao invés de venerá-lo cegamente como um santo. 

Publicado hoje (30/01/2018) no jornal A Tribuna.

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