“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Fome no Pós-Guerra

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Mapa da fome, ao final da Primeira Guerra Mundial. Em 1945, várias dessas regiões voltariam a ser assoladas pela escassez de alimentos.

Milhões tinham morrido de fome em certas regiões da União Soviética. Mas havia algo de particular no caso da desnutrição na Holanda: foi o único país da Europa Ocidental submetido à fome como forma deliberada de castigo coletivo. Os eslavos haviam sido submetidos a esse tratamento, mas não europeus ocidentais. 

Fazendo sua parte para ajudar Montgomery em seus desastrosos esforços para construir uma ponte sobre o Reno em Arnhem, em setembro de 1944, trabalhadores ferroviários holandeses entraram em greve. Em retaliação, os alemães cortaram o fornecimento de comida na parte ocidental do país, ainda sob ocupação. Também desligaram a eletricidade, inundaram terras férteis e proibiram cidadãos holandeses de utilizar trens. Para completar, o "inverno de fome" de 1944-45 foi de um frio fora do comum. Dezoito mil pessoas morreram de fome ou foram vítimas de doenças causadas por desnutrição. Os sobreviventes queimavam sua mobília para se aquecer e sobreviviam comendo animais de estimação, se ainda conseguissem encontrá-los, ou cavalos mortos, retalhados assim que desabavam nas ruas, ou sopas feitas de urtigas espinhentas e bulbos de tulipa fritos.

O problema da inanição é que comida demais, ou o tipo errado de alimento, também pode matar uma pessoa. Mesmo os biscoitos distribuídos pelas amistosas tropas canadenses podiam ser catastróficos. Provocavam sede intensa, aliviada com goles de água gelada, o que fazia com que a massa ainda não digerida inchasse, resultando em estômagos perfurados e morte rápida.

Havia fome em quase todas as partes do mundo, nos países libertados e nos derrotados também, onde todos os serviços tinham entrado em colapso, e os dispositivos econômicos normais tinham parado de funcionar. Houve outros lugares, além da Holanda, nos quais a comida teve de ser lançada dos céus. O adolescente no livro de Akiyuki Nosaka Amerika Hijiki vê um bombardeiro americano lançar de paraquedas um tambor de aço. Primeiro os japoneses do vilarejo pensam que poderia ser mais uma bomba devastadora. Eles tinham ouvido falar de Hiroshima. Diziam que lá também a bomba estava presa a um paraquedas. No entanto, quando o recipiente não explodiu, a fome e a curiosidade venceram o medo. Os aldeões o abriram e encontraram pacotes de comida, que presumiram ser destinados aos presos de guerra que estavam em um campo de prisioneiros próximo. Mas esperar caridade de estranhos é pedir demais em áreas de desespero. Os pacotes contêm pão, chocolate e goma de mascar, que as crianças mastigam durante dias, passando os pedaços endurecidos e já sem gosto de boca em boca. Há também um pacote cheio de uma coisa amarronzada, que os aldeões supõem ser alga marinha, ou hijiki, uma iguaria muito apreciada no Japão. Tem um gosto tão ruim, mesmo depois de cozida, e é de tão difícil digestão, que eles se admiram de que os americanos possam tolerá-la. Ainda na suposição de que as folhas escuras de chá fossem "algas americanas", eles acabam por devorar o suprimento inteiro.     

BURUMA, Ian. Ano Zero - Uma História de 1945. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, Cap. 2.

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