“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos Os Pilares do Ocidente

domingo, 26 de abril de 2020

As cariátides, templo do Erecteion, Acrópole de Atenas (séc. V a.C.). 

1. O judaísmo (e, mais tarde, o cristianismo) criou o propósito individual e o coletivo. Ele o fez, em primeiro lugar, postulando que só havia um Deus, com um plano geral por trás de tudo. Segundo, afirmou que os seres humanos são submetidos a padrões comportamentais por motivos morais. Terceiro, o judaísmo postulou que a história progrediu: o homem tem a responsabilidade de buscar a Deus e promover a redenção da humanidade. Isso contrasta com a noção sem começo ou fim da história para muitas culturas. Por fim, o judaísmo postulou que Deus dera livre-arbítrio aos homens, responsáveis assim por suas escolhas, escolhas essas que importam. 

2. Além de tudo isso, o judaísmo postulou que Deus tem regras - o Universo não é aleatório; de forma geral, essas regras são detectáveis e amplamente compreensíveis. Deus tem um padrão, ainda que não possamos compreendê-lo plenamente. A noção de universo moral é uma criação judaica. Por fim, o judaísmo é antimaterialista; rejeita peremptoriamente a ideia de que tudo o que existe se resume ao que podemos ver, ou que o espiritual deve se manifestar fisicamente.

3. Antes da Tanach (a Bíblia hebraica), o homem era apenas poeira cósmica. Os deuses eram arbitrários, deixando pouca margem para o indivíduo seguir seu caminho no mundo. O politeísmo defendia que os deuses eram santos e, portanto, os seres humanos deveriam servir-lhes; o judaísmo, por sua vez, sustenta que devemos ser santos, imitando Deus. A Torá se concentra tanto em sacrifícios aparentemente pagãos porque eles objetivavam transformar, ensinando algo. A revelação nos ensina a ser bons: ensina-nos quais valores devemos ter, quais características devemos cultivar. 

4. Apesar disso, a Bíblia tem pouco a dizer sobre o melhor sistema para cumprir o propósito individual e o coletivo. Na melhor das hipóteses, o judaísmo é ambíguo quanto ao poder estatal. Ela expressa certo medo a respeito da monarquia. Moisés diz que o povo nomeará um rei - não diz que Deus enviará um monarca. Ao entrarem em Canaã, os israelitas tiveram juízes. Um deles, Gideão, recusou-se a se tornar um rei. Há uma ampla base na Bíblia que corrobora a noção de que várias formas de organização do Estado para resguardar o propósito individual e o coletivo funcionam. 

5. Sem Jerusalém não haveria Ocidente, mas sem Atenas, também não. A civilização grega nos ensina que somos capazes de usar nossa razão para ir além de nós mesmos. Atenas nos ensina a liberdade para florescer, e também por que deve florescer. Utilizar a razão humana para escapar da caverna e levar o conhecimento da luz: esta era a tarefa da antiga Atenas - uma tarefa que une Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.). Os gregos nos legaram a lei natural, a ciência e a base do governo legalmente construído.

6. O cristianismo representou a primeira tentativa real de fundir o pensamento judaico com o grego. A religião cristã era mais judaica em sua visão de Deus e das buscas do homem no mundo, mas também muito mais grega em sua universalidade. O cristianismo universalizou a mensagem do judaísmo. Seu foco na graça, e menos na ação, tornou a religião muito mais acessível do que o judaísmo, em um sentido prático. No entanto, ao tornar a fé primordial, o cristianismo rebaixou o papel da razão grega na vida dos seres humanos, confundindo o logos com a pessoa de Jesus.  

7. Ao contrário do judaísmo, o messias cristão (sobretudo a partir de Paulo) é espiritual, e não político. Agostinho de Hipona (354-430) contrastou a Cidade de Deus, uma comunidade de cristãos que gira em torno da virtude, com a Cidade do Homem, a pólis tão apreciada pelos gregos, materialista e incapaz de gerar felicidade. Entretanto, quando os donatistas, uma seita cismática, ameaçou a Agostinho e ao regime sob o qual vivia, ele não hesitou em recorrer às autoridades romanas para os aniquilar, usando o argumento da emergência. Sua fundamentação seria a base da arrogação do poder pela Igreja Católica ao longo dos séculos vindouros.

8. Os cristãos foram terrivelmente acossados pelo Império Romano durante a Grande Perseguição (303-313). Entre 311 e 313, contudo, o cristianismo passou a ser uma religião tolerada. Até o fim do século IV seria uma religião promovida e, finalmente, oficial do império. Com a desintegração do Império Romano do Ocidente, em 476, a Igreja Católica surgiu rapidamente para preencher a lacuna de poder, centralizando tanto o poder temporal quanto o espiritual. Ao longo da Idade Média, a Igreja seria bastante ativa na Cidade do Homem, chegando a ser a maior proprietária de terras da Europa Ocidental no século X. Os reis encontraram sua legitimidade por meio do conduto da Igreja e lutaram com ela para expandir seu poder.

9. Durante a suposta "Idade das Trevas" o progresso continuou. O sistema monástico centralizou o aprendizado em mosteiros, com o sistema girando em torno das Escrituras. As artes liberais ensinadas pelos gregos e pelos romanos sobreviveram, ainda que de forma espiritualizada. Enquanto isso, a Idade Média experimentava a revolução tecnológica na agricultura, a ascensão do comércio e a instituição de novas formas de arte, além de desenvolvimentos na arte da guerra. No século XI, a razão grega foi reintegrada no Ocidente. 

10. Logo surgiria a escolástica, que abriu as portas para uma investigação renovada sobre a unidade entre Deus e o Universo que criou, e entre a fé e a razão. A escolástica tornou-se uma filosofia dominante da Igreja, mas as maiores tentativas de reunir Atenas e Jerusalém vieram nos séculos XII e XIII. Maimônides (1135-1204) e Tomás de Aquino (1225-1274) encabeçaram essa emergente tentativa de unificar Atenas e Jerusalém, o que foi possível graças à redescoberta, no Ocidente, das obras de Aristóteles. Maimônides e filósofos muçulmanos, como Al-Farabi (872-950), preocuparam-se com provas da existência de Deus. O cristianismo não apresentou provas lógicas para a existência do Criador, mas Aquino procurou usar a razão para reforçar a fé.

11. No final do século XIII, a civilização ocidental estava completamente sob o domínio do catolicismo. Apesar disso, conflitos internos por vezes tomava grandes proporções, como em 1303, quando o papa Bonifácio VII foi preso pelas forças de Filipe IV, da França, resultando no exílio temporário do papado. Marsílio de Pádua (1275-1342) lutou contra a noção de plenitude do poder papal. No campo científico, porém, o ambiente era mais ameno. Ao contrário da opinião popular, as descobertas não eram vistas como heréticas ou perigosas para o domínio da Igreja. Nicole Oresme (1320-1382), bispo de Lisieux, descobriu a rotação da Terra. Já o cardeal de Brixen, Nicolau de Cusa (1401-1464), teorizou que a Terra se movia pelo espaço. Nicolau Copérnico (1473-1543), formulador da teoria heliocêntrica, estudara numa escola paroquial e foi tratado de forma digna pela Igreja em sua época.

12. Contudo, graças a uma nova onda religiosa fundamentalista, suas ideias foram proibidas em 1616. Galileu Galilei (1564-1642), também defensor do heliocentrismo, foi forçado pela Inquisição a se retratar. Contudo, apesar dessa experiência amarga, Galileu nunca abandonou a certeza de que a ciência era um caminho para Deus. Essa mesma filosofia permeou Johannes Kepler (1571-1630), o descobridor das leis do movimento planetário. Sua filosofia também flertava com a de Isaac Newton (1642-1726). Segundo o formulador da lei da gravitação universal, "oposto a [Deus] é o ateísmo, na cabeça, e a idolatria, na prática. O ateísmo é tão insano e odioso para a humanidade que nunca teve muitos mestres."

13. Francis Bacon (1561-1626) propôs que a ciência deveria ser aplicada para determinar o melhor modo de governar e a ética. Diferentemente dos modernos cientistas sociais, no entanto, a sugestão de Bacon para a governança e a ética era emprestada da tradição judaico-cristã. Embora fosse um defensor do método científico, Bacon ridicularizava a ideia de um Universo sem Deus. René Descartes (1596-1650) acompanhou Bacon ao renegar a teleologia antiga, mas manteve a fé na Bíblia e em Deus. Contudo, ambos lançaram as bases para a ascensão do deísmo. Ao extirpar as causas finais da ciência, separando Deus do mundo natural, o projeto científico moderno removeu a religião e o propósito do domínio da razão.

14. O ceticismo em relação à Igreja já demonstrado por Marsílio de Pádua foi levado a um nível mais alto com Nicolau Maquiavel (1469-1527). Ambos consideravam a Igreja Católica um disfarce para a opressão. Em O Príncipe, Maquiavel propõe que os seres humanos são movidos pela paixão, e não pela razão, segundo a noção de virtude aristotélica. A Igreja Católica baniu as obras de ambos. Logo, os problemas da instituição se agravariam, com a ascensão do luteranismo, que desafiaria seu poder espiritual e temporal. Lutero rebaixou a razão como secundária à fé, menosprezando assim a soberania popular, embora fosse favorável a restrições a monarcas absolutistas. Calvino, na mesma linha, acreditava em uma aristocracia governada por freios e contrapesos.

15. A fragmentação religiosa que Lutero e Calvino acabara por promover, bem como a devolução da autoridade individual decorrente, no entanto, resultaram num verdadeiro movimento transnacional de afastamento do autoritarismo do governo. Os horrores da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) forçaram a escolha entre a tolerância religiosa ou a carnificina em massa. Dessa escolha, nasceu a noção de direitos humanos. O precursor desse conceito foi Hugo Grócio (1583-1645) que, ao contrário de Maquiavel, Lutero e Calvino, entendia a razão humana como primordial, refletindo muito mais o pensamento antigo. Ao combinar a noção de direito de ação com a ideia de que os soberanos estão sujeitos aos ditames da lei natural, Grócio preparou o terreno intelectual para Thomas Hobbes (1588-1679). 

Bibliografia consultada: SHAPIRO, Ben. O Lado Certo da História: Como a Razão e o Propósito Moral tornaram o Ocidente Grande. Traduzido por Carolina Gaio. Rio de Janeiro: Alta Books, 2019, p. 20-82. 

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