domingo, 11 de outubro de 2020
"(...) Assuntos mais graves requerem o juízo de Deus, pelo ordálio. Em alguns casos, trata-se de uma prova física, a ser imposta ao acusado de um crime ou de um delito de direito comum, e ao reclamante, no caso de uma contestação ou de uma queixa de caráter puramente privado. Trata-se, tanto para um como para outro, de demonstrar que sua causa é justa. Ferro em brasa, água fervente, água fria, braços abertos em cruz, tudo é imaginável. Um acusado que, depois do ordálio que consiste em mergulhar o braço em água fervente, não tiver as queimaduras cicatrizadas dentro do prazo fixado pelo juiz, é considerado culpado. Aquele que, depois de ficar com os braços abertos em cruz durante várias horas, tremer primeiro, é declarado culpado. O duelo judiciário é a última forma do juízo de Deus. Em todos os casos em que não há morte no ordálio, o que demonstra a má-fé do acusador e determina sua punição, o acusador desmascarado pela justiça de Deus sofre a pena que caberia ao acusado se a acusação tivesse sido validada por Deus. Isso faz com que os reclamantes às vezes deem mostras de grande prudência em suas afirmações.
Alguns espíritos lúcidos, desde essa época, percebem o absurdo do ordálio. Não é a crueldade dos suplícios que justifica sua hostilidade ao sistema, porque as pessoas não se comovem com a severidade das penas infligidas a quem é reconhecido culpado. O que choca alguns é a imprudência que pode haver em misturar Deus às baixas coisas do mundo. O ordálio, dirá sob Luís, o Piedoso, o arcebispo Agobardo, é um ato de presunção: ele pretende obrigar Deus a se pronunciar. É um pecado de orgulho. Quanto a Carlos Magno, há alguns indícios de seu ceticismo, mas não há dúvidas de que ele prefere as provas que não levam à morte. Apesar de suas deficiências, o juramento lhe parece preferível, e ver-se-á que em dezembro de 800, embora seja papa, Leão III é obrigado a se justificar diante do rei com um juramento purgatório."
[No juramento purgatório, o acusado jurava a sua inocência. Se, posteriormente, ficasse provado que jurou falso, sua mão seria decepada.]
FAVIER, Jean. Carlos Magno. Tradução de Luciano Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 335.
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