“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

As vítimas de Stalin

terça-feira, 29 de março de 2016


Prisioneiros em Vorkuta (1945). Esse campo existiu entre 1938 e meados da década de 1960 e em alguns momentos chegou a ter mais de 73 mil prisioneiros. Eles trabalhavam num mina de carvão localizada na região. Fonte: Spiegel

Com a morte de Lênin, em 1924, Leon Trotsky e Joseph Stalin passaram a disputar o poder na União Soviética. O primeiro defendia a "revolução permanente", a ideia de que o socialismo só seria viável se fosse difundido para outros países; Stalin, por outro lado, pregava a consolidação do socialismo na União Soviética, seguindo a fórmula do "socialismo num só país".

Stalin acabou vencendo a disputa e tornou-se o líder soviético supremo. Trotsky partiu para o exílio, onde fez oposição à ditadura personalista que se instalara na União Soviética. Em 1940, contudo, foi assassinado a golpes de picareta a mando de Stalin. 

Além dos expurgos no Partido Comunista - nenhum regime superou o de Stalin na perseguição aos comunistas - a ditadura stalinista era ferrenhamente ateia. No dia 22 de maio de 1929, a Constituição soviética foi revista para tornar ilegal a propaganda "religiosa". Ao mesmo tempo, essa revisão legalizava a propaganda "antirreligiosa". Igrejas, mesquitas e sinagogas foram fechadas, e muitas delas tornaram-se clubes, cinemas ou instalações governamentais e partidárias. Milhares de padres, imãs e rabinos foram presos. Centenas de mosteiros e catedrais, muitos deles tesouros arquitetônicos e históricos de valor incalculável da Rússia medieval, foram demolidos. Enquanto isso, prosseguia a execução em massa de kulaks (camponeses abastados), com especial dimensão na Ucrânia, onde cinco milhões de camponeses foram mortos, a maioria por inanição (morte por falta de alimentos).

Entre 1929 e 1934, mais de 15 milhões de camponeses foram expulsos de quase 20 milhões de propriedades agrícolas familiares e obrigados a partir para explorações agrícolas do Estado. As quase 20 milhões de propriedades familiares foram concentradas em apenas 240 mil fazendas coletivas. A sorte dos kulaks, contudo, foi pior. Os que não foram mortos de imediato foram enviados para imensos campos de trabalhos forçados na Rússia setentrional e na Sibéria. Em 1934, já haviam sido aniquilados.

A história dos campos de trabalhos soviéticos foi narrada por Anne Applebaum em Gulag - Uma história dos campos de prisioneiros soviéticos (Ediouro, 2004). Vencedor do Prêmio Pulitzer de não ficção de 2004, está esgotadíssimo no Brasil.

A palavra Gulag é um acrônimo da expressão russa para "Administração Central dos Campos". Com o tempo, passou a indicar, além da administração dos campos de concentração, o próprio sistema soviético de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades. Assista: O que eram os Gulags?.

As raízes do Gulag estão na Rússia czarista, nas turmas de trabalho forçado que operaram na Sibéria do século XVII até o início do século XX. Quase imediatamente após a Revolução Russa, tornou-se parte integral do sistema soviético. Em 1921, já existiam 84 campos de concentração no país, a maioria para "reabilitar" os "inimigos do povo".

A partir de 1929, Stalin passou a utilizar o trabalho forçado para acelerar a industrialização da União Soviética e para explorar recursos naturais do extremo norte. 
Com o impulso das prisões em massa de 1937 e 1938, os campos se expandiram rapidamente, processo que permaneceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e nos anos seguintes, alcançando seu apogeu no início dos anos 50. Os presos trabalhavam em quase todas as atividades imagináveis e, na realidade, viviam num Estado dentro do Estado. Durante a década de 1970 e início da década de 80, alguns campos foram reformulados e usados como cárcere para ativistas democráticos, nacionalistas antissoviéticos e criminosos. Mikhail Gorbatchev, neto de prisioneiros do Gulag, só começou a dissolver os campos políticos em 1987. 

Dentre os vários aspectos que poderia destacar do livro, 
mencionarei dois. O primeiro é a grande semelhança entre o totalitarismo comunista e o totalitarismo nazifascista. Sobre isso, o trecho abaixo é emblemático:

Se não estava escuro, se não se encontravam doentes e se demonstravam interesse em olhar, a primeira coisa que os presos viam na chegada era o portão do campo. No mais das vezes, o portão exibia um slogan. Da entrada de um dos lagpunkts, "pendia um arco-íris de compensado com uma faixa por cima, na qual se lia que 'Na URSS, o trabalho é questão de honestidade  honra, bravura e heroísmo!'". Numa colônia de trabalho nos subúrbios de Irkutsk, Barbara Armonas foi acolhida com esta faixa: "Com trabalho honesto, saldarei meu débito para com a pátria." Chegando em 1933 a Slovetsky (que se tornara prisão de segurança máxima), outro preso viu um aviso que dizia: "Com mão de ferro, conduziremos a humanidade à felicidade!" Yurii Chirkov, detido aos catorze anos, também deparou com um aviso em Slovetsky: "Por meio do trabalho, a liberdade!", slogan que é tão constrangedoramente parecido quanto possível com o Arbeit macht frei ("O trabalho liberta") que se via sobre os portões de Auschwitz. (p. 221)


Assim, fica evidente que o nazismo e o comunismo são siameses até nos detalhes. Caso ainda tenha dúvidas, leia O passado de uma ilusão, de François Furet. 

Anne Applebaum lembra ainda que, se o Gulag era opressivo e desumano, a União Soviética também o era. Mas, obviamente, como um sistema de trabalhos forçados (e, sob Stalin, também de extermínio) o Gulag era um inferno sobre a Terra. Por isso certas duplas de prisioneiros, ao planejarem uma fuga, convidavam um terceiro prisioneiro para se unir a eles; a ideia era devorá-lo quando os víveres acabassem. As pessoas enlouqueciam, quebravam qualquer tabu ou princípio moral, simplesmente para se livrarem daquele sistema abjeto. Os que nele permaneciam corriam o risco de cometer atos de loucura inimagináveis, como fica claro no testemunho de Edward Kuznetsov: 

Eu vi condenados engolindo enormes quantidades de pregos e arame farpado; vi-os engolindo termômetros de mercúrio, sopeiras de peltre (...), peças de xadrez, dominós, agulhas, vidro moído, colheres, facas e muitos outros objetos semelhantes. Vi condenados costurando a boca e os olhos com linha ou arame, pregando botões no próprio corpo; ou pregando testículos na cama [...] Vi condenados cortando a pele dos braços e das pernas e puxando-a como se fosse uma meia (...); vi condenados cobrindo-se de papel e ateando-se fogo, vi condenados cortando os dedos, o nariz, as orelhas, o pênis [...]. (p. 600)

Kuznetsov lembra que tais atos (dos quais alguns tive que omitir) NÃO eram feitos em protesto. Às vezes a automutilação ocorria sem qualquer motivo aparente. Isso ilustra o nível de insanidade provocado pelo aparelho repressor do totalitarismo comunista. O "horror vermelho", com tantas vítimas e testemunhos, só é desconhecido no Ocidente devido à desinformação promovida pelo marxismo cultural. Mas essa é outra história.

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