domingo, 4 de abril de 2021
A sodomia era surpreendentemente comum em Florença. Segundo Michael Rocke, no fim do século XV, na época em que chegavam à idade de trinta anos, pelo menos metade dos jovens de Florença tinha sido formalmente implicada em atos de sodomia, e isso só pelo tribunal do qual os arquivos ele pesquisou. Aos quarenta anos, pelo menos dois terços dos homens tinham sido indiciados.
O problema atingiu até mesmo a família do grande Michelangelo. O pai deste, Lodovico Buonarroti, tentou fazer o melhor pelos filhos quanto à educação. Talvez com a perspectiva de fazer de Lionardo trabalhar com o tio Francesco, que era cambista, ele o enviou a um dos mais destacados professores de ábaco da cidade de Florença, Raffaello di Giovanni Canacci (1456-1504/5), autor de um tratado de álgebra, uma raridade na Idade Média tardia. Apesar de bem-intencionado, o intento de Lodovico acabou horrivelmente mal.
Em 8 de abril de 1483, Raffaello Canacci denunciou a si próprio por ter sodomizado cinco meninos. Dois dias depois, Lodovico denunciou-o por ter sodomizado seu filho, em sua escola. Canacci então confessou que tinha praticado o vício "muitas e muitas vezes com Lionardo, filho do mencionado Lodovico." Foi condenado a pagar uma multa de vinte florins e a um ano de cadeia, mas esta última parte da sentença foi comutada porque ele tinha confessado. Considerando que tecnicamente a pena para sodomia era ser queimado vivo, Canacci se deu bem. Na prática, apenas criminosos mais renitentes e escandalosos sofriam punições mais severas.
As consequências desses estupros para o menino de dez anos só podem ser imaginadas. Daí em diante, ele praticamente desapareceu dos registros familiares. Quando adulto, fez-se frade dominicano. Em 1497, procurou o ateliê de Michelangelo em Roma; estava sem dinheiro e havia perdido o hábito. O irmão lhe deu um ducado para a viagem de volta a Florença, para ele um bom negócio mais que uma dádiva generosa. Sua breve referência ao "frei Lionardo" não demonstra muito afeto nem muito interesse.
Uma carta de Niccolò di Braccio Guicciardini a seu primo Piero Guicciardini, data de 7 de abril de 1492, revela pânico por causa da repressão ao vício da sodomia. Niccolò explica que Savonarola e outros pregadores tinham profetizado uma maldição apocalíptica sobre Florença se a prática da sodomia prosseguisse. Dois dias antes, a queda parcial da estrutura do Duomo, graças a um raio, fora interpretada como sinal do apocalipse. Obviamente, governantes do estado sentiram a mesma coisa, e passaram a empreender buscas em tabernas. Qualquer homem que estivesse em companhia de um jovem era preso.
Os florentinos mostravam-se extremamente preocupados com a questão, como indica a carta de Niccolò Guicciardini. Os pregadores denunciavam a sodomia com regularidade; acreditava-se que ela atrairia a ira de Deus sobre a cidade. A preocupação dos cidadãos com o assunto culminou, em 1432, com a criação dos oficiais da noite, uma equipe de magistrados dedicada à erradicação da sodomia. Eram a tais oficiais que os florentinos sodomitas eram denunciados ou aos quais eles próprios se denunciavam para evitar penas mais severas (como vimos, este foi o caso Raffaello di Giovanni Canacci, professor de Lionardo, irmão de Michelangelo).
Paradoxalmente, a sodomia em Florença era considerada abominável, mas ainda assim era disseminada. Assim, os florentinos medievais e renascentistas eram cristãos devotos e acreditavam que o sexo entre pessoas do mesmo era pecado. Por outro lado, durante a maior parte do tempo aderiam a algo muito semelhante ao código moral da Roma antiga, onde a sodomia não era estigmatizada, desde que que a praticasse não assumisse a posição passiva.
Não há informações precisas sobre a vida sexual de Michelangelo, mas é certo que ele viveu num meio impregnado pelo homoerotismo. Em 1492, 1494 e 1496, Andrea, um jovem que, assim como Michelangelo, também trabalhou na bottega de Ghirlandaio, foi denunciado aos oficiais da noite. Dizia-se que ele havia sido sodomizado com frequência por um pintor chamado Giglio. Em 1502, o pintor Botticelli, mais velho que Michelangelo e conhecido dele, também foi denunciado aos oficiais da noite por ter um amante jovem. Até o patrono de Michelangelo, Lourenço de Medici, foi alvo de boatos, embora ele fosse famoso por seus casos heterossexuais.
Adaptado de GAYFORD, Martin. Michelangelo - Uma Vida Épica. Tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 59-60 e 115-116.
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