“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A conversão de Clóvis (496 d.C.)

quinta-feira, 8 de outubro de 2015


O batismo de Clóvis, Mestre de Saint Gilles. Óleo sobre madeira, 1500. National Gallerie of Art, Washington.

Da Rainha Clotilde, o rei teve um primogênito a quem sua mãe desejou batizar; ela então insistiu persistentemente a Clóvis que o permitisse, dizendo: 'Os deuses que tu adoras não são nada; não podem ajudar a ti ou aos outros, pois são imagens talhadas em madeira, pedra ou metal. Mais ainda, os nomes que lhes destes são os nomes de homens, não de deuses. Saturno era um homem, famoso por ter fugido de seu filho após ser expulso de seu próprio reino; Júpiter também, libertino, praticante de todas as indulgências, cheio de vícios antinaturais, ofensor das mulheres e de sua própria família, não podia se abster nem mesmo de deitar-se com sua própria irmã, como ela mesma admitiu ‘irmã e esposa de Júpiter’. Que poder tem Marte e Mercúrio? Eles podem ter sido agraciados com poderes mágicos, mas nunca tiveram o poder do nome divino. Mas é melhor que tu sirvas a Ele, que com Sua palavra criou do nada o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles; que fez o Sol brilhar e adornou o firmamento com estrelas; que encheu a água de peixes, a terra de animais, o ar de pássaros; cujo aceno faz as terras encherem-se de frutos; as árvores, de maçãs; os vinhedos, de uvas; por cuja mão, a raça dos homens foi criada; por cuja dádiva, toda criatura foi feita para prestar homenagem e serviço ao homem que criara.

Apesar de a rainha sempre proferir esses argumentos, a mentalidade do rei não foi movida na direção da crença, e ele respondeu: ‘É por ordem de nossos deuses que todas as coisas foram criadas e se revelam; é manifesto que teu Deus em nada nos auxilia; não mais, ele nem mesmo é comprovadamente da raça dos deuses’. Mas a Rainha, fiel à sua fé, apresentou seu filho para o batismo; ordenou que a igreja fosse adornada com enfeites e cortinas, para que o rei, a quem nenhuma pregação influenciava, pudesse ser persuadido a acreditar através dessa cerimônia. O menino foi batizado e chamado Ingomer, mas morreu enquanto ainda estava vestido com o traje de sua regeneração. Assim, o rei foi acometido por uma amarga ira e não se demorou a abordar a rainha, dizendo: ‘Se a criança tivesse sido dedicada em nome de meus deuses, certamente teria vivido, mas agora, batizado em nome de teu Deus, não sobreviveu um dia’. A rainha respondeu: ‘Eu agradeço ao Deus Todo Poderoso, criador de todas as coisas, que não me julgou digna e recebeu em seu reino a criança gerada em meu ventre. Meu espírito está livre de pesar sobre esse acontecimento, pois eu sei que aqueles que são chamados deste mundo nas vestes alvas do batismo serão cuidados sob as vistas de Deus’. Posteriormente, ela deu à luz outro filho, que foi batizado com o nome de Clodomer. Quando ele também foi afligido pela enfermidade, o rei disse: ‘Não posso evitar pensar que essa criança, como seu irmão, deverá morrer prontamente, por ter sido batizado em nome de teu Cristo.’ Mas a mãe ordenou que a criança se recuperasse.

A rainha insistiu sem cessar que o rei se confessasse ao verdadeiro Deus e negasse seus ídolos; mas de modo algum ela pôde convencê-lo de sua crença, até que, finalmente, certa vez ele iniciou uma guerra contra os alamanos, quando foi levado a confessar o que, de livre vontade, negara. Aconteceu que quando os dois exércitos se embateram, houve uma lamentável carnificina, e o exército de Clóvis estava sendo levado à completa ruína. Quando o rei viu isso, ergueu os olhos aos céus e sentiu remorso em seu coração e, derramando-se em lágrimas, bradou em voz alta: ‘Jesus Cristo tu que fostes proclamado por Clotilde, Filho do Deus Vivo, tu, que dizem auxiliar os necessitados e conceder a vitória aos que depositam sua confiança em ti, eu imploro, de coração devoto, a glória de teu socorro. Se tu me concederes a vitória sobre esses inimigos e a experiência comprovar o poder que o povo dedica a teu nome, então eu também crerei em ti e serei batizado em teu nome. Clamei por meus próprios deuses, mas eis aqui a prova que eles me abandonaram sem me ajudar; por isso, não acredito que tenham poder algum, já que não vêm em socorro de seus servos. A ti agora invoco, em ti sou forçado a acreditar, se puder ser afastado das garras de meus adversários’. Após dizer isso, os alamanos viraram-se e fugiram. E, quando viram que seu rei fora morto, eles renderam-se a Clóvis, dizendo: ‘Não permita, imploramos a ti, que mais pessoas pereçam; somos agora teus homens”. Então o rei pôs fim à guerra e, após repreender o povo, retornou em paz, relatando à rainha como ele chamara pelo nome de Cristo, sendo considerado digno de obter a vitória. Isso ocorreu no 15.º ano de seu reinado.

Então a rainha ordenou em segredo que Remígio, bispo de Reims, fosse convocado, implorando-lhe que transmitisse a palavra da salvação ao rei. O bispo, conclamando o rei em particular, passou a instilar nele a fé no verdadeiro Deus, arquiteto do céu e da terra, e insistiu que desertasse seus ídolos, que eram incapazes de ajudá-lo ou a outros. Mas Clóvis retrucou: ‘Minha pessoa, santíssimo padre, te escutará alegremente; mas uma coisa ainda permanece. O povo que me segue não sofrerá a dor de me ver desertando seus deuses; ainda assim irei e tentarei dissuadi-los de acordo com sua palavra’. Mas quando ele veio diante do povo reunido, mesmo antes que proferisse uma só palavra, o poder divino revelou-se perante ele, e todo o povo clamou a uma só voz: ‘Ó gracioso rei, nós expulsamos nossos deuses mortais e estamos prontos seguir o Deus imortal a respeito do qual Remígio prega’.

As notícias sobre isso chegaram aos ouvidos do bispo, que se encheu de grande júbilo e ordenou que a fonte fosse preparada. As ruas foram cobertas de enfeites coloridos, as igrejas adornadas com enfeites brancos, o batistério foi preparado, a fumaça do incenso espalhou-se em nuvens, velas perfumadas foram acesas, a igreja inteira ao redor do local de batismo se encheu da fragrância. E então o rei exigiu ser batizado pelo bispo. Como um novo Constantino, ele adentrou a água para livrar-se da antiga lepra, para enxaguar, nessa nova correnteza, as manchas de dias passados. Enquanto se dirigia para ser batizado, o santo de Deus disse essas palavras, saídas de seus lábios eloquentes: ‘Curva humildemente tua altiva cabeça, sicambro; adora o que queimaste, queima o que adoraste’. E o santo Remígio, o bispo, possuía muito estudo era, acima de tudo, versado na arte da Retórica e tão exemplar em sua santidade, que seus milagres se equiparavam ao de São Silvestre; foi preservado para nós um livro a respeito de sua vida, no qual está relatado como ressuscitou um homem dos mortos.

Portanto, o rei se confessou ao Deus Todo Poderoso, Três em Um, foi batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ungido com a sagrada crisma com o sinal da cruz de Cristo. De seu exército, foram batizados mais de 3 mil; sua irmã Albofleda, que não muito depois foi levada à presença do Senhor, também foi batizada. E quando o rei lamentava sua morte, o santo Remígio enviou-lhe uma carta de consolo, iniciada dessa forma: ‘A causa de tua tristeza me aflige profundamente, pois tua irmã, de bela memória, veio a falecer. Ao invés de nos enlutarmos por ela, devemos erguer nossos olhos para ela’. E outra de suas irmãs, de nome Lantechilde, que havia caído na heresia dos arianos, foi convertida; ela também recebeu a santa crisma, tendo confessado que o Filho e o Espírito Santo são iguais ao Pai.

Gregório de Tours, História dos Francos (c. 591), II, 20-22.
[Cf. também a a carta do bispo Avito de Vienne a Clóvis, escrita por volta de 496].

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