“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

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Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos A Escravidão na África

sexta-feira, 29 de março de 2019

1. A escravidão era disseminada e inata na sociedade africana, como era, naturalmente, o comércio de escravos. Os europeus simplesmente entraram nesse mercado já existente, e por séculos os africanos responderam ao aumento da demanda, fornecendo mais escravos. Não se deve aceitar a teoria de que os africanos foram compelidos a participar desse comércio infame.  

2. A escravidão era amplamente difundida na África (o que nada tem a ver com o subdesenvolvimento econômico da região), e seu crescimento foi muito independente do comércio atlântico. O comércio atlântico de escravos foi o resultado dessa escravidão interna. Seu impacto demográfico, no entanto, mesmo nos estágios iniciais foi significativo. 
  
3. A escravidão era difundida na África atlântica porque os escravos eram a única forma de propriedade privada que produzia rendimentos reconhecida nas leis africanas. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade privada de terras que levou a escravidão a ser tão difundida na sociedade africana. Em contraste, nos sistemas legais europeus a terra era a principal forma de propriedade privada lucrativa, e a escravidão ocupava uma posição relativamente inferior.    

4. Observadores europeus nos séculos XVI e XVII estavam bem conscientes de que as sociedades africanas eram política e economicamente desiguais e que essas desigualdades refletiam-se nas estruturas sociais e legais. Mas, apesar de alguns reconhecerem a ausência da propriedade privada de terras, muitos transformaram os africanos em proprietários a despeito deles.    

5. Partindo desse cenário, a descrição das terras na África por europeus como pertencendo ao rei foi o modo mais comum para reconciliar a lei africana e o conceito de que a posse de terras era uma parte natural e essencial da civilização. Mas, na África, as pessoas é que eram taxadas em vez das terras, outra indicação da ausência de propriedade privada territorial.    

6. Sob certas premissas ideológicas, os reis podiam requerer o direito de taxar a partir do direito de conquista. As tradições do Congo, por exemplo, enfatizam que o fundador do Estado conquistou a população do país, e seus direitos para governá-los e taxá-los provêm desse fato, direitos partilhados com "capitães" designados por ele.     

7. Alguns viajantes mencionavam frequentemente os "nobres" ocasionalmente como "proprietários" de terras ou pelo menos exercendo controle sobre eles. Por exemplo, John Hawkins, ao descrever Serra Leoa em 1562-8, citou que os nobres "possuíam" terras, e todos os outros lhes pagavam um aluguel para poder utilizá-las. Mas, em Serra Leoa, como em outros lugares, o verdadeiro proprietário era o Estado, e os rendimentos auferidos eram na verdade encargos ou tributações estatais.   

8. Assim, a aparente propriedade privada, ou o que os historiadores especialistas no início da Europa moderna algumas vezes chamam de "grande propriedade", não tinham de modo algum essa característica. Em cada caso, os detentores de títulos e os que usufruíam dos rendimentos provenientes da propriedade dependiam dos grandes grupos corporativos, algumas vezes das linhagens, mas em geral do Estado, para suas remunerações.  

9. No Congo, um filho ou irmão do rei era frequentemente seu sucessor, mas a escolha final recaía em um grupo de eleitores depositários do Estado. Na África central, e também no Dongo, a eleição era definida por um grupo de funcionários. Em Benin, segundo testemunhas do século XVII, a sucessão era considerada hereditária, mas o acesso do governante ao trono precisava ser confirmado e ratificado por dois funcionários mais graduados. Um sistema semelhante era adotado em Warri.         

10. O pouco que se sabe sobre a ocupação de terras por camponeses nos séculos XVI e XVII na África sugere que aqueles que as cultivavam tinham direitos de explorá-la mas não de vendê-la, aliená-la ou arrendá-la. Assim, os africanos possuíam produtos advindos da terra, mas não a terra em si. Em Loango, por exemplo, os terrenos eram mantidos como uma propriedade comunitária e, para assegurar o direito de cultivá-los, só era preciso começar a cultivar terras desocupadas; se o cultivo fosse interrompido, o lavrador perdia os direitos.  

11. Se os africanos não eram proprietários de um fator de produção (a terra), eles poderiam possuir outro, o trabalho (o terceiro fator, o capital, era relativamente insignificante antes da Revolução Industrial). O casamento era outra instituição de dependência. Em meados do século XVII, o governante de Warri tinha um grande harém de esposas que produziam tecido para vender. Algo análogo ocorria em Ajudá. A riqueza na África, portanto, media-se pelas esposas, pois a poligamia indicava o prestígio e as esposas constituíam com frequência forças de trabalho. 

12. A escravidão era, possivelmente, o caminho mais importante para a riqueza privada geradora de recursos para os africanos. Portanto, não é surpreendente que fosse tão disseminada. Na prática, na África os escravos tinham mais utilidades do que os escravos europeus ou euro-americanos. Na Europa, as pessoas ricas que queriam investir em algo seguro e com retorno financeiro provavelmente comprariam terras. Na África, por outro lado, não existia propriedade privada da terra; assim, o último recurso era adquirir escravos. Como propriedade pessoal, eles poderiam ser herdados ou gerar riqueza. 

13. Os escravos africanos, em geral não recebiam um tratamento diferente dos camponeses agrícolas. Na África central, segundo um testemunho, eles possuíam liberdade relativa e eram postos em ampla variedade de empregos. No entanto, isso não significa que os escravos nunca recebessem o mesmo tipo de trabalho difícil, perigoso ou degradante dos escravos na Europa, embora na África frequentemente esse trabalho pudesse ser realizado com facilidade por pessoas livres a serviço do Estado.    

14. Os escravos como geradores de riqueza destacaram-se principalmente entre os julas e outros grupos comerciais islâmicos do oeste do Sudão e Senegâmbia. Outra utilização dos escravos, quase da mesma importância que essa (aumento e manutenção da fortuna particular), foi seu uso pela elite política para ampliar seu poder. Os poderosos impérios sudaneses confiavam muito nos exércitos e administrações de escravos para manter sob controle uma nobreza local ascendente e refratária. O desenvolvimento de um exército ou administração compostos de escravos ajudou na centralização do Império Songai e no Dongo. O recolhimento dos escravos em um lugar central conferiu grande poder aos reis do Congo, no final do século XV.  
  
15. Os escravos estavam em todas as partes da África atlântica, desempenhando todo tipo de tarefas. A importância da escravidão na África no desenvolvimento do comércio de escravos pode ser observada claramente na incrível velocidade com que o continente começou a exportá-los. De 1450 em diante, antes mesmo que os seus navios alcançassem o rio Senegal, os portugueses compravam escravos de caravanas na fronteira ao norte do posto de Arguim, estabelecendo relações duradouras com o comércio transaariano. Em suma, podemos concluir que o comércio atlântico de escravos e a participação da África tinham sólidas origens nas sociedades e sistemas legais africanos. A organização social preexistente foi, assim, muito mais responsável do que qualquer força externa para o florescimento do comércio atlântico de escravos.    
  
Bibliografia consultada: THORTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico - 1400-1800. Coordenação editorial de Mary Del Priore e tradução de Marisa Rocha Motta. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 122-152.

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