“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

O Misticismo Islâmico: as Tariqas

domingo, 31 de dezembro de 2023

Frithjof Schuon (1907-1998), fundador da tariqa sufi Maryamiyya ("Mariana", em árabe).

No fim do século X e no século XI começou a ocorrer outro fato. Os que seguiam o mesmo mestre passaram a identificar-se como uma única família espiritual, seguindo o mesmo caminho (tariqa). Algumas dessas famílias continuaram por um longo período, e reivindicavam uma linhagem que remontava a algum grande mestre da vida espiritual, da qual a tariqa recebia o nome, e por intermédio dele ao Profeta, por meio de 'Ali ou Abu Bakr. Alguns desses "caminhos" ou "ordens" estendiam-se por uma vasta área no mundo islâmico, levados por discípulos de um mestre podiam fundar suas próprias ordens, mas em geral reconheciam uma afinidade com o mestre que lhes havia ensinado o caminho. Entre as ordens mais disseminadas e duradouras, algumas tiveram início no Iraque; eram a Rifa'iyya, que remontava ao século XII, a Suhrawardiyya no século XIII, e - a maior de todas - a Qadiriyya, batizada segundo o nome de um santo de Bagdá, Abd al-Qadir al-Jilani (1077/8-1166), mas que só emergiu nitidamente no século XV. Das ordens que surgiram no Egito, a Shadhiliyya iria tornar-se a mais importante, sobretudo no Magreb, onde foi organizada por al-Jazuli (m. c. 1465). Em outras parte dos mundo muçulmano, outras ordens ou grupos de ordens se destacaram: por exemplo, a Mawlawiyya na Anatólia, e a Naqshbandiyya na Ásia Central. Algumas delas iriam difundir-se também para os países de língua árabe.

Só uma minoria de adeptos de tais ordens dedicava toda a vida ao caminho, vivendo em conventos (zawiya, khanqa); alguns destes, sobretudo nas cidades, eram pequenos prédios, mas outros eram maiores, incluindo uma mesquita, um lugar para exercícios espirituais, escolas, hospedarias para visitantes, tudo agrupado em torno do túmulo do mestre cujo nome recebiam. Contudo, a maioria dos membros da ordem vivia no mundo; incluía tanto homens quanto mulheres. Para alguns deles, a filiação a uma ordem era pouco mais que nominal, mas para outros implicava alguma iniciação em doutrinas e práticas que poderiam ajudá-los a avançar no caminho para o êxtase da união.

As ordens diferiam em sua visão do relacionamento entre os dois caminhos do Islã: o da charia, obediência à lei oriunda dos mandamento de Deus no Corão, e o da tariqa, a busca da experiência de conhecimento direto d'Ele. De um lado, ficavam as ordens "sóbrias", que ensinavam que, após o autoaniquilamento e embriaguez da visão mística, o fiel devia retornar ao mundo das atividades diárias da vida e viver dentro dos limites da charia, cumprindo suas obrigações com Deus e seus irmãos humanos, mas dando-lhes novo significado. Do outro lado, ficavam aqueles aos quais a experiência de união com Deus deixava embriagados com um senso da presença divina, de tal modo que sua vida real daí em diante era vivida na solidão; não se importavam se incorriam na censura de esquecer as obrigações determinadas pela charia, e podiam até acolher de bom grado tal censura, como um meio de dar as costas ao mundo (Malamatis). A primeira tendência era associada aos que diziam descender de Junayd, a segunda aos que viam Abu Yazid al-Bistami como seu mestre.  

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. Tradução de Marcos Santarrita. 2ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 166.

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