“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

A Crise das Cidades Romanas

sábado, 11 de novembro de 2017

Rotas comerciais do Império Romano, por volta de 180 d.C. 
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Em poucas épocas metade do mundo viveu com tamanha indiferença pela outra metade como ao longo do século II do Império Romano. A classe governante tradicional orgulhava-se em preservar as antigas particularidades da cidade. As aristocracias gregas, por exemplo, colecionavam os ritos e costumes sacerdotais, provas das tradições locais, temerosas do risco da esterilização cultural no vasto império do qual faziam parte. Assim, insistiam em ver o mundo romano como um mosaico de cidades e tribos distintas. 

Foi justamente nessa época que Taciano (120-180), um jovem estudante da Síria, visitou Roma. Durante todo o caminhou, comunicou-se em grego e verificou que por toda parte existia a mesma cultura filosófica grega. O que o chocou, no entanto, foi o particularismo clamoroso das cidades. "Podia haver um só código de leis para toda a humanidade e uma única organização política", escreveu ele. 

Taciano fala por milhares de homens cuja experiência do Império Romano era completamente oposta à das classes dominantes. Para os senhores gregos e romanos bem relacionados, a paz do Império dava-lhes a oportunidade de restabelecerem e reforçarem os costumes da cidade antiga. Para os mais humildes, era diferente. Significava horizontes mais vastos e ocasiões novas de viajarem; significava ainda a erosão das diferenças locais através do comércio e da emigração, o enfraquecimento das antigas barreiras ante a nova riqueza e o novo conceito do direito. 

Enquanto as cidades gregas e da costa egeia da Ásia se orgulhavam da preservação das suas características locais, os habitantes da Frígia, Bitínia e Capadócia entravam num novo mundo. Os seus mercadores mantinham-se em constante movimento - um mercador frígio, por exemplo, visitava Roma 72 vezes ao longo da sua vida. 

Os homens que se libertavam da existência tradicional e os itinerantes foram os primeiros a serem tocados pelos inquietos pensamentos dos religiosos do fim do século II. Comerciantes, administradores livres e mulheres educadas agora se consideravam "cidadãos do mundo", e muitos dentre eles consideravam o mundo solitário e impessoal. Assim, por volta do ano 200, as comunidades cristãs eram formadas pelas classes médias mais baixas e de respeitáveis artífices das cidades, e não mais pelos "humildades e oprimidos".  

Um dos acontecimentos dominantes dos dois primeiros séculos da Era cristã foi a difusão dos cultos orientais na Europa ocidental. Estes cultos disseminaram-se porque davam ao emigrante e, posteriormente, ao aderente local um sentimento de intimidade e de lealdade que perdera nas funções civis da cidade. Isso foi revelado pelo espontâneo crescimento das associações dos pobres. Em vida, eles poderiam compartilhar os momentos das refeições; após a morte, poderiam ser enterrados e lembrados pelos companheiros. A grande proliferação de manuais de astrologia, de livros de sonhos e de feitiçaria revelam, na forma mais negra, as dificuldades deste novo público, despreparado para uma vida cuja paz não era segura. 

Adaptado de BROWN, Peter. O Fim do Mundo Clássico - De Marco Aurélio a Maomé. Tradução de António Gonçalves Mattoso. Lisboa: Verbo, 1972, p. 65-67.   

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