“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel

“Quem não é capaz de sonhar com a história diante dos documentos não é historiador.” F. Braudel
Villa Borghese, Roma, Itália.

Cavalaria, Heroísmo e Amor

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Entre duas damas, Winli, o jovem alamano que disputará o torneio, porta uma bela cota de malha de tom prateado por baixo de uma túnica brasonada cor turquesa. Ele recebe um anel dourado da dama casada (à esquerda, de vestido roxo, cor da dubiedade), que segura com sua mão direita o escudo do jovem senhor. A indicação da condição marital da dama de roxo está em seus cabelos, ocultos em um lenço vermelho preso por um cordão amarelo. Ela está acompanhada por uma mulher mais jovem (sua aia?) de vestido vermelho, cor símbolo da impetuosidade. Essa jovem dama é solteira (pois mostra sua vasta cabeleira loura, adornada com uma bela tiara dourada) e, delicadamente, traz o elmo do cavaleiro (com um chapéu brasonado, um lenço vermelho por trás, e encimado por uma estrela de oito pontas). A dama casada que presenteia Winli é quem o iniciará na arte do amor, segundo a tradição cortês-cavaleiresca. Por sua vez, ele, extasiado, coloca sua mão esquerda no peito, indicando que está muito comovido com o inesperado presente que a partir de agora o coloca como fiel vassalo da dama, mas que deve partir para disputar o torneio – e ser merecedor daquela maravilhosa dádiva. Enquanto isso, o escudeiro do cavaleiro, abaixo, representando em dimensões reduzidas (que denotam sua condição inferior), segura seu cavalo, que parece bastante apressado para ser cavalgado. Codex Manesse, imagem 76. Ver também PASTOREAU, 1996: 245-263. In: www.ricardocosta.com

A aspiração a uma vida pura e bela deu origem, na Idade Média, à cavalaria. Durante séculos esse ideal continuou sendo uma fonte de energia e, ao mesmo tempo, uma capa para todo o mundo de violência e do interesse pessoal. 

O elemento estético nuca esteve ausente e acentuou-se, sobretudo, nos tempos em que a função da cavalaria foi mais vital, como nos tempos das primeiras cruzadas. O guerreiro nobre precisava ser pobre e livre dos apegos terrenos. Assim, ele se arriscaria sempre que a necessidade lhe obrigasse, e seria um homem absolutamente desembaraçado. Chama a atenção, portanto, que em sua origem, a cavalaria medieval estivesse destinada a misturar-se com o monaquismo. Desta união surgiram as Ordens Militares dos Templários, de S. João, dos Cavaleiros Teutônicos, e também as dos espanhóis. Logo no começo, porém, o ideal afastou-se cada vez mais para as regiões da fantasia, e foram preservados traços de ascetismo e sacrifício muito raramente visíveis na vida real.

Os elementos religiosos da cavalaria, tais como a compaixão, a fidelidade e a justiça eram-lhe essenciais. Contudo, o complexo das aspirações e da imaginação que informam a ideia da cavalaria, a despeito da sua forte ética e do combativo instinto do homem, nunca teriam feito uma estrutura tão sólida para a vida da beleza se o amor não tivesse sido a fonte do seu ardor constantemente reavivado. 

Além de religiosos, estes traços de compaixão, de sacrifício e de fidelidade que caracterizam a cavalaria eram também eróticos. O cavaleiro e a sua dama, ou, por outros termos, o herói que serve por amor - é este o motivo primário e invariável de onde a fantasia erótico sempre partiu. É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de se arriscar, de ser forte, de sofrer e de sangrar diante da amada. 

Adaptado de HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. 2ª edição. Tradução de Augusto Abelaira. Lousã, Coimbra: Ulisseia, s/d, p. 79-80. 

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