domingo, 24 de dezembro de 2017
"Obrigada ao querido Stálin, pela infância feliz!"
"O paradoxo de Lênin é ter deliberadamente instaurado a ditadura de seu partido e ter temido as consequências disso. Esse dogmático sectário, esse homem de ação explosivo não teve medo de pôr o Estado sob o domínio do partido e de instaurar o reino do terror, mas temeu, antes de morrer, a burocratização do regime que fundara.
Stálin, por sua vez, sente-se à vontade na burocracia do partido e no atraso russo. Desde 1922, é o secretário-geral, cargo sem destaque no começo, de que ele aos poucos foi fazendo um formidável instrumento de clientelismo e de poder. Georgiano, torna-se mais russo do que os russos, como um homem nascido às margens do império e chegado ao seu centro. Fez parcos estudos, leu pouco. Lênin tinha uma boa dose de populismo russo em seu marxismo, mas tinha um pé na cultura europeia. Ele conhece Marx através de Lênin, sobrepondo sua ignorância a uma interpretação já simplista. De qualquer forma, tem pouco gosto pelas discussões, menos ainda pelas ideias, mas sabe que elas fazem parte da tradição bolchevique: não há estratégia ou virada política que não deva ser justificada em 'teoria'. Quem quer ser o herdeiro de Lênin deve dominar também essa particularíssima arte. Por isso ele publicou os Fundamentos do leninismo, obra composta de uma série de conferências redigidas para a Universidade comunista de Sverdlov, em abril de 1924. (...) É o equivalente, na ordem doutrinal, do mausoléu de Lênin na ordem simbólica. Stálin escreveu o comentário destinado a se tornar sagrado do pensamento de Lênin. Muitas vezes, corta seu texto com longas citações, para melhor se apropriar da substância do pai fundador falecido. De quando em quando, um sarcasmo ridiculariza o erro ou a objeção de um adversário passado ou presente, pois a exposição deve ser lida em dois níveis, como imposição de um dogma político e como acento de contas mais ou menos explícito. Tudo isso forma um tratado pedagógico compacto e sem graça, mas claro: simplificação do marxismo de Lênin, que era uma simplificação do marxismo de Marx. Mas o autor desse catecismo camponês acrescentou a ele uma contribuição original: teve o cuidado de apimentar seu texto com homenagem ao gênio do proletariado e do campensinato russos que com certeza teriam escandalizado Lênin. O chefe da Revolução de Outubro pretendera-se revolucionário, embora russo. Stálin, o Georgiano, optou ser russo porque revolucionário."
Stálin, por sua vez, sente-se à vontade na burocracia do partido e no atraso russo. Desde 1922, é o secretário-geral, cargo sem destaque no começo, de que ele aos poucos foi fazendo um formidável instrumento de clientelismo e de poder. Georgiano, torna-se mais russo do que os russos, como um homem nascido às margens do império e chegado ao seu centro. Fez parcos estudos, leu pouco. Lênin tinha uma boa dose de populismo russo em seu marxismo, mas tinha um pé na cultura europeia. Ele conhece Marx através de Lênin, sobrepondo sua ignorância a uma interpretação já simplista. De qualquer forma, tem pouco gosto pelas discussões, menos ainda pelas ideias, mas sabe que elas fazem parte da tradição bolchevique: não há estratégia ou virada política que não deva ser justificada em 'teoria'. Quem quer ser o herdeiro de Lênin deve dominar também essa particularíssima arte. Por isso ele publicou os Fundamentos do leninismo, obra composta de uma série de conferências redigidas para a Universidade comunista de Sverdlov, em abril de 1924. (...) É o equivalente, na ordem doutrinal, do mausoléu de Lênin na ordem simbólica. Stálin escreveu o comentário destinado a se tornar sagrado do pensamento de Lênin. Muitas vezes, corta seu texto com longas citações, para melhor se apropriar da substância do pai fundador falecido. De quando em quando, um sarcasmo ridiculariza o erro ou a objeção de um adversário passado ou presente, pois a exposição deve ser lida em dois níveis, como imposição de um dogma político e como acento de contas mais ou menos explícito. Tudo isso forma um tratado pedagógico compacto e sem graça, mas claro: simplificação do marxismo de Lênin, que era uma simplificação do marxismo de Marx. Mas o autor desse catecismo camponês acrescentou a ele uma contribuição original: teve o cuidado de apimentar seu texto com homenagem ao gênio do proletariado e do campensinato russos que com certeza teriam escandalizado Lênin. O chefe da Revolução de Outubro pretendera-se revolucionário, embora russo. Stálin, o Georgiano, optou ser russo porque revolucionário."
FURET, François. O Passado de uma Ilusão. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Siciliano, 1995, p. 165-166.
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