“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Guerra Fria na América Latina

sexta-feira, 27 de março de 2020

1. Ernesto Che Guevara de la Serna (1928-1967), ao seu modo, é até hoje um símbolo das lutas revolucionárias que marcaram a América Latina no período da Guerra Fria. Médico de formação, partiu de sua terra, a Argentina, em 1953. Visitou a Guatemala e, após o golpe de 1954, teve que deixar o país. De lá seguiu para a embaixada da Argentina no México, onde conheceu Raúl (1931-  ) e Fidel Castro (1926-2016). Estes haviam iniciado uma luta revolucionária em 26 de julho de 1953, com o ataque ao Quartel de Moncada, em Santiago de Cuba. Eles então planejaram derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista, iniciada por meio de um golpe em 1952. Com o fracasso da tentativa, os irmãos Castro passaram uma temporada na prisão e, a seguir, o exílio no México.

2. Em fins de 1956, todavia, Che Guevara e cerca de oitenta homens acompanharam os Castro, que voltaram à porção oriental de Cuba a bordo do iate Granma. De lá eles se espalharam pelas montanhas da hoje lendária Sierra Maestra, onde organizaram uma guerrilha. Camilo Cienfuegos seria um dos principais líderes revolucionários do Movimento 26 de Julho, responsável por levar o exército de Batista a amargar duras derrotas. Para seu sucesso, o apoio de camponeses foi fundamental, o que era assegurado por meio da reforma agrária nas regiões controladas pelos revolucionários; foi importante também o apoio do Partido Ortodoxo (anticapitalista e populista), de Eduardo Chibás. O Partido Comunista Cubano só aderiu aos rebeldes em fins de 1958, uma vez que defendia a via pacífica para o socialismo, conforme orientação do XX Congresso do Partido Comunista da URSS.

3. Em 31 de dezembro de 1958, Fulgêncio Batista e seus principais ministros abandonaram o país. No dia seguinte, os rebeldes convocaram uma greve geral e, no dia 8 de janeiro de 1959, Fidel Castro entrou triunfante em Havana. No mês de maio, promulgou-se a Lei de Reforma Agrária e, no ano seguinte, empresas e bancos estadunidenses foram nacionalizados. Os Estados Unidos, em resposta, restringiram o seu mercado para a compra do açúcar cubano e cortaram o fornecimento de petróleo ao país. A União Soviética então se propôs a comprar o açúcar cubano e a fornecer petróleo ao regime de Castro. Em abril de 1961, cubanos exilados na Flórida e treinados pela CIA tentaram desembarcar na Playa Girón (baía dos Porcos) para derrubar o governo de Castro, mas foram derrotados.  

4. Temendo pela vulnerabilidade da Revolução, no dia 16 de abril do mesmo ano, Fidel Castro declarou que o regime cubano passava a ser socialista. Cuba alinhou-se à União Soviética e aceitou sua ajuda e ingerência. Consequentemente, passou a sofrer o embargo dos Estados Unidos e foi expulsa da Organização dos Estados Americanos (OEA). Valendo-se da posição estratégica de Cuba, os soviéticos instalaram mísseis em seu território, apontando-os para os Estados Unidos. Em outubro de 1962, no entanto, o governo de John Kennedy soube da operação e teve início uma das piores crises da Guerra Fria (a dos Mísseis de Cuba). Os mísseis acabaram removidos do país caribenho, sem que o governo da ilha fosse informado.

5. Apesar disso, Castro permaneceu leal a Moscou, de quem recebia generosos subsídios. Che Guevara, após exercer algumas funções de Estado em Cuba e no exterior, partiu para se envolver em guerrilhas na África e na América do Sul. Em 9 de outubro de 1967, Che foi assassinado pelos soldados que o capturaram nos rincões da Bolívia. Logos nos primeiros anos, as liberdades individuais e a produção cultural em Cuba foram progressivamente cerceadas por instâncias oficiais de controle, censura e punição. Dentre as principais ações de repressão, destaca-se El Paredón, os fuzilamentos dos "inimigos da Revolução". O próprio Che Guevara conduzia as execuções sumárias; saiba mais através do documentário Che Guevara: Anatomia de Um Mito.

6. No Chile, nas eleições de 1964, Eduardo Frei, do Partido Democracia Cristã, venceu Salvador Allende, de linha socialista. Frei deu continuidade às reformas modernizantes, desenvolvimentistas e antioligárquicas em curso no Chile desde 1938. Nas eleições de 1970, no entanto, a Democracia Cristã e o Partido Nacional se antagonizaram, o que facilitou a vitória eleitoral de Salvador Allende, da Unidade Popular (UP). A UP reunia os partidos Socialista, Comunista, Radical e o Mapu (Movimento da Ação Popular Unitário), coligados em torno da via chilena ao socialismo.

7. O programa da UP visava promover o desenvolvimento nacional, emancipando a economia da subordinação ao capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, promover a justiça social, melhorando a oferta de emprego e os patamares salariais. Nesse sentido, algumas empresas foram expropriadas, terras no campo foram ocupadas, foi lançado um projeto de nacionalização do cobre e ações de bancos foram compradas. A direita reagiu. Desde o início, o Partido Nacional procurou boicotar o governo da UP. Em 1973, o Partido Nacional e os democratas cristãos se reaproximaram, isolando a UP. Por outro lado, grupos políticos mais radiciais que integravam a UP formaram focos de guerrilha; ao combatê-los, Allende descontentou muitos aliados. 

8. Assim, a partir de fins de 1971, o cenário era de aguda polarização, o que levou a experiência socialista chilena a ser breve. Allende ainda tentou contornar o problema da escassez de produtos através das Japs (Juntas de Abastecimento e Preço); além disso, convidou as Forças Armadas para assumirem o Ministério da Defesa. Paralelamente, as relações com o Poder Legislativo se deterioraram. Em meados de 1973, já era forte o discurso em favor de um governo forte para salvar o país do caos. Finalmente, no dia 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet, ordenou o bombardeio do Palácio La Moneda. Allende procurou resistir, mas cometeu suicídio ao se ver derrotado. A feroz ditadura de Pinochet se estenderia até 1990. 

9. Na Nicarágua, em 1933, Anastásio Somoza García chegou ao poder com o apoio norte-americano. Ele ordenou a morte de Sandino, um líder popular, em 1934. Assim começava o "reinado" da família Somoza no país - ele duraria 43 anos, e seria marcado pela violência, pela exclusão social, pela censura e pela corrupção. Em 1961, Carlos Fonseca criou a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), que promoveria guerrilhas até 1979, quando conquistou o poder. A atuação de padres e freiras ligados à Teologia da Libertação foi fundamental para aproximar a guerrilha da população pobre. Apesar de revolucionária, a vanguarda da FSLN se aliou a Alfonso Robelo, importante nome da comunidade empresarial, e a Violeta Chamorro, da tradicional elite política.

10. Assim que chegaram ao poder, os sandinistas procuraram promover a reforma agrária, estabelecer uma economia mista, nacionalizar as minas e estatizar as fazendas e fábricas da família Somoza. No campo da cultura, os Centros Populares de Cultura e a Associação Sandinista de Trabalhadores da Cultura tornaram-se grandes organizadores de eventos culturais com fins a afirmar uma identidade coletiva e revolucionária. Mas o governo sandinistas encontrou um país arrasado por longos anos de ditadura e guerra civil, carente de recursos e, além de tudo, a partir de 1981 passou a ser duramente fustigado pelas ações dos "contras", contrarrevolucionários financiados pelo governo de Ronald Reagan. Desgastado, em 1990, Daniel Ortega perdeu as eleições para Violeta Chamorro, sua antiga aliada e agora apoiada pelos Estados Unidos. Em 2006, Ortega voltaria a se eleger presidente da Nicarágua.

11. Paralelamente a essas revoluções e vitórias eleitorais da esquerda, os Estados Unidos e grupos estratégicos das elites nacionais latino-americanas, temendo o "efeito dominó" na expansão internacional do comunismo, respaldaram intervenções militares na esfera política. Centros de inteligência criados nessa época, em diferentes países, passaram a definir os contornos da chamada Doutrina de Segurança Nacional, voltada ao inimigo interno e suas ações subversivas. A defesa nacional começou a se confundir com a "política geral do Estado". Até os golpes militares, existia um alto grau de mobilização política em países como a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, o Equador, o Peru e o Uruguai (o que envolvia sindicatos, partidos de esquerda, ligas camponesas, guerrilhas indígenas, movimentos estudantis, etc.). Os regimes militares então desarticularam violentamente esses setores, e somaram-se a isso políticas socialmente "excludentes".

12. No Peru, não haviam sido implementadas muitas das reformas sociais e políticas que, em países como a Argentina e o Brasil, haviam sido levadas a cabo por Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas. Assim, a ditadura militar peruana, que teve início em 3 de outubro de 1968, com a deposição de Fernando Belaúnde Terry, teve uma estrutura política diferente das demais ditaduras latino-americanas. A transformação almejada pelas Forças Armadas do Peru passava pelo desenvolvimento integral da nação na realização de reformas sociais. Os militares se consideravam politicamente neutros e se amparariam num corpo de tecnocratas. Em junho de 1969, sob o governo do general Juan Velasco Alvarado (1968-1975), aprovou-se a Lei de Reforma Agrária; no ano seguinte, foi aprovada a Lei Geral de Indústrias, que estabelecia o papel dirigente do Estado no desenvolvimento fabril e o seu controle sobre a indústria básica. 

13. As resistências às reformas desgastaram o governo de Velasco. Sob o seu comando foram levadas a cabo ações de grande impacto, como a desapropriação da empresa mineradora Marcona Mining e a expropriação das grandes fazendas açucareiras da região norte do Peru. Em 1975, o general Velasco foi destituído do governo, sendo sucedido pelo general Morales Bermúdez, que governou até 1980. Nesses anos, muitas das plataformas reformistas perderam força. A frustração que então se instalou em parcelas da população ajuda a explicar o surgimento, nos anos 1980, do grupo guerrilheiro de orientação maoísta Sendero Luminoso, o qual promoveu ações extremamente violentas em amplas áreas do território nacional. 

14. Na Argentina, o golpe militar de 1930 marcou a entrada das Forças Armadas na esfera política. Em 1943 e em 1955, facções militares voltaram a intervir, abrindo caminho para o peronismo e, depois, ceifando-o do poder. Em 1962, voltaram a depor um presidente democraticamente eleito, Arturo Frondizi, e estabeleceram um governo de fachada civil que se estendeu até 1963. Neste ano, Arturo Illia, da União Cívica Radical del Pueblo, venceu as eleições. Em 28 de junho de 1966, o general Juan Carlos Onganía depôs Arturo Illía, na chamada "Revolución Argentina". Embora tivesse se cristalizado a imagem do governo democrático como passivo e inoperante, o novo regime logo frustrou as expectativas daqueles que aprovaram inicialmente a intervenção autoritária.

15. O governo de Onganía não pareceu querer conduzir a fundo um projeto desenvolvimentista e, em 1970, foi deposto por outra facção militar. Em fins desse ano, sem condições de estabelecer um novo consenso nacional, o governo permitiu que Perón retornasse de seu exílio na Espanha franquista. Ele retornou em 20 de junho de 1973, quando houve o Massacre de Ezeiza. Na presidência pela última vez, Perón inclinou-se ao conservadorismo. Morreu em 1º de julho de 1974. A presidência passou à sua vice e viúva, Maria Estela Martínez de Perón, deposta em 24 de março de 1976, pelas Forças Armadas. Nos cinco anos seguintes, a Junta Militar foi presidida pelo general Jorge Rafael Videla, condenado à prisão perpétua em 2010 por "terrorismo de Estado" (morreu na prisão em 2013). Videla foi sucedido pelos generais Roberto Marcelo Viola (março de 1981) e Leopoldo Fortunato Galtieri (final de 1981). Galtieri renunciou em 1982, abrindo caminho para a redemocratização, em 1983.

Bibliografia consultada: PELLEGRINO, Gabriela & PRADO, Maria Ligia. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2016, p. 151-175.

0 comentários:

Enviar um comentário