“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Michelangelo e a Cabeça do Fauno

quinta-feira, 1 de abril de 2021

O dia em que o adolescente Michelangelo entrou no jardim das esculturas de Lourenço de Medici (1449-92), na Piazza San Marco, mudou sua vida e o curso da arte ocidental. Era apenas um dos diversos lugares onde se guardava a enorme coleção de obras de arte dos Medici. Lourenço tinha mais de quarenta esculturas clássicas, um número ainda maior de fragmentos arquitetônicos, 5527 moedas, sessenta e três jarros de pedra, 127 gemas, além de obras de todo tipo, entre elas esculturas de Donatello, Verrochio e Bertoldo di Giovanni, este o especialista particular de Lourenço em arte escultórica.

Michelangelo, em algum momento, deparou-se com a cabeça de um velho fauno, risonho e barbudo, na coleção do jardim. Estava desgastada e danificada, mas mesmo assim, ela lhe agradou muito. Ele resolveu então imitar o trabalho que o fascinara e, ao mesmo tempo, tentar aperfeiçoá-lo.

Havia no jardim alguns pedreiros preparando blocos de pedra para um novo edifício que abrigaria a Biblioteca Medici (só efetivamente construída décadas mais tarde, segundo um projeto de Michelangelo). O adolescente pediu uma sobra de mármore aos pedreiros que ali trabalhavam e tomou-lhes emprestado um jogo de ferramentas. Com isso lançou-se ao trabalho de copiar o fauno, com tanta atenção e esmero que em poucos dias levou-o à perfeição, suprindo com sua imaginação o que faltava à peça antiga, sobretudo a boca aberta, como um homem rindo.

De tempos em tempos, Lourenço aparecia para inspecionar a construção da Biblioteca. Segundo uma fonte, "encontrou o moço ocupado com o polimento da cabeça do fauno; e, chegando mais perto, primeiro considerou como era bom o trabalho, e, tendo em conta a idade do menino, ficou maravilhado". Mas Lourenço, tão brincalhão quanto intelectual, disse-lhe: "Fizeste esse fauno velho, mas lhe deixaste todos os dentes. Não achas que a criaturas dessa idade devem faltar alguns dentes?"

Michelangelo, competitivo e perfeccionista como era, não achou graça. Assim que Lourenço saiu, lançou-se ao trabalho e tirou um ou outro dente da boca de sua escultura, fazendo um buraco na gengiva para dar a impressão de que tinha saído pela raiz. Depois desse trabalho odontológico no mármore, "aguardou ansiosamente pela chegada do Magnífico" no dia seguinte.

Lourenço achou graça na reação do rapaz, mas impressionou-se com o fato de ele ter realizado uma obra daquela em tão tenra idade; então decidiu ajudá-lo e favorecê-lo, levando-o para sua própria casa. Assim, Michelangelo deixou o ateliê de um artista (Domenico Ghirlandaio) e se instalou na corte não oficial de Florença.    

Adaptado de GAYFORD, Martin. Michelangelo - Uma Vida Épica. Tradução de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 83-84 e 92-94.

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