domingo, 21 de outubro de 2018
Cristina de Pisano (1363 - c. 1430), a primeira mulher medieval a viver de sua pena, aparece ajoelhada num luxuoso tapete estampado, do quarto real. Ela oferece à rainha Isabel da Baviera (c. 1370 - 1435) um de seus livros.
Livro da Rainha, Harley MS 4431, f. 3r.
Livro da Rainha, Harley MS 4431, f. 3r.
1. No século XI, o esquema tripartido que dominava as concepções da sociedade cristã não concedia nenhum lugar específico às mulheres. Quer se trate de esposas, viúvas ou virgens, a personalidade jurídica e a ética cotidiana foram delineadas em função de um homem ou de um grupo de homens. Infelizmente, há poucos textos, poucas imagens da mulher e da família que nos transmitem a voz das principais interessadas. O eco dos prazeres e das dores cotidianas, das alegrias ou das discussões domésticas chega-nos, tingido de compreensão, de malícia ou de hostilidade evidente, com muito mais frequência dos homens do que das mulheres.
2. Na Idade Média, a relação de aliança pelo matrimônio tem, na sua origem, uma «paz». No final de um processo de rivalidade, por vezes mesmo de guerra declarada entre famílias, o matrimônio instaurava e selava a paz. Dar uma mulher à família com quem outra família se reconciliava, colocava a esposa no centro do entendimento. A esse penhor e instrumento de concórdia atribuía-se um papel que ultrapassava o seu destino e as suas aspirações pessoais. Nos meios aristocratas citadinos do séculos XIII e XIV, ódios antigos, vinganças intermináveis, concluíam-se igualmente com uma troca espetacular de mulheres, ao mesmo tempo que guerras, privadas ou não, eram ocasionalmente declaradas devido a uma união que falhou.
3. A passagem de uma mulher de uma linhagem para outra não envolvia apenas o seu transfert físico, mas também o de riquezas. A honra das famílias movia-se em dois planos. Para ser socialmente reconhecido — e seja qual for o meio social, a época ou o sistema jurídico em vigor —, o casamento exigia a existência de bens, por mais reduzidos que fossem, bens esses que eram dados por um grupo a um outro quando se preparava e depois se efetuava a entrega da mulher. A partir do século XII, o dote levado pela mulher aumentou e adquiriu um pouco mais de consistência em relação ao dote ou às doações e contribuições do marido. Nos séculos XIV e XV, a mulher casada, no Sul de França, em Itália e, finalmente, também em Espanha, era classificada pelo dote dado pela sua família; mais a norte, a doação feita pelo marido manteve-se até a época moderna.
4. A única justificação para o casamento era a preocupação de procriar descendentes legítimos. Nesse sentido, todas as «boas linhagens» receavam que um sangue estranho se introduzisse nelas sem o seu conhecimento. Os filhos de um homem nascidos fora do casamento, certamente dificultavam o mecanismo das heranças, mas eram bem distinguidos. Os filhos adulterinos de uma mulher — tanto mais perigosos quanto mais a sua mãe soubesse ocultar o seu delito — nasceram de uma fraude e, quando sobrevivem, incorriam no duplo crime de terem nascido do pecado da carne e da traição da mãe em relação à família que passou a ser a sua. A fidelidade sexual das mulheres era o centro do mecanismo familiar: o corpo exigia uma vigilância sem falhas, para evitar atos fraudulentos que causariam danos a toda a linhagem.
5. A Igreja atuou para dissuadir os homens de casarem com primas e insistiu — e, a partir do século XI, cada vez com mais firmeza — na necessidade de se obter o consenso dos jovens esposos e de não os fazer casar numa idade em que o seu consentimento não teria qualquer valor. Para a Igreja, a fundação de uma nova família precisava partir do respeito pela liberdade dos nubentes, que não eram as linhagens mas os futuros cônjuges. Esta mudança de perspectiva provocava, pelo menos em teoria, uma revolução notável: concedia à mulher o mesmo lugar que o marido no sacramento do matrimônio. Assim, o costume de se apoderar das mulheres pela violência, tão vulgar na Alta Idade Média, tornou-se mais raro nos séculos finais e dificilmente obtinha a aceitação social e religiosa. No entanto, o rapto — executado muitas vezes para forçar o acordo entre as famílias — ou o silêncio das mulheres, alerta-nos para uma interpretação demasiado otimista das condições em que as mulheres adquiriram voz nessa matéria. Em pleno Renascimento, existiam histórias sinistras de moças entregues a maridos ou encerradas em conventos contra a sua vontade. Mesmo os ritos, criados ou adaptados pela Igreja para garantir a liberdade do consentimento, eram frequentemente desviados para outros fins.
6. Entre os séculos XI e XIV, os ritos matrimonais concentraram-se em alguns momentos cruciais do processo que conduzia à formação do novo casal. Na Normandia, por exemplo, a tradicional entrega da noiva ao futuro marido, feita pelo pai ou pelo tutor, cerimônia que, durante toda a Alta Idade Média, era estritamente privada, reveste-se de ritos complementares e passou a ser efetuada, não na residência, mas no pórtico da igreja paroquial, onde o padre acolhia os futuros esposos que, na sua presença, davam o seu consentimento. O caráter público do local, a existência de testemunhas e a solenidade que era conferida pela presença do padre davam um certo peso à voz feminina. Voz que não se exprime porém, em toda a parte e em todos os meios, em condições tão favoráveis: por exemplo, em Itália, em pleno século XVI, os poderosos continuaram a celebrar essa cerimônia num ambiente familiar e apenas na presença do notário.
7. O grande desafio que as famílias tinham de aceitar, numa época em que a morte se abatia cruelmente e com muita frequência sobre as pessoas, é gerar herdeiros. O coração da casa medieval era o quarto: era lá que a mulher estava, trabalhava, concebia, dava à luz; e era lá que morria. Sabe-se ainda muito pouco acerca da vida biológica da mulher casada e dos efeitos que as funções que lhe eram atribuídas tinham sobre o seu corpo e o seu comportamento. As fontes são heterogêneas, dispersas e, muitas vezes, contraditórias. No entanto, de todas elas se podia inferir que o papel da mulher na reprodução do grupo era o que suscitava as mais frequentes discussões e censuras, as maiores precauções e os elogios mais entusiastas.
8. Um homem que se aproxima dos 30 anos, ou seja, um adulto, via de regra se casava com uma adolescente. Esta é a situação assimétrica da Baixa Idade Média, uma situação que recorda, estranhamente, os costumes romanos da época clássica. Raciocinando sobre as práticas do seu meio e da sua época, homens como L. B. Alberti, nos seus Livros da família, tomaram como modelo os fatos seguintes: o homem esperará até ter atingido a plenitude da idade para se casar; pelo contrário, a mulher casará jovem e «donzela», para não se perverter enquanto espera pelo casamento. Assim, entre os séculos XIII e XV, o casamento em idade avançada — que continuou a caracterizar a população da Europa ocidental, na Idade Moderna — parece ter sido a prática e a regra apenas da parte masculina.
9. O tempo relativamente longo entre o casamento e o primeiro nascimento indica que as adolescentes não tinham certamente atingido uma maturidade fisiológica suficiente para engravidarem imediatamente, o que de resto não impedia os maridos de as iniciarem de imediato na vida conjugal. Depois do primeiro filho, porém, gravidez e nascimentos sucediam-se a um ritmo acelerado. Assim, em 1461, uma burguesa de 29 anos, de Arras, ficou viúva depois de ter dado à luz doze filhos em treze anos de casamento. Os períodos de gravidez ocupavam cerca de metade da vida das mulheres casadas, antes de atingirem os 40 anos. Consequentemente, durante metade da sua vida conjugal, o casal não deveria, teoricamente, ter relações por receio de poder causar lesões no feto. Se a mãe amamentava, o casal também devia abster-se, uma vez que o nascimento de outro filho podia abreviar a aleitação e, por conseguinte, a vida do irmão mais velho. Existiam tabus também em relação ao sexo quando a mulher estivesse menstruada e no período entre o Advento e a Quaresma. É difícil saber, todavia, até que ponto essas restrições eram respeitadas pelos casais.
9. O tempo relativamente longo entre o casamento e o primeiro nascimento indica que as adolescentes não tinham certamente atingido uma maturidade fisiológica suficiente para engravidarem imediatamente, o que de resto não impedia os maridos de as iniciarem de imediato na vida conjugal. Depois do primeiro filho, porém, gravidez e nascimentos sucediam-se a um ritmo acelerado. Assim, em 1461, uma burguesa de 29 anos, de Arras, ficou viúva depois de ter dado à luz doze filhos em treze anos de casamento. Os períodos de gravidez ocupavam cerca de metade da vida das mulheres casadas, antes de atingirem os 40 anos. Consequentemente, durante metade da sua vida conjugal, o casal não deveria, teoricamente, ter relações por receio de poder causar lesões no feto. Se a mãe amamentava, o casal também devia abster-se, uma vez que o nascimento de outro filho podia abreviar a aleitação e, por conseguinte, a vida do irmão mais velho. Existiam tabus também em relação ao sexo quando a mulher estivesse menstruada e no período entre o Advento e a Quaresma. É difícil saber, todavia, até que ponto essas restrições eram respeitadas pelos casais.
10. Desde a Alta Idade Média até ao século XII, todos os concílios reforçaram as proibições e os castigos que pesavam sobre os comportamentos destinados a prevenir ou a inviabilizar um nascimento. A partir do século XIII, o conhecimento dos tratados de medicina árabes e a moda de Ovídio provavelmente propagaram, em certos meios, as práticas contraceptivas; de qualquer modo, a sua discussão levou os teólogos a atenuar um pouco a rigidez das proibições. Há os que deixam de proibir a união de um casal estéril ou admitiam o coitus reservatus: qualquer casal pode, portanto, procurar o prazer e não ter apenas em vista a procriação. Outros deixam de confundir contracepção e infanticídio. Todavia, até finais da Idade Média, os pregadores insistem frequentemente no pecado mortal de uma união sexual «contra natura» (sodomia, por exemplo), que chocava com «a forma do matrimônio».
11. As enormes descendências — dez, quinze filhos só existiam, de fato, em teoria. No ciclo cotidiano dos nascimentos e das mortes, as casas de finais da Idade Média albergavam, em média, pouco mais do que dois filhos vivos, tal como os recenseamentos revelavam; e os sobreviventes que o pai ou a mãe mencionam nos seus testamentos, raramente ultrapassam esse número. Na classe mercantil, pelo menos um quarto das crianças florentinas que foram entregues a amas morreram junto delas. Mas há pior: 45% dos filhos dessas famílias não atingiam os 20 anos. A mortalidade das mulheres também era alto. De três mulheres florentinas que morreram antes do marido, uma sucumbiu ao dar à luz um filho ou em consequência imediata do parto.
12. A autoridade era a palavra-chave que dominava a visão masculina das relações entre os cônjuges e que foi a única a ser-nos diretamente transmitida. O homem, primeiro ser da criação, a imagem de Deus mais semelhante ao original, a natureza mais perfeita e mais forte, deveria dominar a mulher. O homem teria uma autoridade «natural» sobre a mulher. Base teórica da reflexão de numerosos tratados a partir do século XIII, a fraqueza e a inferioridade da natureza feminina impuseram a elas, desde a Antiguidade, um domínio circunscrito - por exemplo, a casa e, dentro dela, espaços mais reservados, tais como a cozinha, a sala de trabalho e o quarto. Ainda que subordinadas, as mulheres eram engrenagens essenciais do bom funcionamento social; as que assumiam plenamente a sua função asseguravam a harmoniosa assimilação dos produtos da indústria masculina. Qualquer excesso nas suas despesas prejudicava todo o organismo social e o conjunto das trocas. A família era também um conjunto de pessoas sobre as quais a mulher devia velar, regulando os seus ritmos e as suas atividades. A mulher era a senhora da ordem doméstica, da paz familiar.
13. A insubordinação das mulheres não era apenas objeto da reprovação dos maridos; incorria igualmente na reprovação coletiva. As infracções à ordem normal das coisas, as inversões demasiado chocantes da autoridade natural, eram passíveis de um julgamento e de um castigo simbólico, imposto pela comunidade. A partir de inícios do século XIV, as primeiras menções de bimbalhadas rituais atestam esse controle público sobre as opções matrimoniais; o segundo casamento das viúvas ou, mais geralmente, os múltiplos casamentos do mesmo indivíduo atraíam a reprovação dos jovens em relação a casais mal casados ou intemperantes. Em toda a Europa, o ritual do passeio de burro punia a inversão demasiado evidente dos papéis conjugais: se a mulher dominava o marido, o maltratava ou o enganava, o marido, que faz as vezes dela, tinha de percorrer a área da aldeia montado ao contrário na ridícula cavalgadura e agarrando-se-lhe à cauda.
14. Se tivermos em conta toda a escala social, nem todas as mulheres estavam tão confinadas à casa e submetidas ao marido como o desejavam os maridos e os teóricos da «santa mobília». As camponesas trabalhavam duramente nos campos, as artesãs, nas lojas dos maridos que, por vezes, ficavam para elas após a morte deles. Mesmo dentro de casa, fosse ela senhorial ou burguesa, as mulheres e os filhos tinham sempre alguma coisa que fazer. Desde a mais tenra idade, as mulheres fiaram, teceram, coseram e bordaram sem descanso e quanto mais alta era a linhagem, quanto mais honra tivessem, menos tempo se lhes concedia para brincarem, rirem ou dançarem.
15. Os romances medievais estão repletos de destinos sombrios de mulheres sós que têm de sobreviver nas situações mais aventurosas e que, de resto, são apresentadas como totalmente capazes de sair dos impasses. São mulheres sem família as que se colocam fora da ordem «natural» atribuída ao sexo feminino pela sociedade medieval. Por isso são muito mais vulneráveis e a sua reputação fica imediatamente manchada. Viúvas sós: mendigas que ganhavam o seu sustento fiando, criadas de servir, reclusas que viviam fora de uma comunidade religiosa, todas eram suspeitas de mau comportamento e facilmente acusadas de prostituição.
Bibliografia consultada: KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A Mulher e a Família. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 193-208.
14. Se tivermos em conta toda a escala social, nem todas as mulheres estavam tão confinadas à casa e submetidas ao marido como o desejavam os maridos e os teóricos da «santa mobília». As camponesas trabalhavam duramente nos campos, as artesãs, nas lojas dos maridos que, por vezes, ficavam para elas após a morte deles. Mesmo dentro de casa, fosse ela senhorial ou burguesa, as mulheres e os filhos tinham sempre alguma coisa que fazer. Desde a mais tenra idade, as mulheres fiaram, teceram, coseram e bordaram sem descanso e quanto mais alta era a linhagem, quanto mais honra tivessem, menos tempo se lhes concedia para brincarem, rirem ou dançarem.
15. Os romances medievais estão repletos de destinos sombrios de mulheres sós que têm de sobreviver nas situações mais aventurosas e que, de resto, são apresentadas como totalmente capazes de sair dos impasses. São mulheres sem família as que se colocam fora da ordem «natural» atribuída ao sexo feminino pela sociedade medieval. Por isso são muito mais vulneráveis e a sua reputação fica imediatamente manchada. Viúvas sós: mendigas que ganhavam o seu sustento fiando, criadas de servir, reclusas que viviam fora de uma comunidade religiosa, todas eram suspeitas de mau comportamento e facilmente acusadas de prostituição.
Bibliografia consultada: KLAPISCH-ZUBER, Christiane. A Mulher e a Família. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Tradução de Maria Vilar de Figueiredo. Lisboa: Presença, 1989, p. 193-208.
0 comentários:
Enviar um comentário