segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Imagine que você prende um terrorista que havia instalado uma bomba; você sabe que ela explodirá em uma hora, mas ainda não identificou o local em que ela se encontra. Você permitiria a morte de mil inocentes (ou 100 mil, no caso de uma bomba nuclear!), por ter renunciado a torturar uma só pessoa? Se der uma resposta negativa, você decide que a tortura é aceitável, até mesmo, recomendável em certos casos. A partir daí, basta mergulhar num oceano de cálculos e perdas: até mesmo uma única vida humana é insubstituível e inapreciável, tornando legítima, portanto, a prática da tortura - sobretudo, tratando-se de um cafajeste...
Na realidade, o caso acima só é habitual para os defensores da tortura, sem nada a ver com o mundo real. Para ser real, uma conjunção de numerosas circunstâncias deveria ocorrer, tornando a situação altamente improvável: ficar sabendo da existência da bomba e da hora da explosão, saber quem é o culpado e capturá-lo exatamente no momento apropriado, garantir que tal captura não será comunicada aos cúmplices para que eles não instalem a bomba em outro local, obter as confissões verdadeiras logo na primeira tentativa, e assim por diante. Tal cenário adapta-se perfeitamente aos filmes de suspense ou, quiçá, aos cursos de filosofia, mas virtualmente não existe no mundo real.
Consideremos esse caso imaginário e consideremos a prática da tortura utilizada, em particular, quando um exército enfrenta uma guerrilha. O objetivo de tais práticas consiste em coletar informações sobre o inimigo; estas não poderiam ser obtidas de outra forma já que, na maioria das vezes, ignora-se quem é, e não é, inimigo. De fato, essa é a razão principal apresentada para justificá-las: esta guerra é assimétrica, diferente das outras. Se o inimigo vencer, corremos o risco de perder nossos bens mais preciosos.
Ora, além do elemento desumano e degradante, nada comprova que a informação obtida sob tortura seja verdadeira. Para aqueles que pensam o contrário, vale a pena analisar o quão decepcionante é o resultado da tortura em cenários de guerra. Durante a Guerra da Argélia, por exemplo, a tortura era praticada pelas forças armadas para combater os atentados terroristas, e possibilitou, de fato, o desmantelamento de algumas redes independentistas da Frente de Libertação Nacional e a vitória da batalha de Argel. No entanto, tal prática conduziu, também, a França indiretamente à perda da guerra. As narrativas de tortura infligidas contribuíram para consolidar a solidariedade da população muçulmana. No lugar de cada combatente que era capturado, vários outros se empenhavam na luta, determinados a vingá-lo: a parcela da população indígena que até então, havia mantido a neutralidade, acabou aderindo à oposição. A hostilidade à guerra em Paris foi amplamente motivada por essas narrativas. Por sua vez, a opinião pública internacional e os governos de vários países influentes passaram ao lado dos independentistas argelinos: tendo sido questionada a determinação francesa em manter um Estado de direito, a causa deixou de aparecer como justa.
Adaptado de TODOROV, Tzvetan. O Medo dos Bárbaros: para além do choque das civilizações. Tradução de Guilherme João de F. Teixeira. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p. 142-144.
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