“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

#15Fatos A República Velha

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Charge de Storni, revista Careta, ano 18, nº 897, 29 de agosto de 1925.

1. O estabelecimento da República (ou da Federação, para sermos mais exatos) permitiu que as diversas oligarquias locais ascendessem ao poder, no seu âmbito regional. Tais oligarquias assumiram o controle da máquina administrativa, em particular da fiscalidade, construindo mecanismos para sua eternização no poder. Essa era a alma do coronelismo. Em muitos estados, como Ceará, Alagoas e Mato Grosso, o fim do Império implicou que grandes latifundiários passaram a utilizar o Estado como uma agência distribuidora de favores e reprodutora de suas necessidades de base política e econômica. Em outros estados, onde a complexidade econômica e a existência de uma opinião pública eram mais fortes, como em São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o partido político passou a atuar como o mediador entre os clãs familiares e o Estado.

2. O nepotismo era um dos instrumentos mais eficazes para a reprodução do poder político local. Enquanto isso, no nível mais baixo da sociedade, o cidadão era o grande ausente da vida política. Ainda assim, o povo enquanto massa organizada contra o poder oligárquico, fez sua aparição na cena política. Os dois maiores movimentos de rebeldia contra a República Velha foram os movimentos camponeses messiânicos de Canudos, na Bahia (1897) e a Guerra do Contestado, no Paraná (1915). Esses movimentos chegaram a pôr em xeque o poder militar da oligarquia e, por isso, sofreram dura repressão, até o extermínio.

3. No plano econômico, a dominação da oligarquia do Sudeste, particularmente do setor cafeeiro, sobre os principais órgãos federais foi a mais completa. A associação dos interesses agrários de São Paulo e de Minas Gerais, expressa na denominada "política do café-com-leite" conseguiu pôr a serviço dos plantadores toda a máquina estatal, em especial no tocante à preocupação obsessiva com a manutenção dos preços do café. Assim, tal como na política, os interesses diretos dos cafeicultores levaram a um rompimento, na prática, com o credo liberal, mesmo que ainda considerado como a doutrina oficial da República.

4. Os primeiros anos da República, é bem verdade, tinham representado um esforço de renovação da prática econômica do país. O governo Deodoro da Fonseca (1889-1891) tentara elevar as tarifas aduaneiras (Decreto 836, de 11/10/1890, de Rui Barbosa) e facilitar o crédito industrial através da criação de bancos regionais, assim como suspender os empréstimos à lavoura cafeeira decadente. Em consequência da criação desses bancos e da expansão do crédito barato, houve uma forte inflação. A guerra civil no Sul do país, fruto do choque de oligarquias, e a Guerra de Canudos, aumentaram os gastos federais, ao que se somaram os efeitos da crise mundial de 1892-93. Passada a "República da Espada" (1889-1894), se cristalizou a vitória dos coronéis na primeira presidência civil do país com Prudente de Morais (1894-1898), um republicano histórico estreitamente vinculado à cafeicultura de São Paulo.

5. Campos Sales (1898-1902) renegociou a dívida externa, consolidada através de um empréstimo-monstro - o Funding Loan, de 1898. As finanças brasileiras passaram a ser monitoradas pela casa N. M. Rotschilds & Sons, que assumiu o controle dos portos do Rio de Janeiro, Santos, Belém e Manaus. Avançou a desindustrialização do país, ao passo a queda dos preços da saca de café, cujo ponto mais baixo se deu entre 1902 e 1905, levou o governo a intervir. Os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais firmaram, então, o Convênio de Taubaté, que garantia ao café um preço mínimo preestipulado. Além disso, Campos Sales concebeu a política dos governadores, segundo a qual as disputas políticas seriam reduzidas ao máximo no âmbito de cada estado, prestigiando os grupos mais fortes; buscaria-se um acordo entre a União e os estados, com o governo central sustentando os grupos dominantes estaduais que, em troca, apoiariam a política do presidente da República. 

6. No Nordeste, a crise atingiu profundamente a produção açucareira; avançar sobre as terras camponesas foi, então, uma das muitas respostas da grande plantação à crise. Essa "maré" de expropriações, em particular entre 1890 e 1920, explica, em parte, a abundância de movimentos messiânicos e a violência das lutas camponesas no Nordeste. Na Amazônia, o extrativismo da borracha atingiu seu auge, enriquecendo cidades como Manaus e Belém do Pará, riqueza atestada no fausto dos seus teatros de ópera. Logo em seguida, vítima do seu próprio empirismo e da concorrência das plantações britânicas no Sudeste Asiático, a economia da borracha entrou em crise. Por longo tempo, a Amazônia permaneceu isolada e com uma economia estagnada, à espera dos projetos madeireiros, mineradores e pecuaristas que devastaram a floresta a partir dos anos 1970.

7. A densidade demográfica do Sudeste, que em 1872 estava 1,34 à frente do Nordeste, em 1920 já chegava a ser o dobro. Dos cerca de três milhões de imigrantes estrangeiros que entraram no Brasil de 1884 a 1929, só o Sudeste recebeu cerca de dois terços. Apesar disso, a imigração estrangeira para o Brasil foi pequena se comparada a outros países da América; sua importância esteve menos no seu número, do que na sua contribuição ao "fortalecimento da parcela economicamente ativa da população". O papel dos imigrantes foi importante no crescimento da pequena produção voltada para o mercado interno, quer em se tratando da produção de alimentos, quer em sua participação no desenvolvimento industrial. Dos 4.158.717 imigrantes que entraram no Brasil entre 1884 e 1939, 1.502.394 eram portugueses e 1.412.263 eram italianos. Internamente, o Nordeste, Minas Gerais e o interior do estado do Rio de Janeiro perderam população, ao passo que a Amazônia, na época do surto da borracha, São Paulo e a cidade do Rio de Janeiro foram as que mais receberam. As migrações internas, nesse período, foram mais no sentido rural-rural.

8. Em 1907, a malha ferroviária brasileira era de 17.605,217 Km, sendo que mais de 60% encontrava-se no Sudeste. A expansão dessa malha objetivava inicialmente a agilização da exportação do café, paralelamente a um programa de melhoramento dos portos, realizada através de fortes investimentos estrangeiros. Em relação às rodovias, a situação era pior que a das ferrovias. Muito pouco se construiu até os anos 1920. A partir dessa década, teve início uma política governamental mais agressiva de construção de estradas de rodagem. Tal como no caso das ferrovias, a maior concentração de rodovias foi nas regiões Sudeste e Sul, que detinham 66% do total nacional.

9. No período, houve uma rápida expansão da produção de energia com base hidráulica, o que é explicado pela abundância de cursos d'água no país. Mais uma vez, o Sudeste liderou a expansão e, em 1940, produzia cerca de 80% do total do país. Vemos que a capacidade geradora de energia elétrica é um importante elemento indicativo do grau de desenvolvimento regional, posto que traduz o crescimento urbano e industrial. Essa constatação é reveladora não apenas da preponderância de industrialização do Sudeste, como também o vulto dos desequilíbrios regionais instalados a partir de tal processo.

10. Até o censo de 1940, não há uma estatística precisa sobre a distribuição espacial da população brasileira, no que se refere à divisão entre rural e urbano. De qualquer forma, nota-se uma tendência à urbanização acelerada nas primeiras décadas do século XX. Entretanto, mesmo antes de se acelerar esse processo, a população rural crescia a taxas bem menores do que o total da população brasileira. Paralelamente à crise das regiões agrícolas de culturas tradicionais, as regiões economicamente com melhor desempenho atraíram os contingentes populacionais marginalizados pela manutenção da estrutura latifundiária. O Rio de Janeiro, capital federal, passou de 691.565 habitantes, em 1900, para 1.896.998, em 1939.

11. Também no tocante à industrialização o Sudeste apresentou-se como o locus privilegiado para a expansão de um parque industrial. No princípio, os interesses agrários não permitiam a adoção de uma política ostensivamente protecionista, com tarifas suficientemente elevadas para o desenvolvimento de uma indústria autônoma. Todavia, à medida em que os países industrializados foram qualitativamente reorientando sua produção, tornou-se possível expandir uma indústria nacional dedicada à fabricação daqueles artigos "desprezados", ou cujo valor fosse pequeno e, portanto, de baixo interesse para o produtor estrangeiro. Foi o caso da fabricação de tecidos de algodão, da sacaria para embalagem de café, etc. Apesar de 80% dos tecidos consumidos no Brasil por volta da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) serem nacionais, havia profunda carência de uma indústria de base.

12. Na primeira metade do século XX, o Sudeste (e, sobretudo, São Paulo) conjugou alguns fatores excepcionais para a industrialização: capital, mão-de-obra, mercado relativamente concentrado, matéria-prima disponível e barata, capacidade geradora de energia e um sistema de transportes ligado aos portos. Entre 1920 e 1940, do total de estabelecimentos industriais do país, no Sudeste localizavam-se mais de 53%, e mais de 64% da classe operária ocupada também estava nessa região. Foi entre 1920 e 1938 que São Paulo (capital) superou o Rio de Janeiro no valor da produção industrial. Assim, percebe-se que indústria brasileira nasceu, fundamentalmente, a partir de capitais nacionais e aproveitando-se de condições favoráveis internamente.

13. Os imigrantes afiguraram-se nas duas pontas da indústria, como donos de empresas e como operários. Além disso, vários deles foram técnicos especializados. A partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), os Estados Unidos substituíram a Grã-Bretanha no predomínio econômico na América Latina. Ao contrário dos britânicos, que preferiam investir no setor terciário ou conceder empréstimos aos governos, os americanos aplicavam seus capitais majoritariamente em atividades produtivas, quer no setor secundário, quer no setor primário. Aproveitando-se da ausência de leis trabalhistas, e do fraco poder de organização dos operários, estes eram superexplorados pelos industriais. Os salários eram baixos, as condições de vida eram precárias e, consequentemente, a mortalidade era elevada. Finalmente, se o Estado não foi um adversário da indústria, esteve longe de promover uma política de desenvolvimento industrial.

14. Assim, o crescimento das cidades e a diversificação de suas atividades, foram requisitos para a constituição de um movimento da classe trabalhadora. É importante destacar que, ao longo da Primeira República, tal movimento foi limitado e só excepcionalmente alcançou êxitos. Na capital da República, o movimento operário tendeu a buscar o alcance de reivindicações imediatas. A transformação radical da sociedade não fazia parte de suas preocupações. Em São Paulo, contudo, predominou o anarcossindicalismo, que tinha por objetivo a transformação radical da sociedade e a implantação do socialismo. Entre 1917 e 1920, a vaga revolucionária iniciada na Europa, com a Revolução Russa, e o agravamento da carestia, consequência das perturbações oriundas da Primeira Guerra Mundial e da especulação com gêneros alimentícios, produziu um ciclo de greves de grandes proporções nas principais cidades do país, especialmente Rio e São Paulo. 

15. Em 5 de julho de 1922, jovens "tenentes" se rebelaram no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. Cercados, tiveram que se render, exceto um grupo de dezessete militares e um civil, que marcharam pela praia de Copacabana; apenas os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes sobreviveram. Dois anos depois, explodiu em São Paulo a "Revolução de 1924", que visava derrubar o governo de Artur Bernardes. O general reformado Isidoro Dias Lopes se colocou como líder dos rebeldes. São Paulo foi então varrida por uma guerra civil até 27 de julho, quando a "coluna paulista" deixou a cidade e se fixou no Oeste do Paraná. A ela se juntou outra coluna, liderada por Luís Carlos Prestes e proveniente do Rio Grande do Sul. Entre abril de 1925 e fevereiro/março de 1927, a Coluna Miguel Costa-Luís Carlos Prestes realizou uma incrível marcha de cerca de 24 mil quilômetros pelo interior do Brasil. Apesar de seu insucesso, a coluna teve um efeito simbólico no sentido de assinalar a insatisfação dos setores da população urbana em relação à elite dirigente da República.      

Bibliografia consultada: 
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013, p. 211-267.
MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Da República Velha ao Estado Novo. Parte A - O Aprofundamento do Regionalismo e a Crise do Modelo Liberal. In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. 9 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 302-315.

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