“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Sobre a Guerra Civil em El Salvador

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

 

Guerrilheiros da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) em Usulután, El Salvador, em 1983.

Anne van der Bijl (1928-2022), internacionalmente conhecido como Irmão André, foi um missionário neerlandês que fundou a Portas Abertas. Seu ministério teve início em 1955, quando ele começou a contrabandear Bíblias para os países da então Cortina de Ferro. Anos depois, o Irmão André e seus apoiadores expandiram as suas atividades para além do Leste Europeu e da União Soviética, alcançando países do então chamado "Terceiro Mundo", na África, Ásia e América Latina. O testemunho abaixo é relativo à Guerra Civil de El Salvador, travada entre 1979 e 1992. O encontro entre o Irmão André e Alberto, um dos líderes guerrilheiros, ocorreu no início dos anos 1980.

***

Um dos meus encontros mais memoráveis foi com Alberto, o comandante de um grupo de rebeldes que havia tomado totalmente determinada cidade. De boa aparência, extremamente carismático, ele usava uma boina preta, camisa cáqui, calça jeans azul enfiada nas botas militares e uma pistola na coxa. Dois guarda-costas não desgrudavam dele, com metralhadoras calibre cinquenta e bandoleiras trançadas no peito.

Também reparei que Alberto usava dois relógios. "Se um para, ainda tenho o outro para saber as horas", disse. Obviamente era uma pessoa bem treinada e disciplinada.

Primeiro ele nos contou seu passado e sua "juventude perdida", e como ele encontrou nova esperança nos ensinamentos marxistas. Depois do treinamento em Cuba, com direito até a um encontro com Fidel Castro, voltou a seu país com verdadeiro senso de propósito, pois, acreditava ele, a revolução traria justiça à vida em El Salvador. Impressionou-me esse jovem inteligente, e achei que seu zelo revolucionário daria um trecho interessante do vídeo.

- Alberto - disse eu -, gostaria de entrevistá-lo diante das câmeras, mas sob uma condição importante: você precisa falar a verdade. Vou lhe fazer uma pergunta, e quero que você me olhe bem nos olhos e me diga a mais absoluta verdade, de homem para homem. Concorda?

Ele refletiu por um momento e olhou em volta.

- Certo, vou lhe dizer a verdade - disse.

Algo em mim dizia que ele estava sendo sincero.

A equipe ligou o equipamento de filmagem. Então, encarando Alberto, fiz minha primeira pergunta.

- Esta revolução é de vocês ou importada?

Não creio que ele estivesse preparado para pergunta tão direta. O modo como ele me responderia teria importância crucial, e ele sabia disso. Veio um silêncio constrangedor. Ele olhou em torno, talvez para ver quanta gente podia ouvi-lo.

Continuei a encará-lo, e as câmeras continuaram gravando. O homem que um instante antes transpirava tamanha força e confiança, parecia agora bem vulnerável.

Finalmente ele se voltou e me olhou bem nos olhos, como havia prometido, respondendo:

- É importada.

Que tremenda confissão, especialmente para alguém de posto tão elevado na hierarquia da guerrilha. Por alguma razão, quando ele se viu confrontado com uma espécie de prova dos nove, não pôde mentir. Com essas duas palavras, ele revelara a verdadeira essência da revolução. Era fabricada, e estava sendo imposta às pessoas.     

ANDRÉ, Irmão. O Contrabandista de Deus - desafiando os limites da fé: a missão continua além da cortina de ferro. Tradução de Eduardo Pereira E. Ferreira. São Paulo: Missão Portas Abertas, 2020, p. 174-175.

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