“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Sobre os Assírios e o Estado Islâmico

quinta-feira, 12 de março de 2015


Os assírios estiveram entre os povos mais cruéis da Antiguidade. Ironicamente, no final de fevereiro, foi divulgado um vídeo que mostra a destruição de uma coleção de suas estátuas e esculturas, em um museu da cidade iraquiana de Mossul. Nos últimos dias, as cidades de Nimrud e Hatra foram saqueadas e demolidas. Os responsáveis são integrantes do Estado Islâmico, o mais brutal e insano grupo terrorista da História. 

Originários do norte da Mesopotâmia (atual Iraque), os assírios criaram um aparato militar composto por infantaria, cavalaria e carros de combate suplementados por unidades de cerco. Com tal exército profissional, o Império Neoassírio (911 a.C. - 609 a.C.) dominou o Oriente Próximo, a Ásia Menor, o Cáucaso, o Egito e o Mediterrâneo oriental.

Esse expansionismo foi obra do rei Tiglate-Pileser III (744 a.C. - 727 a.C.), que reorganizou o aparelho estatal assírio e reformou o exército. Tal eficiência estava associada a métodos extremamente bárbaros, aplicados contra os inimigos dos assírios. Não é de se estranhar, portanto, que o profeta Jonas tenha relutado em cumprir a ordem de Yahweh para pregar em Nínive, a capital assíria.

O filho de Tiglate-Pileser III, Salmanasar V (726 a.C. - 722 a.C.), foi o responsável pela destruição de Samaria, a capital de Israel, e pela deportação dos israelitas para a Assíria. Anos depois, Senaqueribe (704 a.C. - 681 a.C.) sitiou e saqueou a rebelde Babilônia.

Além de levar as riquezas dos babilônios, Senaqueribe derrubou as estátuas dos seus deuses, destruiu suas casas, palácios e templos, e mandou abrir canais para inundar a cidade. Mas o terror nem sempre funcionava: o último grande rei da Assíria, Assurbanípal (c. 668 a.C. - 627 a.C.), enfrentou uma nova rebelião babilônica. 

Após um longo cerco, a cidade foi controlada. Assurbanípal ordenou então que os rebeldes babilônios sobreviventes fossem esquartejados, e sua carne servida como alimento a cães, porcos, pássaros e peixes. Quando não eram sacrificados, os prisioneiros de guerra dos assírios poderiam ser mutilados, e seus filhos afogados; poderiam ainda ser deportados para trabalhar para o rei, ou instalados em regiões longínquas do império. 

Também era costume assírio decapitar os vencidos e exibir as suas cabeças como troféus, como aconteceu a um rei elamita derrotado. Em 648 a.C. e 647 a.C., os elamitas e as tropas de Assurbanípal retomaram os combates. Desta vez os assírios saquearam a capital elamita, Susa, destruíram os seus templos e levaram os seus deuses. As estátuas dos reis de Elão foram mutiladas, e até os túmulos foram profanados.

Muitas dessas táticas "terroristas" são idênticas às aplicadas atualmente pelos sunitas do Estado Islâmico, cujo califado controla partes do Iraque e da Síria. A fim de impor uma versão ultraconservadora do Islã, perseguem e massacram minorias (como os cristãos e os yazidis), e mesmo muçulmanos "apóstatas". Seus templos e mesquitas são arrasados. Agora os jihadistas se voltam contra o patrimônio histórico assírio. Alegam seguir o exemplo e as ordens do profeta Maomé para destruir "ídolos". 

Como mencionei no início, é irônico que, passados 2700 anos, os assírios estejam a provar do seu próprio veneno. Mas é injusto associá-los unicamente ao militarismo e à crueldade. Em que pese a sua cultura de violência, eles criaram uma civilização. Atestam-no, por exemplo, sua arte, seu correio real (base da admirável rede de comunicação do posterior Império Persa) e, principalmente, a notável biblioteca de Assurbanípal em Nínive, cujos cuneiformes fundamentam nossos conhecimentos da tradição dos escritos mesopotâmicos. Os terroristas do Estado Islâmico, por outro lado, deixarão apenas um legado de selvageria e destruição. 

Publicado no jornal A Tribuna (12/03/2015).

2 comentários:

Unknown disse...

Muito interessante, Raphael. Aprendi umas coisinhas mais hoje, gostei da tua referência subtil à história de Jonas (a mim deu me vontade de ir ler novamente o episódio bíblico) e apesar de saber tão pouco sobre o assunto concordo com a tua conclusão final. Obrigada pela partilha. Continua o teu trabalho. Beijinhos. Madalena

Sanspanfa disse...

Muito obrigado meu estimado Raphael.
É sempre bom percebermos os meandros e a forma como certos acontecimentos do passado sucederam.. Conhecia muitos dos nomes e dos locais, mas não os pormenores preciosos que até mim chegaram através do teu conhecimento sobre a matéria. Artigo oportuno e bem escrito. Continua meu caro. Eu agradeço que o faças.Dizem que a história se repete. Não sei se será assim ou não, mas a ironia a que te referes, relativa ao episódio que se vive actualmente (EI) com os que foram vividos no passado, parece confirmar isso mesmo...
Um grande abraço. A. Cartaxeiro

Enviar um comentário