“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

O Código de Hamurabi e o perigo da dor coletiva

domingo, 22 de março de 2015

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“Para que o forte não prejudique o mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver todas as disputas e sanar todos os ferimentos”. As duas frases são muito antigas e mostram, aparentemente, a preocupação de um legislador em ser correto e impedir que uma injustiça traga danos aos mais fracos e, principalmente, sirva como instrumento para reparar a dor de uma eventual perda.
A expressão “sanar todos os ferimentos” é importante para ser analisada em separado. Ela tem uma função de metáfora, pois não se refere, evidentemente, à cicatrização física de uma ferida, mas aos danos emocionais de uma ação negativa contra a pessoa ou alguém de seu vínculo, ou ainda, a alguma coisa de sua propriedade.
Quando alguém perde alguém querido por causa de alguma violência, há uma grande dor, e isso é inquestionável. Quando alguém é violentado em algum de seus direitos (integridade física ou emocional) também sofre muito.
A questão fundamental é: como sanar a dor?
Para o imperador Hamurabi, autor das duas primeiras frases deste texto, o melhor instrumento para cicatrizar feridas era punir autores de violência ou ilegalidades na mesma proporção de seu ato, ou ainda com mais rigor. Não sem razão seu código de leis se tornou conhecido pelo resumo de seu propósito: “Olho por olho, dente por dente.”
Hamurabi viveu há aproximadamente 3.700 anos, na Mesopotâmia (Iraque e terras próximas) e seu conjunto de leis é o mais antigo registro de uma legislação. Todo o código está escrito em uma pedra (monólito) com 2,25 metros e até 1,90 metro de circunferência e que foi encontrado apenas em 1901.
Em muitos de seus artigos, o Código de Hamurabi mostrava realmente princípios de Justiça. Um exemplo é o que determinava que honorários de um médico fossem proporcionais à classe social do doente e que as decisões judiciais fossem tomadas em tribunal, com direito à apelação [Outros exemplos: 1º) Tanto o adúltero quanto a adúltera, se surpreendidos em flagrante, deveriam ser condenados à morte; o marido traído poderia, no entanto, perdoar a esposa infiel; 2º) Se um homem resolvesse tomar uma segunda esposa, esta não teria o mesmo nível de igualdade da sua primeira mulher; 3º) Se um homem engravidasse uma escrava, ela assumiria uma posição de igualdade com a sua esposa; 4º) A escrava que engravidasse do seu patrão não poderia ser mais vendida; 5º) O homem não poderia abandonar a esposa quando ela adoecesse, mas deveria mantê-la e sustentá-la em sua casa; 6º) A mulher era livre para pedir o divórcio, recebendo a restituição do dote que entregara ao marido ao se casar].
O juiz, inclusive, deveria deixar sua decisão por escrito, correndo o risco de punição em caso de erro. Mas era um código muito duro. Caso um construtor fizesse uma casa que desmoronasse matando o filho do proprietário, então o filho do construtor também deveria ser morto. Se alguém matasse uma mulher, a filha do assassino também seria morta.
O objetivo nesses casos era punir o autor de violência com a dor, mesmo que isso significasse a morte de inocentes.
Como já foi mencionado, esse código é dos primórdios da civilização. Mas, mesmo com toda essa idade, determinava que a punição de um agressor deveria ocorrer após julgamento e não por ato da vítima ou grupo, até para impedir novas injustiças.
As sociedades passaram por muitos sofrimentos e as legislações foram sendo aperfeiçoadas ao longo dos milênios, fugindo da vingança pura e simples.
Nos últimos tempos, porém, tudo parece retroceder a tempos pré-hamurábicos. A legislação não funciona adequadamente; a força policial não tem força de verdade que ajude a conter a violência, e muitas pessoas, infelizmente, estão agindo para descontar suas dores de uma maneira incontida nas ruas e cidades, com as regras do “olho por olho, dente por dente”.
          Isso não é sinal de força popular, mas de fraqueza do poder público e de toda uma sociedade... Tempos difíceis esses que fazem Hamurabi parecer atual. Desta maneira, a barbárie e não a civilização é quem prevalece, e o risco se amplia ainda mais quando inocentes podem ser julgados como culpados pelos tribunais de exceção criados no meio das ruas. É um risco... grande risco.

Joel Soprani
Publicado no jornal A Tribuna (05/06/2013).

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