“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos O Nascimento do Artista

domingo, 22 de setembro de 2019

Giorgio Vasari (1511-1574) e sua obra As Vidas dos Artistas, importante documento histórico sobre diversos artistas do Renascimento.

1. As gerações de humanistas, munidas de imprensa, passaram a instruir o mundo em todas as artes e ciências. Da anatomia à aritmética e da pintura à metalurgia, os prelos não mais cessaram de imprimir tratados. O vernáculo (a língua comum de cada povo) facilitava o trabalho do impressor e o público leitor já não era exclusivamente eclesiástico.  

2. A partir de fins do século XV, em consequência do individualismo emergente e do declínio do espírito corporativo, os trabalhadores intelectuais passaram a apoiar-se no talento, mais do que em segredos (como nas corporações de ofício medievais), para protegerem o valor dos seus serviços. A partir das invenções de outros, publicavam as suas próprias invenções em manuais que informavam o público das últimas novidades da técnica.  
  
3. Um dos primeiros a sentir a necessidade de ensinar foi o escultor Ghiberti, em meados do século XV. Foi também o primeiro a acreditar na importância de registrar a vida dos artistas pelas lições técnicas que esse tipo de documentos incluía. Nascia, assim, o Artista. O maior e mais prolífico sucessor de Ghiberti foi Leone Battista Alberti, o arquiteto do século XV que acreditava que a arquitetura, a pintura e a escultura constituíam uma só arte. Alberti traçou o projeto que, com algumas alterações, veio a ser executado por Bramante, Miguel Ângelo, Maderno e Bernini com vista à criação do mais magnífico monumento da Roma moderna, a Catedral de São Pedro.    

4. Outro italiano, Giorgio Vasari, dividiu-se entre a profissão de pintor e construtor de Florença e a atividade de biógrafo dos mestres modernos das três grandes artes. O seu volumoso conjunto de Vidas é uma fonte inestimável para o historiador cultural. O poder do livro enquanto meio de divulgação de métodos e triunfos artísticos criou a tentação que tem desde então acompanhado qualquer avanço técnico: a superabundância de guias, manuais e "vidas" instrutivas. Cf. as obras de Benvenuto Cellini, o tratado sobre a construção de Palladio, o tratado sobre desenho de Piero della Francesca, o ensaio de Dürer sobre pintura e figura humana e os livros de Leonardo.   

5. Os editores de manuais da Idade Moderna dedicavam atenção nas obras à importância da genuína fé e da moral austera dos artistas. A virtude e a boa arte eram inseparáveis. Partia-se do princípio de que a obra revelava não só a mente, como também a alma do artista. A obra de arte deveria refletir também a ordem hierárquica do mundo, que era de caráter moral. Por intuição ou convenção, o artista devia saber transmitir essa realidade.     

6. Precisamos compreender as condições que levam à emergência, aparentemente arbitrária, de um grande período artístico, neste ou naquele local e durante um segmento de tempo relativamente curto. Não se trata da prosperidade ou de um período de paz e tranquilidade - Florença, no seu auge, estava imersa em conflitos internos e também com o exterior. O primeiro requisito é, certamente, a reunião de mentes ávidas em determinado local.       

7. Os tratados renascentistas afirmam que, além da missão moral, o dever do artista (e, desse modo, a sua intenção) é imitar a natureza. Isso o coloca numa posição análoga à do cientista. Na Idade Média as formas da natureza serviram como ponto de partida aos artistas gráficos, mas estes não se sentiam obrigados a copiá-las fielmente. Além disso, os templos antigos, o Coliseu e os grandes arcos comemorativos já não eram considerados como lamentáveis resíduos do paganismo. Eram agora como criações majestosas que deviam ser estudadas e copiadas.   

8. Giotto baseava-se naquilo a que Vasari chama "a verdadeira forma humana" e reproduzindo-a tão minuciosamente quanto pôde. Tal estilo é por vezes descrito como "realista", ainda que os diferentes artistas tenham representado aspectos reconhecíveis do mundo, bem como características comuns da própria arte da pintura, diferindo nos efeitos globais.  

9. Os diferentes tipos de tinta dão uma aparência diversa a imitações igualmente fiéis. O pintor cria a sua ilusão favorecendo certas cores e ajustando as suas intensidades à imagem daquilo que gosta de ver. No Renascimento partia-se do princípio de que as artes gráficas tinham de "contar" qualquer coisa, além de agradarem aos olhos e ao sentido de composição e de obedecerem às regras de perspectiva. A mitologia era muito apelativa, mas os temas cristãos não perderam terreno, apenas secularizaram-se de diferentes formas.        

10. No século XVI, a arte não tinha renunciado à moralidade ou ignorado os gostos existentes, mas as raízes da autonomia já estavam lá. A apreciação estética envolve também a capacidade de julgar e falar sobre estilo, técnica e originalidade. Tal exigência deu origem a uma nova figura pública: o crítico. Isso levou à separação, em última análise, entre os sabedores e ignorantes. No século XVI, contudo, tanto uns quanto os outros estavam em paz entre si porque comungavam da mesma opinião sobre o papel da arte na sociedade. Até ao final do século XVIII, a opinião pública sustentava que a pintura religiosa e histórica eram os gêneros mais elevados - uma edificava, a outra recordava.   

11. Os retratos vieram a seguir. A natureza ainda não era amada só por si mesma, servindo apenas de pano de fundo no início do Renascimento, e mesmo então era "humanizada" pela presença de templos, colunas ou outros elementos arquitetônicos, juntamente com seres humanos. Á medida que o tempo passou, os motivos seculares ganharam em importância. Em parte isso ocorreu por causa de uma nova técnica: a pintura sobre tela com pigmentos dissolvidos em óleo. 

12. O gosto geral pela reprodução da "vida" impulsionou ainda a ilustração de livros - a princípio, a gravura em madeira; em seguida, a gravura em metal, mais adequada a acompanhar os tipos mais finos. Igualmente popular era a arte da tapeçaria, fundamental tanto para o isolamento das paredes nos climas frios como para efeitos decorativos. A imitação fiel requeria um estudo exaustivo da anatomia humana e da forma e da textura dos objetos inanimados. O nu tornou-se então parte regular da aprendizagem e a natureza precisou ser reformulada para a composição e a harmonia, e ainda mais para a força dramática. O pintor precisava pensar - sua imitação não devia ser servil.

13. A descoberta das leis da perspectiva foi a grande inovação que deu aos pintores do Renascimento a certeza de que estavam no caminho certo para a arte. Para alguns, a Natureza tinha sido redescoberta; para outros, a civilização tinha sido restaurada. Graças à geometria plana, é possível identificar o tamanho e lugar que deve ser dado numa pintura a um objeto a qualquer distância para fazer com que surja com o aspecto que tem na realidade. Um tratado de pintura do início do Renascimento apontou que pintar consiste em desenho, medida e cor.  
  
14. O artista já não era anônimo como tinha sido quase sempre na Idade Média. O arquiteto, o escultor, o pintor assinavam agora as suas obras, ou eram reconhecidos em letra de forma. O artista era também ocasionalmente escritor. Descreve a sua obra e os seus pontos de vista, relata as suas lutas, publica as suas notas aos seus patrões. Não se deve pensar que, ao tornarem-se artistas, os pintores e outros do gênero deixavam de ser artesãos no sentido físico. As artes gráficas são enraizadas na matéria e a mínima competência requer habilidade e conhecimentos sobre pigmentos, óleos, cola, madeira, cera, gesso - e como manipular ovos crus. 

15. O verdadeiro homem do Renascimento não deve ser definido pelo gênio, que é raro, nem mesmo pelos numerosos talentos performativos de um Alberti. Define-se melhor pela variedade de interesses e pelo seu cultivo na qualidade de amador proficiente. Era-lhe exigido pelo menos a base do Humanismo, "as belas letras". Evidentemente, nos séculos XVI e XVII, era mais fácil do que hoje ser um generalista nas artes e, até certo ponto, na ciência.    
  
Extraído de: BARZUN, Jacques. Da Alvorada à Decadência - 500 anos de vida cultural no Ocidente (de 1500 à actualidade). Tradução de António Pires Cabral e Rui Pires Cabral. Lisboa: Gradiva, 2003, p. 82-96.

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